12 março 2015

miguel esteves cardoso / a vida inteira



  Não é fácil ser alma.
  Tem vantagens. Posso entrar na pessoa que quiser e fazê-la falar
  e mover-se como se fosse uma marioneta. Grande coisa.
  Para me vingar, às vezes chamo Robertos às pessoas.

  Actualmente, sou a alma dum rapaz que teve um acidente de mota e está em coma há dois anos.
  O corpo está ligado a uma máquina. Não tem grande interesse.
  O aspecto é simpático mas a postura é parada. De mais para o meu gosto.

  A alma dele, que sou eu, é generosa e boa, apesar do rancor e do medo
  que me minam de alto e baixo. Actualmente está suspensa. Livre de vaguear e não sei que mais.
  Tenho autorização. O pior é que está limitada à partida. E porquê?
  Porque esta pessoa está apaixonada. Apaixonada por uma rapariga de dezanove anos.
  Que não está apaixonada por ele. Ainda por cima. É esta a herança que o rapaz me deixou.

  A rapariga vem vê-lo todas as semanas. Chama-se Eva. Julga-se uma santa.
  Uma santa viria, pelo menos, todos os dias. Fica meia hora, com cara de quem já está no velório.
  Sente-se na obrigação. Caíram da mota porque ela queria passar um vermelho,
  tal era a ganância de chegar a casa para se ver livre dele.

  Chama-se Eva, para todos os efeitos, que não se imaginam quais sejam.
  É loura como o milho. Mas isso é desculpa? Eu acho que não.

  Tecnicamente estou apaixonada por ela, constrangida a amá-la por todos os meios ao meu alcance.
  Para mal dos meus pecados, que são muitos.
  Como alma posso entrar dentro da pessoa que eu quiser.
   A minha missão, até o rapaz recuperar ou morrer e eu poder começar uma vida nova,
  de preferência, regular, é persegui-la e tentar que ela se apaixone por mim.

  O pior é que, cada vez que mudo de corpo, sou um bocadinho contaminada por ele.
  O primado genético não existe - mas tem influência.
  Não posso entrar dentro dum roberto das barracas, malabarista por profissão,
  sem sair dele com uma certa noção de injustiça e de equilíbrio.

  Os cromossomas são como pingos de água do mar. Fazem ferrugem numa alma.
  Que me interessa ser bondosa se habito um indivíduo tão estúpido
  que não sabe pôr em prática essa bondade?
  John Steinbeck é um péssimo escritor mas gosto da história,
   pretensiosamente intitulada "Of Mice and Men", do brutamontes,
  que, sem querer, sufoca um rato com festinhas.

  A minha missão na vida é arranjar um Roberto de quem ela goste.
  O mundo é a minha ostra, como dizia o outro. Posso escolher quem quiser.
  O pior é que não conheço ninguém. Isso e uma certa falta de paciência.

  Eu sou eterna, não esqueçamos. Não sou como os outros homens,
  ou sequer como as outras mulheres, que vêm e vão-se embora,
  durando uma média de 75 anos, geralmente desperdiçados em ninharias.
  Sou alma. É de mim que falam os pensadores.
  Mesmo que não façam ideia do que falam, sabem que sou eu que importo.
  Seja Nietzche ou o padre da aldeia.

  Odeio médicos. Antigamente uma alma passava facilmente de pessoa para pessoa,
  sem se demorar muito. Não havia "máquinas".
  Não havia debates sobre a ética e o "timing" de desligá-las.
  Hoje a vida prolonga-se para além do suportável. Uma alma cansa-se.
  No meu caso, que é moderno porque o meu portador está tecnicamente vivo, é arrasante.

  Tenho uma tarefa espinhosa. A Eva. É certo que tenho direito a descansar
  - a largar o pessoal e a refugiar-me numa substância inerte,
  como uma parede ou a porta dum táxi - mas nunca posso dormir.
  Estou sempre acordada. A Eva dorme nove horas por noite e eu,
  feito mesa de cabeceira ou interruptor da luz, tenho de ficar a olhar para ela.

