13 outubro 2019

raul brandão / memórias




[…]

… Outra época maravilhosa em que os amigos são pedaços da nossa própria alma. Formámos um ser. Descobrimos com eles não já o mundo exterior, mas o mundo mais vasto do espírito. Comungámos juntos. Com alguns quebrei, mais tarde, por impaciência, e ainda hoje o sinto. Uma parte do meu ser ficou tão magoada que não gosto de lhe tocar: dói-me sempre. Há-de doer-me até à morte. Mas então a amizade é um sentimento delicioso e com o viço da primeira folha, quando irrompe e estremece.

O mundo, nesse tempo, restringia-se, para mim, à Foz e a Leça, que não separo do pequeno pescador de camisola azul, que me seguia com os olhos deslumbrados – o Nel – e das figuras de António Nobre e de Justino de Montalvão.

Não os separo também do mar, do rio, dos barcos, da atmosfera cheia de cor e de deslumbramento, onde, misturada à poalha do mar, à luz doirada e a todos os reflexos do sol, anda a exaltação da nossa própria alma… Foi num barco que conheci o Justino Montalvão, foi num barco, ao lado dum velho pescador, que conheci o António Nobre, que logo me perguntou se não tinha uma Bíblia que lhe desse.
     – Para que quer você a Bíblia?
     – Para deitar a cabeça, quando for no caixão.

[…]



raul brandão
memórias
relógio d´água
2018






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