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30 julho 2024

irene lisboa / saímos os três da casa de g..

 
 
SAÍMOS os três da casa de G.. E fomos esperar um autocarro. Ele disse-me: há-de vir a nossa casa. E ela ficou calada.
Têm uma casa nova, encantadora, oiço dizer, onde recebem a nata das letras, política e artes, onde deram e darão grandes saraus, etc.. Mas porque havia eu de ir a casa deles, se até aqui nunca de mim se lembraram? Conhecemo-nos há trinta anos, perto ou certo.
E nunca me retribuíram um certo convite, feito e aceite há dezoito, em que lhes ofereci um jantar de galinha… Ou então, ele mo quis pagar ontem: ao que ela ainda se recusou.
Nesse tal dia, ou noite, tão recuados! ela, preciosa, desdenhosa, dizia com aquela graça franca de quem se sente fora do seu ambiente, desnivelada: e eu que detesto canja! tudo o que cheire a galinha…
Uma mulher encantadora, natural, amável, sociável e caprichosa: com isto se diz tudo.
 
 
irene lisboa
1949 a 1957
solidão II
portugália editora
1966





 

24 fevereiro 2024

irene lisboa / sobre as palavras

 
 
 
SOBRE as palavras, sua importância e oportunidade, seu valor, bastas vezes me tenho detido.
 
No próprio acto de escrever (como as palavras, afinal, é que o permitem) esta reflexão de acode e me peia tanta vez: a linguagem antecede ou sucede o pensamento? que parte faz dele?
 
Nem a mim própria me pareça tola a minha pergunta!
 
A linguagem aflui-nos, ou vem-nos num certo encadeamento mental em que nos envolvemos, em que penetramos, como um surto natural, mais ou menos fácil, do espírito. (Lembremo-nos dos faladores solitários, faladores sem ouvintes.) E assim, sobre uma rápida, esporádica ou fugidia ideia, qualquer ideia ou sensação – tão difícil é desembaraçar estas daquelas! – as palavras entram num jogo de certa independência, mudas ou articuladas, ou até mesmo gesticuladas e vagas, sobrepondo-se à tal coisa (ideia ou sensação), perseguindo-a e fugindo-lhe e enredando-se nela… confundindo-se e dilatando-se à custa dela, a ponto de a afogarem, não poucas vezes… de a excederem!
 
É que as palavras têm espírito e vida por si próprias. O que tão bem se patenteia musical e sentimentalmente no verso. Um espírito que arrasta e sujeita os seus forçados manejadores, mau grado o desejo de supremacia e de domínio da parte destes.
 
Mercê das palavras usadas se salta de um para outro lado… Chegando nós a tornar-nos confusos e prolixos, pouco substanciosos, acorrentados àquele tal sortilégio.
 
Mas é amor o que as palavras em nós despertam! Um gosto de as seguir, de as explorar e até de as esperar pacientemente para que qualquer coisa interior, nossa, saia do seu limbo.
 
E não serão elas próprias que a criam, frequentemente?
 
 
 
irene lisboa
da estrela
solidão II
portugália editora
1966
 




13 junho 2023

irene lisboa / há muito quem gabe o gosto de partir

 
 
HÁ muito quem gabe o gosto de partir e eu mesma já o tenho invejado. Aqui há não sei quantos anos a minha vontade era partir, ter saudades, deixar isto, não assentar o pé, ir voando. Já se sabe que era a fantasia que me levava. O mundo era pequeno e pouco para mim…
 
Hoje penso que partir é muito custoso. Partir é deixar um bem ou um mal, real e conhecido, pelo vago sem delimitação. Vai.se vivendo e tudo se nos vai restringindo… Aquilo que se não conhece, como será? Teremos defesa, resistência, não haverá surpresas, lutas, incapacidade de acomodação?
 
E aquele ante-partir, aqueles dias de desarreigar, de pensar no cá e no lá?...
 
