26 março 2015

manuel de castro / poema para uma fada do desencanto



mão marfilínea deslizando vagarosa
num gesto perfumado e secular
sincrónico com a voz múrmura
dolente cadenciada distante
leve agitar de palmeiras
em ilhas incógnitas e felizes
  
gesto perfumado vagaroso
indica oceanos percorre continentes
aldeias furtivas de exóticos países
veios d'água subtis porém apenas
no dúbio mapa de navegação

no tempo das gravuras gentis
no tempo dos luares
dos instrumentos musicais longínquos
um leopardo atravessou a cidade
nocturna
silenciosa
onde estátuas assombradas
reflectiam a luz mortal dos astros

indecisos rumores corrosivos
transportaram para o mundo da fácil realidade
a tristeza
a alegria
e a cidade

atravessada por um ágil leopardo
possui a temperatura móbil da beleza
agora inerme
bela e fria
agora lancinante e desesperada
como recordação do que soubemos não ter sido
mas guardamos no coração

 desejo exacto
a distância as coisas e os dias
lançaram-me de mim
à rigidez impávida dos mortos
meu gesto e teu calor e teu olhar

o sol contém a noite a lua e dia
e não procuro amor que agrado seja
mas sombra no teu corpo intocável
sombra esbatimento e a lembrança
que viverei que sofrerei perfeita
do percorrer monótono do tempo
da invenção oferecida apenas a si própria
do semblante variável do sentido
das pedras que muralha se constroem
minha indiferença meu amor distância
areia e mar dormindo sob a lua


                                            (Paralelo W)



manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002





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