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03 julho 2016

miguel esteves cardoso / devíamos viver todos sozinhos


                              Para a Susana


               1.

Devíamos viver todos sozinhos. Perto um dos outros, mas separados.
Começou assim.
Devíamos ter todos uma porta onde mais ninguém pudesse entrar, um televisor só para nós, uma casa de banho particular, um sítio onde receber visitas.
Pensou assim.
Uma pessoa tem o direito de ouvir apenas o seu próprio barulho, a dispor de luz e de escuridão conforme apetecer, a ligar ou desligar o aquecimento.
E só assim.
Devíamos viver todos sozinhos, dizia ele, em casas pequenas e próximas, insonorizadas, com persianas perfeitas.
Cada pessoa tem direito à tristeza pequena de encontrar as coisas como as deixou. Os livros no mesmo sítio, na mesma página, no mesmo lençol em que não mexeu. A tampa da pasta de dentes, a tampa da caneta, a tampa da lata de bolachas, com as mesmas bolachas lá dentro.
Mas é raro ser assim.
As pessoas deviam viver sozinhas em casas parecidas umas com as outras. Ninguém merece encontrar ninguém num corredor, numa casa de banho, ou na cama.
Devia ser assim, dizia ele, danado. Não tinha nada a ver com a idade. Nem com a família. Dizia ele, deitado na sua cama estreita, com a irmã pequena a dormir ao lado.
Só vivendo sozinhas é que as pessoas podiam fazer, umas com as outras, durante toda a vida, as combinações bonitas e bem pensadas com que sonham. Combinações de amor e sem ser de amor.
Tudo devia poder ser falado de antemão. «Posso passar aqui à noite?» Não. As pessoas precisam de casas próprias para onde possam regressar. Para estarem perfeitamente à vontade quando pedem licença para vadiar. Moradas sólidas. Casas bem definidas. De onde possam sair no dia seguinte. E perguntar «E hoje, posso?» Hoje sim. As pessoas precisam de casas que fiquem vazias enquanto vadiam.
Senão tem-se a impressão que as pessoas ficam umas com as outras porque não têm para onde ir. Senão tem-se a impressão que só pensam em ir-se embora. Mesmo nos momentos bons. Numa família é assim. Era assim na família dele. A família falava e ria, mas ao primeiro sinal de silêncio ficava-se com a impressão de se ouvirem passos, os passos pequenos e mentais de quem já está a imaginar-se a milhas dali.
Não devia ser assim. Noite após noite, ano após ano, deitado na cama, a ouvir a família a falar na sala, a mexer-se na casa de banho, à procura dum copo limpo na cozinha. A olhar para as estrelas que se viam, ansioso por aquela altura.
Tem de haver um território. Tem de haver trespasse. Cada chão tem de ser, potencialmente, um local de invasão. Tem de haver propriedade. Tem de ser possível distinguir entre uma visita e uma ocupação. Tem de se poder imaginar um inimigo à porta, a bater num belo dia do ano.
Um inimigo a sério e não este. Como quando ouvia a família a discutir em voz baixa, como se estivesse a zangar-se ainda mais por não poder gritar como lhe apetecia. Deitado na cama, com a irmã a dormir ao lado, pensando em como devia ser.
Todo o processo de pedir e dar licença tem de ser instituído e encorajado. Em casas mais pequenas, devia ser proibido haver mais do que uma chave.
As pessoas precisam de perceber que não podem mandar muito. Para cada centímetro do chão em que as pessoas mandam, tem de haver pelo menos mil milhões de quilómetros quadrados em que não.
É escusado dar ordens quando não há ninguém que queira obedecer. As pessoas têm de aprender a pedir como deve ser, e a pensar muito bem antes de dar uma resposta.
Para as pessoas serem boas umas para as outras não podem ter muitas certezas. Tudo tem de ser muito bem combinado. Frequentemente. Tendo o cuidado de deixar sempre uma dúvida, que fica para a próxima vez.
Para a próxima noite, deitado ao comprido, do outro lado da parede onde a família se juntava. Desejando fugir sem ser descoberto, fugir sem magoar ninguém, levando consigo qualquer lembrança que ele pudesse deixar. Mas mais nada.
Devíamos viver todos um pouco tristes. Ter manhãs. E outras manhãs diferentes. E às vezes não haver maneira nenhuma de outra pessoa nos perceber.
Uma pessoa precisa de poder sair sem mais nem menos para a rua e passar dia e noite sem noção de tempo ou de espaço, passeando diante das portas das outras pessoas sem parar à frente de nenhuma, à procura do que pense ter perdido. Uma pessoa precisa de vagabundear sem tino, e levar grande parte do coração atrás.
Acordado na sua cama de rapaz, com a roupa entalada e os braços corridos ao longo do corpo, navegando as estrelas. O único a não dormir.