 
 
irene lisboa
queixa
solidão II
portugália editora
1966
 



30 abril 2023

irene lisboa / se eu fosse…

 



 

Se eu guardasse patos.
Mas não figura romântica, dama, estilizada.
Não como a que se debruça risonha, regaçada,
para o lago pequeno do jardim da Estrela.
 
Se eu guardasse patos, de pé descalço ou de
tamancos…
De cana na mão, malhada do sol, esgrouviada,
sem graça nem disfarces!
Levaria o meu rebanho à minha frente, direitinho
à pancada.
Vá tu, mole. Vá tu, mal mandado. Vá, vá!
 
Real guardadora de patos de borda-de-água…
Se eu fosse!
Patos, meus cuidados, batidos e dóceis correríeis
como gamos.
 
Ou se eu fosse uma mulher de canastra.
Das que atravessam a correr as pranchas, carre-
gadas e airosas.
Tantos passos para lá, tantos outros para cá…
Entre o barco e o cais o espaço é curto e
debaixo há água.
E a prancha ginga.
Mas elas correm pesadas, seguras e rítmicas.
 
Ser uma mulher de canastra…
Se eu fosse!
 
 
 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991
 



02 dezembro 2022

irene lisboa / quando morrer

 



 

 
QUANDO morrer ninguém dirá (e isso que me podia importar já!) fez… disse… era… etc.
 
Porque eu não digo, nem faço, nem sou. Ninguém me deu tempo nem espaço para as revelações. Dona de nada… sem autoridade… passando ao lado de pobres e de ricos que dizem: aqui estou!
 
Mas eu não estou, nem sou. Algumas vezes, poucas, me interroguei e a resposta era sempre confusa: deixar que os outros sejam…
 
 
irene lisboa
velhas notas ressuscitadas (1944 a 1949)
solidão II
portugália editora
1966





 


14 novembro 2021

irene lisboa / outono, um dia

 
 
Cidade, velha cidade,
a ti regresso!
 
Outono, voltaste,
mas nada me trazes,
nem gostos,
nem lembranças,
nem saudades…
 
Nunca tive saudade!
A minha pena,
dor de não ter,
ou de lembrar,
foi sempre rápida e amarga,
nunca dolente,
como é a saudade…
Engano-me?
 
Enfim, outono,
Voltaste! sentimos-te.
Amável, caricioso tempo,
o mais suave do ano!
E eu voltei, também,
aqui estou…
como um molusco
agarrado à concha,
adaptado,
calmo,
indiferente.
 
Passou tempo…
dias, meses,
que me não remoçaram
nem agitaram.
Durante eles vi o mar.
 
O mar é formoso.
Mais formoso
que as casas e as ruas…
Quanto as estranho!
Noto.
Escuras, desiguais!
¿Mas que me importam as casas
e até o mar?
Tudo são quadros
e solidão.
 
É grandioso o mar.
Belo, mas confrangedor…
violento, monótono.
 
Mas que estranheza há em mim,
que há em mim?
 
Há bocado,
daquela janela,
vi uma gaivota.
Tudo me parecia incaracterístico.
Mas a gaivota
lembrou-me o mar…
 
Ó, estar deitada na areia,
e ver passar por cima,
longe,
numa onda de sol,
as gaivotas brancas,
de asas abertas,
refulgentes,
avançando sempre
e parecendo imóveis…
é ver uma coisa ideal,
quase irreal.
 
As gaivotas…
 
Nada! Nem elas,
nem o sol,
nem a névoa,
nem as rochas,
nem a água
têm vida como nós,
nos interessam!
Entristecem-nos…
 

 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991






 

28 julho 2019

irene lisboa / fins de junho




Sinto-me olhada a furto.
Olham-me,
espiam-me
com modo céptico
e meio terno.
Entra em mim,
toma-me inteira
um estranho retraimento,
desdém,
ou indiferença.
A minha vontade é de fugir,
de me libertar,
de me recuperar…

Depois, fora,
oprimida
e entristecida,
desejo reconstruir,
sem saber bem como,
o fio trémulo da vida…
Desejo sentir-me apreciada,
enobrecida!


irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991







08 agosto 2018

irene lisboa / monotonia




Começar, recomeçar, interminamente repetir um
monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in-
sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver…
Andar como os dementes pelos cantos e repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã-
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.

