Uma arte poética, admitida a
relação analógica tradicional entre as estruturas do homem e do universo, é
sempre uma cosmogonia. As leis que regem os mais íntimos e essenciais fenómenos
da criação humana dizem respeito à mesma realidade que criou o homem, dele fez
a sua expressão impermanente, mutável como a expressão do próprio homem, mas
mais livre, porquanto a humana expressão é reflexo doutra realidade prestigiosa
e a expressão dessoutra realidade não é reflexo senão do infinito, cujo
conceito e cuja imagem próxima do olhar humano nos espiam por trás de cada objecto,
órbitas vazias geradoras da angústia que raspa, imagem após imagem, todas as
que não reflectem a Lei, e estas são as que exprimem termos de encontro
superficiais e falsos, ou simplesmente menos reais, com o mundo e com a vida, comodamente integrados na consciência
humana por tudo o que no homem é criação intelectual mas não é conhecimento.
A análise dos fenómenos da
criação humana à luz de uma mítica Consciência universal pode, por alguns, ser
considerada demasiado arbitrária, embora, e no plano sensível, sejam muitos os
fenómenos que permitam elaborar uma relação
entre o incriado e a sua emanação — o cosmos, e a inconsciência e a sua
emanação — a consciência, cosmos e consciência que se organizam similarmente segundo
uma sua interna necessidade— a de saírem do caos e revelarem-se, limitando-se num
objecto onde a ideia encarna para que a consciência que a criou se conheça. O
objecto criado é depois reabsorvido pela noite de onde saiu, regressa ao caos,
apagada a Ideia viva que o formou, extinto o reflexo do arquétipo universal, da
Ideia pura que alimenta o homem e os seus esforços para alcançar de si mesmo a
Consciência absoluta, Ideia que é ela própria alimentada por esses esforços,
sem os quais, admitindo que a consciência humana dela não teria conhecimento se
dela não fosse um reflexo, não existiria.
Considerar arbitraria a realidade
mítica do mundo que o homem pretende alcançar equivale a negar a possibilidade
de o sujeito se poder equivaler ao
seu objecto, equivale a negar ao homem a conquista de um estado unificado da
consciência, equivale a negar a Poesia.
Porque o poeta é o homem que consegue, quando o seu Verbo encarna, alcançar
estados de consciência absoluta, de absoluta vidência. O poeta é precisamente o único homem cujo funcionamento
espiritual não é arbitrário, é real,
o único que consegue mover-se no presente e dele falar. O resto é ignorância.
É claro que este poeta a que me
refiro é raro, tão raro como são raros os verdadeiros iniciados, e isto porque
o conhecimento pressupõe a anulação
individual de quem conhece, depende da capacidade que o eu porventura possua de
substituir o seu inconsciente particular pelo inconsciente colectivo, aplicando
contra este a sua consciência, diluciidando-o, e assim dilucidando uma primeira
realidade mais vasta e concreta que a
realidade do eu, condição básica para
o conhecimento da Realidade Mítica, o qual é pura descontingenciação, libertação.
Para que o eu
prossiga sem falhas o seu esforço pelo conhecimento, precisa de encontrar
formas definitivas, reais formas de comunicação com os outros eus. Sem essa
comunicação não pode provar, não pode medir absolutamente a veracidade da
expressão do real no seu corpo.
A expressão do real é a Poesia.
A expressão do real no meu corpo é o Teatro.
O Teatro é a Poesia concreta.
Ritmos e sons, eis o concreto. Eis o objecto original, a redução ao
sensível de todo o conceito, de toda a ideia criadora. O Teatro é a expressão
da necessidade demiúrgica da consciência humana: concretizar ritualmente, por
transmutação analógica, o primeiro ritmo e o primeiro som. Integrar a
consciência no corpo, carregar o corpo dos prestígios criadores que circulam na
natureza — eis a função do Teatro. O lugar onde esta operação se efectua é o
único onde o homem se pode inserir na sua realidade total, o único onde o
poeta-actor pode fazer agir a realidade total sobre a humana inconsciência da
sociedade e pode vencê-la, o único onde pode
obrigar a sociedade a participar da sua consciência, a ser dela elemento
activo e integrante.
Ser absolutamente consciente —
eis o primeiro objectivo. Eis a condição especiosa e teatral para ultrapassar a
nojenta situação de ser condicionado, fantoche do Bom e do Justo, imundo agente
dos sentimentos, dos juízos, da luxúria, do temperamento «humano, demasiado
humano». «O homem é uma coisa que deve ser ultrapassada» (suponho que a
afirmação é de Nietzsche), esta é a primeira aquisição a purificar a nossa
vontade, o primeiro esboço terrivelmente inquieto de um sangue destinado a ser
livre ou, pelo menos, a tentar sê-lo até onde o permitir a sua resistência à
força da dor.
ernesto sampaio
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes
da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985
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