Devíamos poder estar acordados a noite inteira sem que ninguém se incomodasse por causa disso, ou passar uma semana inteira a dormir sem ninguém vir a saber. As campainhas e os telefones deviam poder ligar-se e desligar-se como despertadores. Nem sequer deveria ser forçoso o calendário continuar.
As pessoas precisam muito de não se sentirem requeridas, ou pressentidas, ou culpadas.

Deitado sem dormir, a passear nas casas da cidade que construiu. Assim usou o sono que a família lhe tirou ao longo dos anos. A pôr pedra sobre pedra, a passear e a ver.
Se houvesse varandas perfeitas, dariam umas para as outras, abrindo e fechando como os olhos de duas pessoas com vergonha de olharem uma para a outra, abrindo e fechando, deixando entrar a luz que as outras vão deixando.
Devíamos ter todos uma pequena varanda para um mundo. Para que pudéssemos sair para o mundo, mas por onde o mundo não pudesse entrar.
As pessoas precisam de casas próprias onde a vida de cada um se possa tratar. Sem mais.

É necessário um reduto onde os nossos últimos dias se possam imaginar facilmente. Não se podem correr riscos. As pessoas têm de estar preparadas para o dom e para a estranheza de outras pessoas, de alguém que nos venha a fazer companhia. Deixando uma casa vazia à espera dela.
As pessoas têm de estar sozinhas quando começam. Enquanto vivem e não vivem.


2.

Não é assim que as coisas se passam. A economia do mundo vai contra.
Onde coexiste uma família de solidões, nasce a solidão da família.
Os filhos só estão bem quando são pequenos. Os pais só estão prontos quando ficam velhos.
Entretanto, a vida faz-se do que vai ficando. O sangue assenta. As vozes levantam-se, doces ou furiosas, mas sempre fora de vez. Os filhos são muito pequenos. É a única altura em que os pais podem ser grandes.
Fala-se em voz alta de quem há-de ser. De quem há-de pagar. Como, e a que horas, e porquê. De quem há-de ir fechar a porta, desligar a luz, buscar o leite.

A parte de vida que uma família pode partilhar é pequena. Não há vontade de repartir o que não é de ninguém. E os filhos não podem desistir. E os pais não conseguem sossegar.
A solidão das famílias vem desta estranha companhia em que metade dela é fácil e metade é forçada, em que metade é por acaso e a outra metade é amor.
Numa família as pessoas haviam de arranjar salas e maneiras de se poderem convidar, expulsar, e eventualmente perder.
As famílias só funcionariam em casas muito grandes com alas e anexos, onde nem pai nem mãe mandassem e tudo se resolvesse através de recados, papéis deixados debaixo das portas um dos outros, planos para expedições, jogos de escondidas, e governantas.
As famílias mostram o que as pessoas têm de bruto. De besta e de bom. Nos corações que expõem e que todos à sua maneira lêem e treslêem, vêem-se os sonhos mais bonitos que o mundo tem e outras vontades que nunca hão-de conhecer descanso. Restos. Restos de carinhos antigos que ficaram por completar. Promessas incumpridas, ameaças cruéis, as traições inconsequentes de quem ama sem cuidar do seu amor, sabendo que nunca o irá perder. De quem ama com um amor que se atira contra outro.
Uma família está condenada. Dura um certo tempo, destrói-se num instante, e só finalmente se muda para onde nunca mais acaba.