Monotonia. Arte, vida…
Não serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar.
Que te manejarei hábil e serena.
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.


irene lisboa
outono havias de vir latente triste
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991








06 abril 2018

irene lisboa / outro dia




Escrever assim…
escrever sem arte,
sem cuidado,
sem estilo,
sem nobreza,
nem lindeza…
sem maior concentração,
sem grandes pensamentos,
sem belas comparações,
não será escrever!
Mas assim me apetece,
que o entendam ou não,
que o admitam ou não,
escrever…
estender
o delgado, esfiado,
inoperante
pensamento.
Este pensar
não é actuar mentalmente,
sequer,
é descansar…

Estive deitada,
e agora estou sentada.
Deitada via as nuvens,
brancas do sol,
brilhantes,
enoveladas.
Tanta brancura
à frente dos meus olhos!
Afogava-me nela.
De que me lembrava?
Nem eu já sei.
As ideias do dia,
picadas sem dor,
a que sorria,
como apareciam, desapareciam…
Realmente,
só na hora,
no pleno instante
de nos assaltarem,
frescas e imprevistas,
têm o seu sabor.

Deitada,
com a luz nos olhos,
sonhava… sei que sonhava…
na única coisa em que se sonha,
na única coisa em que se pensa,
naquela que é a trama,
o fundo ora baço,
ora vivo,
persistente e teimoso,
das nossas preocupações…

Antes ensaiei vestidos,
mas todos usados…
vestidos do verão,
leves,
remoçantes,
que dá gosto ensaiar.
É uma experiência que se faz…
Vemo-nos ao espelho
e ele que nos diz?
Tudo o que desejamos
e também receamos…
Que me diz o espelho?
Fala-me dos olhos,
fala-me do corpo,
engana-me…
Mas também me diz,
tantas vezes!:
nada esperes,
és tola.

Ai que podem os vestidos,
que podem os espelhos?
Tempo!
Tu é que tens a última palavra!
Corres,
e, sem dó, tudo inutilizas.
Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!
Destrói! Mata!
Que o pior mal,
de todo o pior,
é esperar,
sempre esperar.
  
Lisboa 1936



irene lisboa
um dia e outro dia….
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991






11 novembro 2017

irene lisboa / passeios



1
Não parar.
Nunca parar, nem para descobrir a água, nem
para ouvir as cigarras, o vento, o corvo des-
garrado.
Andar!
Tortuosos, solitários, fáceis caminhos, ir-vos sem-
pré seguindo.



irene lisboa
umdia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991


18 novembro 2016

irene lisboa / assim se vive



Anda uma pessoa fechada consigo.
Assim se vive.
Se vive, se finge que vive.

Lindos dias
Atravessam-se jardins, vê-se gente.
E a paz e o movimento e fora e dentro de casa
um vácuo, um vácuo!

Não dei aquele beijo…
Não o podia dar.
Mas senti que mo pediram.
Aquela mansidão!
Não era bondade, era só desejo.

Não dei aquele beijo que devia ter dado e acei-
tado se fosse mais hábil.
Dado e aceitado sem amor profundo.
Amor profundo!...
Tão raro, tão imprevisto, tão mal praticado!
Gosto do amor? Talvez.
Desespero, desespero apaixonado.



irene lisboa
umdia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991





12 março 2016

irene lisboa / não




Sentada e brincando com a areia…

Há tanto tempo, tantos meses que não vejo areia

Deixando correr a areia das mãos distraidamente…

É a areia que me dá a imagem, a plástica expres-
são dos meus pensamentos.
Enchem-me a cova da mão, aquecem-na e logo
começam correndo, perdendo-se…
vem gente, passantes, vagos interessados  e incre-
pam-me:
Que fizeste dos teus pensamentos?
Não os vêem, grãos de areia disseminados.

