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28 dezembro 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
 
III
 
Amor, amor, amor, um mal que ainda perdura
esta ferida grande, anónima, obscura,
esse beijo letal que vai da boca ao útero,
esta esperança vã, o desespero inútil.
 
Amor, amor, amor, meu ódio e meu horror,
amor, quisera não ter sangue, não ter corpo,
e te expulsar de mim como a falaz demónio
ou anjo que tingiu de fogo as asas brancas.
 
Chama voraz da vida incinerada em sonho,
Amor, por que me acordas para o dia novo
com promessas de voo, se me ardo em chão?
 
Ai, se me fora dado exorcizar-te, Amor…
(carvão posto em repouso, brasa alheia ao sopro)
… ai se me fora… – AMOR! AMOR! NÃO ME ABANDONES!
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



08 agosto 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
II
 
Corpo meu, tão gentil, tão malferido,
partido e repartido nos transvios,
que repouso terás no chão da vida
se Amor te mata assim dia-após-dia?
 
Ainda se a morte fora só alegria
do reencontro dos amantes idos,
eu ia rindo empós esta agonia
a reviver os rostos hoje findos.
 
Mas obscuro é o claro fim, e eu fico
a carrear-te, corpo sempre aflito
entre a fome diária e a infinita.
 
Corpo meu, alma minha, quem diria
o que é a carne e o que seria o espírito

quando o Amor, gentil, une o indiviso?
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



17 janeiro 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

  

 

            Porque, enquanto no mundo houver memória,

            Será minha escritura teu letreiro.

                                                                                       Camões


I
 
Os corpos dos varões idos e amados
que aportaram a esta praia solitária
vindos de navegar mulheres várias,
em naus de desventura naufragados,
não os cobrirei com a água dos meus olhos
para esculpir com sal estátuas mortas,
antes farei que ancorem na memória
onde meu canto lhes dá vida e volta.
 
E a todos chamarei AMOR, que o nome
é o anónimo cantar de um mesmo homem.
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986