As pessoas ficam sozinhas, tal como começaram, mas pesam mais. Fogem umas das outras, mas vão devagar. Uma família, depois de feita, não se desfaz. As pessoas deixam-se envolver e ficar. E de um dia a dia de peúgas e cascas de laranja, de folhas de papel e cartas de jogar, acabam por apanhar a doença incurável da acomodação e da familiaridade.
Uma família presta para ensinar duas coisas às pessoas: a dificuldade do amor e o desejo da liberdade. O resto vem tarde de mais. Vem um dia, muito tarde, quando se está sozinho e o mundo parece mais contrário do que é costume, e os conhecidos parecem estranhos, e a vida parece ter parado aos nossos pés. Só num dia, muito tarde, é que a família nos deixa a sua última e única flor, uma rosa suja, mas viva, em memória do sangue e da sua lealdade.

Se calhar estes sacrifícios somam-se para que percam todas as partes e seja só a soma a ganhar.


3.

Devíamos viver todos sozinhos segundo uma ficção comum de semelhança e de liberdade. Cada um em sua casa, de pés plantados em seu próprio chão. Deitados à sua janela, sob o efeito do álcool e da luz, a cantar como crianças da mesma escola.

Cada um em casa de outro, com o coração entregue, mãos dadas, medo de tudo.

A tristeza torna-nos vizinhos. O nosso trabalho é não entristecer.

A alma feliz guarda o segredo de se deixar enganar.
Sempre que pode, separa-se um pouco da vida.
Em casas mornas as pessoas dormem, acordam e cantam. Cantam para que outras pessoas ouçam. Alguém à janela. A uma hora bonita. Para que outras casas saibam como.
As pessoas saem. Sabem, por muito que demorem, que o sítio de onde se veio é o único onde se pode sempre voltar.


4.

Os olhos enganam-se uns aos outros. As coisas não são bem ditas. As estações demoram. As pessoas fogem das famílias. Para casas. Casas só deles. E depois fogem de si mesmas. Para outras pessoas. Que fazem felizes. Ou tornam tristes. A quem dão amor verdadeiro. E o que podem de liberdade. Sem dar valor nem a uma coisa nem outra. Como fazem as pessoas que se amam.

As casas ficam. Não deveriam passar de mãos.

E depois é assim.

«Na minha casa», diz ele, «ficou a minha alma vazia, as coisas de que pensei precisar, a vista alta sobre o rio de que eu não me consigo lembrar desde o dia em que te vi…»
E fala da sua casa vazia, do livro aberto no lençol, do risco de lápis nas paredes, no quarto onde dormia.
Fala na casa que deixou vazia, na poeira nas páginas limpas, no vidro partido, na pedra fria da varanda.
O amor limpa-lhe os olhos e a voz. Fala como se nunca tivesse feito outra coisa senão falar. O amor protege-o. Não há nada que não possa dizer. Nada que possa enganar. Nada que magoe. Nada que não se compreenda.
Fala exactamente como se estivesse a respirar. Como se fosse ele que estivesse calado, deitado ao lado do seu amor, muito quieto.
Fala; mas fala de si como se falasse de outra pessoa. De alguém que um dia fugiu para ali, feito em fúria, sozinho pela primeira vez na vida, feliz por se ver livre de um fardo de coisas que não eram dele.
Fala; mas fala de si como se falasse de outra pessoa. Sobre alguém que encontra a paz, o prazer de nada, depois de uma vida inteira. Numa casa vazia, na primeira noite que lá passa, caído um canto, fecha os olhos e adormece imediatamente, levado por um fio de sono, para dentro de uma casa feliz.
Fala, mas fala de si como se falasse de outra pessoa, de alguém que lá deixou. Na casa vazia, onde ele tinha sido tão feliz. Vivo ou morto. Na casa ao pé das outras casas, à espera de nunca mais ser descoberto. Mas à espera dele. Mas à espera dele, mesmo assim.



miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991





12 março 2015

miguel esteves cardoso / a vida inteira



  Não é fácil ser alma.
  Tem vantagens. Posso entrar na pessoa que quiser e fazê-la falar
  e mover-se como se fosse uma marioneta. Grande coisa.
  Para me vingar, às vezes chamo Robertos às pessoas.

  Actualmente, sou a alma dum rapaz que teve um acidente de mota e está em coma há dois anos.
  O corpo está ligado a uma máquina. Não tem grande interesse.
  O aspecto é simpático mas a postura é parada. De mais para o meu gosto.