Mas este pó sem consistência, imponderável, dos
pensamentos, por força se há-de fixar e brilhar?
Não.
O pó, a poeira no ar se respira, o próprio bafo
as espalha.



irene lisboa
um dia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991



09 fevereiro 2016

irene lisboa / chuva



Chuva nos vidros.
Nada, chuva nos vidros!
Espaçadas, casuais, agudas, oblíquas, agulhadas.
Chuva que se anuncia, que apenas se anuncia.
Pingas que vão secando. Se vão arredondando,
tornando imateriais e invisíveis.
Vagas coisas. Como quê?
Como as coisas da minha vida.
Nem já chuva nos vidros…
Já não de vêem os sinais.



irene lisboa
um dia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991



28 janeiro 2016

irene lisboa / pequenos poemas mentais



           Mental: nada, ou quase nada sentimental.

I

Quem não sai de sua casa,
não atravessa montes nem vales,
não vê eiras
nem mulheres de infusa,
nem homens de mangual em riste, suados,
quem vive como a aranha no seu redondel
cria mil olhos para nada.
Mil olhos!
Implacáveis.
E hoje diz: odeio.
Ontem diria: amo.
Mas odeia, odeia com indômitos ódios.
E se se aplaca, como acha o tempo pobre!
E a liberdade inútil,
inútil e vã,
riqueza de miseráveis.

II

Como sempre, há-de-chegar, desde os tempos!
Vozes, cumprimentos, ofegantes entradas.
Mas que vos reunirá, pensamentos?
Chegais a existir, pensamentos?
É provável, mas desconfiados e inválidos,
Rosnando estúpidos, com cães.

Ó inúteis, aquietai-vos!
Voltai como os cães das quintas
ao ponto da partida, decepcionados.
E enrolai-vos tristonhos, rabugentos, desinteressados.

III

Esse gesto...
Esse desânimo e essa vaidade...
A vaidade ferida comove-me,
comove-me o ser ferido!

A vaidade não é generosa, é egoísta,
Mas chega a ser bela, e curiosa!
E então assim acabrunhada...
Com franqueza, enternece-me.

Subtil
A minha mão que, julgo, ridicularizas,
de que desconheces a suavidade,
cerra-te pacificamente os olhos
e aquieta benignamente o ar.
Paira sobre a tua cabeça, móbil, branda,
na prática de um velho rito,
feminil, piedoso, desconhecido e inconfesso.

IV

Ó luxúria brutal, perversa e felina,
dos outros, alheia,
sem pensamentos nem repouso!
retira-me da frente o venenoso cálice,
a tua peçonha adocicada.
Que a morte, o nirvana, a indiferença
dos longuíssimos anos sem sobressaltos, me retome.

Abro os braços e meço: cá, lá... cá, lá...
solidão, infinita solidão!
E neste movimento, neste balouço, adormeço,
Cá, lá... morte, vida... morte, vida...
Todas as ausências, todas as negações.

V

Os poetas cumprimentam-se, delicados.
Cada um como seu metro, o seu espírito, a sua forma;
as suas credenciais...
Mas são simpáticos os poetas!
Sensíveis, femininos, curiosos.
Envolve-os um mistério.
Não! Esta é a linguagem de toda gente: o mistério...
Que mistério?
Os poetas são apenas reservados, são apenas...
perturbados e capciosos.

VI

Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar.
E as árvores soturnas não se mexem.
Estio!
Não se vêem bulir as árvores, em bloco, ou aos arcos,, estampadas...
Elegante Lapa! Sol fosco, paisagem de manhã.
A gente do sítio, pobreza e riqueza, ainda recolhida.
Aqui, uma janela discreta que se abre, preta, cega.
Ali outra fechada.
E esta alternância, bastante irregular, vai-se repetindo, repete-se...

E eu, ai eu! Prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada!


irene lisboa
um dia e outro dia…
1936




12 fevereiro 2015

irene lisboa / amor



Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta.
Poderosa e plácida.

Amor, tão chão de Amor,
Que sensível és…
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!

Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.

Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida…
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?

  

irene lisboa
1892-1958