  Acompanho-a vinte e quatro horas por dia. Seja na forma de pessoa ou de objectos.
  Ela tem uma vida interessante, mas não há interesse
  que aguente vinte e quatro horas de vigilância. É monótono.
  Leva muito tempo a lavar os dentes. Demora uma hora a tomar banho.
  Quando estou em mim - isto é, quando sou só uma alma, etérea e feminina,
   incorporada numa cortina de chuveiro - tanto se me dá como se me deu vê-la nua.
  As almas não são fufas. Quando estou dentro dum homem, isto é,
  quando poderia tirar algum prazer, por muito vago, de vê-la nua,
  ela fecha-me sempre a porta na cara. É assim.

  A minha história é fácil de contar, mas penosa.
  No entanto é curiosa, dada a perdição em que vim a cair
  e à maneira de ser da rapariga que, vamos lá, amo do fundo de mim.


  A Eva gosta de conhecer pessoas mas não gosta de pessoas conhecidas.
  Só lhe interessa o acto de conhecer. Fala com empregados de café,
  malucos que se passeiam à beira do rio - enfim toda a gente.
  Mas não tem amigos. Nem namorados. Não liga à família.
  Não tem planos nem hábitos.
  Não faz nem recebe telefonemas, excepto sob pressão.

  O que dificulta as coisas. Como é que eu vou engatá-la?
  Quanto mais estabelecer uma relação profunda.
  Pergunto eu. Como se alguém respondesse.

  Começo comigo. Sou uma boa alma. Limitada, mas segura de mim.
  O que é que isto quer dizer, não sei.
  Tenho acessos de lirismo. Compreende- se Sou solidamente espiritual.
  Não se poderia esperar outra coisa.
  Os versos, para mim, são flocos de aveia.

  Quando entro num Roberto, mete-me nojo a materialidade das pessoas
   - os baços, as pulsões, os movimentos intestinais.
  O corpo é uma casa temporária porque é rasca
  - se Deus tivesse feito o mundo com mais jeitinho, teria arranjado seres perfeitos,
  merecedores de eternidade, isto é, capazes de acompanhar o andamento da alma.
  Mas as pessoas são básicas. No fundo, até merecem o prazer e sofrimento
  que lhes cabem na vida curta que lhes é concedida.

  Antes de entrar num Roberto, entro num crucifixo que ela traz ao pescoço.
  Como alma sei que Jesus foi apedrejado e não crucificado,
  mas como já disse um padre inglês,
  quem é que pagaria as alterações arquitectónicas nas igrejas, para não falar na joalharia?
  Quem é que gostaria de andar com pedregulhos ao pescoço? A Eva.
  Só que não tenho maneira de lhe fazer saber.

  Ela nunca tira o crucifixo. Isto é, nunca me tira. Quando me chateio, passo para a t-shirt dela.
  Doem-me os braços. Embora uma alam não tenha braços, tem imaginação.
  E só Deus sabe como dói a imaginação.

  E é assim, dolorosamente, que começa a minha história.

  É preciso ver que eles vivem num mundo adormecido. Há muito
  que desapareceram os sinais de vida. As pessoas habituaram-se de tal maneira aos hábitos
  que se esqueceram que havia outras maneiras de fazer as coisas.
  Ninguém desobedece. Ninguém ousa. É o século XXI. É o Ocidente.
  Tudo está realmente resolvido.
  Mas não resta ninguém para se irritar com isso.

  Então a minha primeira tarefa é acordá-la. Só ela. Para que a possibilidade de amor exista.
  Nesse sentido, escolho um rapaz de treze anos,
  igual a outro por quem ela teve uma paixão quando era mais nova.
  Para não me estragar muito. Nem sequer sei como se chama.
  Sei é que, quanto mais velha e completa a pessoa em que me torne, mais eu me desgasto.
  Isto é, mais me afasto do meu portador, estendido no hospital, ligado à máquina, que se chama...
  também não sei. Sei que está apaixonado por ela. Como vêem, já estou a perder-me.
  Não é que seja uma sensação má. Mas é, no mínimo, desleal.

  Situemo-nos. Como ainda há gaivotas, e dado os meus poderes de observação,
   torno-me numa delas. Cheiram mal mas têm um bom ponto de vista e são amadas pelo público.
  Entro na cidade deles. No país morto.
  Voar é como dormir - não tem graça nenhuma depois dos primeiros cinco minutos.




 miguel esteves cardoso
 a phala / 8
 assírio & alvim
 lisboa
 1995



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