  A alma dele, que sou eu, é generosa e boa, apesar do rancor e do medo
  que me minam de alto e baixo. Actualmente está suspensa. Livre de vaguear e não sei que mais.
  Tenho autorização. O pior é que está limitada à partida. E porquê?
  Porque esta pessoa está apaixonada. Apaixonada por uma rapariga de dezanove anos.
  Que não está apaixonada por ele. Ainda por cima. É esta a herança que o rapaz me deixou.

  A rapariga vem vê-lo todas as semanas. Chama-se Eva. Julga-se uma santa.
  Uma santa viria, pelo menos, todos os dias. Fica meia hora, com cara de quem já está no velório.
  Sente-se na obrigação. Caíram da mota porque ela queria passar um vermelho,
  tal era a ganância de chegar a casa para se ver livre dele.

  Chama-se Eva, para todos os efeitos, que não se imaginam quais sejam.
  É loura como o milho. Mas isso é desculpa? Eu acho que não.

  Tecnicamente estou apaixonada por ela, constrangida a amá-la por todos os meios ao meu alcance.
  Para mal dos meus pecados, que são muitos.
  Como alma posso entrar dentro da pessoa que eu quiser.
   A minha missão, até o rapaz recuperar ou morrer e eu poder começar uma vida nova,
  de preferência, regular, é persegui-la e tentar que ela se apaixone por mim.

  O pior é que, cada vez que mudo de corpo, sou um bocadinho contaminada por ele.
  O primado genético não existe - mas tem influência.
  Não posso entrar dentro dum roberto das barracas, malabarista por profissão,
  sem sair dele com uma certa noção de injustiça e de equilíbrio.

  Os cromossomas são como pingos de água do mar. Fazem ferrugem numa alma.
  Que me interessa ser bondosa se habito um indivíduo tão estúpido
  que não sabe pôr em prática essa bondade?
  John Steinbeck é um péssimo escritor mas gosto da história,
   pretensiosamente intitulada "Of Mice and Men", do brutamontes,
  que, sem querer, sufoca um rato com festinhas.

  A minha missão na vida é arranjar um Roberto de quem ela goste.
  O mundo é a minha ostra, como dizia o outro. Posso escolher quem quiser.
  O pior é que não conheço ninguém. Isso e uma certa falta de paciência.

  Eu sou eterna, não esqueçamos. Não sou como os outros homens,
  ou sequer como as outras mulheres, que vêm e vão-se embora,
  durando uma média de 75 anos, geralmente desperdiçados em ninharias.
  Sou alma. É de mim que falam os pensadores.
  Mesmo que não façam ideia do que falam, sabem que sou eu que importo.
  Seja Nietzche ou o padre da aldeia.

  Odeio médicos. Antigamente uma alma passava facilmente de pessoa para pessoa,
  sem se demorar muito. Não havia "máquinas".
  Não havia debates sobre a ética e o "timing" de desligá-las.
  Hoje a vida prolonga-se para além do suportável. Uma alma cansa-se.
  No meu caso, que é moderno porque o meu portador está tecnicamente vivo, é arrasante.

  Tenho uma tarefa espinhosa. A Eva. É certo que tenho direito a descansar
  - a largar o pessoal e a refugiar-me numa substância inerte,
  como uma parede ou a porta dum táxi - mas nunca posso dormir.
  Estou sempre acordada. A Eva dorme nove horas por noite e eu,
  feito mesa de cabeceira ou interruptor da luz, tenho de ficar a olhar para ela.

  Acompanho-a vinte e quatro horas por dia. Seja na forma de pessoa ou de objectos.
  Ela tem uma vida interessante, mas não há interesse
  que aguente vinte e quatro horas de vigilância. É monótono.
  Leva muito tempo a lavar os dentes. Demora uma hora a tomar banho.
  Quando estou em mim - isto é, quando sou só uma alma, etérea e feminina,
   incorporada numa cortina de chuveiro - tanto se me dá como se me deu vê-la nua.
  As almas não são fufas. Quando estou dentro dum homem, isto é,
  quando poderia tirar algum prazer, por muito vago, de vê-la nua,
  ela fecha-me sempre a porta na cara. É assim.

  A minha história é fácil de contar, mas penosa.
  No entanto é curiosa, dada a perdição em que vim a cair
  e à maneira de ser da rapariga que, vamos lá, amo do fundo de mim.


  A Eva gosta de conhecer pessoas mas não gosta de pessoas conhecidas.
  Só lhe interessa o acto de conhecer. Fala com empregados de café,
  malucos que se passeiam à beira do rio - enfim toda a gente.
  Mas não tem amigos. Nem namorados. Não liga à família.
  Não tem planos nem hábitos.
  Não faz nem recebe telefonemas, excepto sob pressão.

  O que dificulta as coisas. Como é que eu vou engatá-la?
  Quanto mais estabelecer uma relação profunda.
  Pergunto eu. Como se alguém respondesse.

  Começo comigo. Sou uma boa alma. Limitada, mas segura de mim.
  O que é que isto quer dizer, não sei.
  Tenho acessos de lirismo. Compreende- se Sou solidamente espiritual.
  Não se poderia esperar outra coisa.
  Os versos, para mim, são flocos de aveia.

  Quando entro num Roberto, mete-me nojo a materialidade das pessoas
   - os baços, as pulsões, os movimentos intestinais.
  O corpo é uma casa temporária porque é rasca
  - se Deus tivesse feito o mundo com mais jeitinho, teria arranjado seres perfeitos,
  merecedores de eternidade, isto é, capazes de acompanhar o andamento da alma.
  Mas as pessoas são básicas. No fundo, até merecem o prazer e sofrimento
  que lhes cabem na vida curta que lhes é concedida.

  Antes de entrar num Roberto, entro num crucifixo que ela traz ao pescoço.
  Como alma sei que Jesus foi apedrejado e não crucificado,
  mas como já disse um padre inglês,
  quem é que pagaria as alterações arquitectónicas nas igrejas, para não falar na joalharia?
  Quem é que gostaria de andar com pedregulhos ao pescoço? A Eva.
  Só que não tenho maneira de lhe fazer saber.

  Ela nunca tira o crucifixo. Isto é, nunca me tira. Quando me chateio, passo para a t-shirt dela.
  Doem-me os braços. Embora uma alam não tenha braços, tem imaginação.
  E só Deus sabe como dói a imaginação.

  E é assim, dolorosamente, que começa a minha história.

  É preciso ver que eles vivem num mundo adormecido. Há muito
  que desapareceram os sinais de vida. As pessoas habituaram-se de tal maneira aos hábitos
  que se esqueceram que havia outras maneiras de fazer as coisas.
  Ninguém desobedece. Ninguém ousa. É o século XXI. É o Ocidente.
  Tudo está realmente resolvido.
  Mas não resta ninguém para se irritar com isso.

  Então a minha primeira tarefa é acordá-la. Só ela. Para que a possibilidade de amor exista.
  Nesse sentido, escolho um rapaz de treze anos,
  igual a outro por quem ela teve uma paixão quando era mais nova.
  Para não me estragar muito. Nem sequer sei como se chama.
  Sei é que, quanto mais velha e completa a pessoa em que me torne, mais eu me desgasto.
  Isto é, mais me afasto do meu portador, estendido no hospital, ligado à máquina, que se chama...
  também não sei. Sei que está apaixonado por ela. Como vêem, já estou a perder-me.
  Não é que seja uma sensação má. Mas é, no mínimo, desleal.

  Situemo-nos. Como ainda há gaivotas, e dado os meus poderes de observação,
   torno-me numa delas. Cheiram mal mas têm um bom ponto de vista e são amadas pelo público.
  Entro na cidade deles. No país morto.
  Voar é como dormir - não tem graça nenhuma depois dos primeiros cinco minutos.




 miguel esteves cardoso
 a phala / 8
 assírio & alvim
 lisboa
 1995



30 julho 2010

miguel esteves cardoso / rara







Ouço-te
a ser rara
a estrela

no espaço

onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta

Ouço-te
a virar
os paus

a comer
vestígios
importantes

e estás
em apuros

com as noites

estás em
ponta fina
de margens
dadas

os braços
pelo pó

e os olhos
por força maior

Ouço-te
ao aparecer
da vista

e do tacto
e estás incólume

de mim

das causas
disso

dos porquês
daquilo









miguel esteves cardoso
sema
publicação sazonal de artes e letras
ano I, n.º 2,
verão 1979





29 dezembro 2009

miguel esteves cardoso / tempo






Em Portugal tudo o que há para o dia seguinte é feito de véspera. Até o Natal, ao contrário doutros povos, é feito de véspera. Para compreender isto tudo, é preciso olhar para a maneira como os Portugueses observam o tempo. O Natal é um bom exemplo, começando logo pela consoada. Que outra nação tem, por prato representativo, um peixe que vive a milhares de milhas náuticas da costa nacional, que leva meses inteiros a chegar a Portugal e que, quando chega, ainda tem de ficar vinte e quatro horas de molho antes de podermos comê-lo? Por isso é que Portugal continua em águas-de-bacalhau.

Isto deve-se à paixão que têm os Portugueses pelas coisas muito demoradas e o horror correspondente à frieza desumana da pontualidade. Em 1983 (e desde 1383), passámos o ano a dizer duas coisas: «Dá tempo ao tempo» e o novíssimo, portuguesíssimo advérbio atempadamente.

Em Portugal já se deu tanto tempo ao «tempo», com tanta abnegada generosidade, que agora o tempo, já mal habituado a receber tempo sem nada dar em troca, jamais o devolverá. O tempo que se deu ao tempo ao longo destes 800 anos já deverá ir, segundo os nossos cálculos em mais de 5000 anos. Fazendo as contas, isto dá a Portugal um negativo de cerca de 4200 anos. E olhando para o país, é fácil verificar que o número não anda muito longe da verdade. De facto, a própria História de Portugal anda cronicamente desfasada do tempo. Sob muitos pontos de vista, ainda estamos na aurora do Neolítico.

Atempadamente é um advérbio que utilizam os governantes quando lhes fazem a pergunta mais malcriada que há no contexto cultural português, «Quando?». Significa, em termos sumários: «Devagar, e mais ou menos quando nos der na real bolha, depois se verá, talvez, nunca se sabe, seja o que Deus quiser, e já é um grande pau.»

Em Portugal anda tudo atrasado, e isto só quando chega a andar. Os horários de televisão não são cumpridos desde a primeira emissão experimental dos anos de 1950, e os comboios, como toda a gente sabe, circulam segundo um vetusto horário cósmico, perdido nas brumas do tempo e inteiramente ligado aos ritos ligures de transportes dos Mortos, que remontam às primeiras ocupações da Península. Se às vezes correspondem aos horários impressos numa faceta de Jazz Age (que Pascoaes tanto abominava), isso deve-se à lei matemática da coincidência e não pode ser evitado.

Os autocarros, também, em vez de saírem sozinhos com intervalos certos, preferem deambular pela cidade em composições autóctones de três ou quatro unidades iguais (já vimos uma belíssima formação de seis 45 a subir a avenida da Liberdade). Isto deve-se, ao que se julga, a questões de mútua protecção contra os numerosos bandos de «utentes» que vagueiam pelas ruas a tentar saltar-lhes para cima.

A agenda para 1984 da Newsweek, que inclui uma secção sobre os hábitos comerciais da Europa, diz, quando chega a vez de Portugal, que convém «chegar 15 ou 20 minutos depois da hora marcada, para evitar longas esperas». É um conselho útil, porque os Portugueses são muito especiais em questões de pontualidade. Vir em cima da hora, como indica a própria bruta1idade da expressão, é uma actividade mais do que levemente obscena e socialmente desencorajada. Em Portugal, quem cai na asneira de chegar à hora marcada arrisca-se a que digam dele, que «veio logo à ganância, o sacana do estrangeirado».

Basta ver que, em português, um «caso pontual» indica um fenómeno excepcional, imprevisível e insignificante. «A hora marcada» é uma mera referência heurística para situar vagamente um evento de cuja ocorrência só Deus tem a certeza. Tal como dizem as mulheres de vida difícil aos clientes impetuosos («Ó filho, não me marques...»), as horas portuguesas também não gostam de se deixar marcar. E quem as marcar, arrepende-se.

Os Portugueses sabem que estão no meridiano britânico de Greenwich, mas é considerado rudeza denunciar este facto ao mundo. Se têm uma adoração obsessiva pelos cronógrafos de pulso que fazem bip bip, têm luzinhas de Natal e estrelam ovos, é só para se poderem certificar que continuam alegremente atrasados. Se o país tivesse um lema, seria certamente «Não deixes de deixar para amanhã o que já ontem deixaste para hoje».

Noventa e nove por cento da produção literária portuguesa encontra-se, como todos sabemos, «no prelo». Há vários sécu1os que astrólogos e neurólogos de gabarito internacional tentam situar esse obscuro lugar onde se diz vegetarem as obras-primas do futuro, mas pouco se conseguiu apurar, excepto tratar-se, natura1mente, de uma vasta zona sideral, situada na parte anterior esquerda do cérebro (também conhecida por «gaveta») do escritor ou editor, que se manifesta sobretudo à mesa do café e que tem a particularidade mental de não conseguir albergar cromossomaticamente o conceito do «tempo».

O que em Portuga1 não está no «prelo», está «na forja», que fica mesmo ao lado e que é um bocado pior. Os responsáveis dizem sempre, em defesa deles, que «devagar se vai ao longe». A ciência moderna, porém, permite atestar que devagar mais depressa se vai ao ar do que ao longe. Hoje em dia, são poucos os que lá querem ir (ao «longe») e por isso o mais habitual é não se ir. E mesmo assim, porque estamos em Portugal, a maneira como não se vai também é, evidentemente, devagar.

Isto é tanto assim, que até a voz da menina que responde quando discamos o «15» no telefone pertence a uma artista estrangeira. Muitas candidatas portuguesas quiseram preencher o lugar, mas o melhor que alguma delas conseguiu, segundo os registos da TLP, foi «Lá para o terceiro ou quarto sinal, ou lá como é que isso se chama, serão aí umas nove e picos, mais coisa menos coisa».
Por causa de tudo isto, o país inteiro está atrasado. A vanguarda está à retaguarda, e a retaguarda já não aguarda absolutamente nada. Uns e outros fazem revistas que, tal como as formações de autocarros atrás citadas, saem juntinhas em números triplos e quádruplos, cerca de seis a nove meses depois da temida «data anunciada». A «data anunciada», em Portugal, tem um significado exclusivamente sebastianista. Nessa data, Dom Sebastião aparecerá na barra, numa caravela branca com o segredo da entrada para a CEE, e as revistas e os comboios, as consultas no dentista e os programas de televisão, tudo sairá a tempo, na «data anunciada» de que nos falou Bandarra.

As únicas coisas às quais os Portugueses chegam cedo são, em primeiro lugar, aos desafios de futebol e, em segundo lugar, à conclusão que não vale a pena chegar cedo a seja o que for.

«Mais vale tarde que nunca», diz o povo, mas o ditado esquece-se de elucidar que, para os Portugueses, não há nada, nem cedo, nem a horas, nem a tempo, que va1ha mais do que tarde. Tarde, pela tardinha (que outro povo trata a tarde com tanto afecto diminutivo?), é quando mais bem se não fazem as coisas que há para fazer. A «manhã» não existe. Dê-se a contracção de a e de manhã e ver-se-á que a única coisa que existe em Portugal é «amanhã».






miguel esteves cardoso
explicações de português
assírio & alvim
2001


29 março 2007

se tudo fosse só teu (uma despedida)





Por quanto em mim
De ti havia
Que a alma me enganava
Em nova vida
Dei a sombra
Que me queimava
E era minha,
Mas mesmo assim
Não me seguia.


De tanto querer
Achei em mim
A pessoa querida
Que eras tu,
E assim esqueci
Por completo
Quem era
Ao certo
Quem te queria.

Era eu,
Fui sempre eu
Que tu,
A ver comigo,
Que com o meu amor,
Nada eras
E nada tinhas.

Por muito ter amado
Em tão pouca coisa
Percebi quanto doía
O que também me era dado:
Amar sem querer mais nada
E deixar-me ficar
Só por ti.

Em vez de também me dar
Para teu mal
E para meu,
Calava-te,
Amava-te,
E mais não fiz
Senão isto,
Que tu um dia dirás
Se é verdade ou não,
Calava-me, amava-te:
Recebia-me.

E ia deitando tudo fora,
Tudo o que foi teu
E me foste dando,
À medida que mo davas.
Como havia de guardar
O que não me pertencia?

Fui recebendo.
Depois dei por mim
E sabes que mais?
Morria.
Alguém morria.

Por tudo o que uma vez foi teu
E teu, apenas,
Amor,
Alguém morria
Mas era alguém

Que não era eu.








miguel esteves cardoso
apeadeiro
revista de atitudes literárias
primavera de 2002