06 abril 2018

irene lisboa / outro dia




Escrever assim…
escrever sem arte,
sem cuidado,
sem estilo,
sem nobreza,
nem lindeza…
sem maior concentração,
sem grandes pensamentos,
sem belas comparações,
não será escrever!
Mas assim me apetece,
que o entendam ou não,
que o admitam ou não,
escrever…
estender
o delgado, esfiado,
inoperante
pensamento.
Este pensar
não é actuar mentalmente,
sequer,
é descansar…

Estive deitada,
e agora estou sentada.
Deitada via as nuvens,
brancas do sol,
brilhantes,
enoveladas.
Tanta brancura
à frente dos meus olhos!
Afogava-me nela.
De que me lembrava?
Nem eu já sei.
As ideias do dia,
picadas sem dor,
a que sorria,
como apareciam, desapareciam…
Realmente,
só na hora,
no pleno instante
de nos assaltarem,
frescas e imprevistas,
têm o seu sabor.

Deitada,
com a luz nos olhos,
sonhava… sei que sonhava…
na única coisa em que se sonha,
na única coisa em que se pensa,
naquela que é a trama,
o fundo ora baço,
ora vivo,
persistente e teimoso,
das nossas preocupações…

Antes ensaiei vestidos,
mas todos usados…
vestidos do verão,
leves,
remoçantes,
que dá gosto ensaiar.
É uma experiência que se faz…
Vemo-nos ao espelho
e ele que nos diz?
Tudo o que desejamos
e também receamos…
Que me diz o espelho?
Fala-me dos olhos,
fala-me do corpo,
engana-me…
Mas também me diz,
tantas vezes!:
nada esperes,
és tola.

Ai que podem os vestidos,
que podem os espelhos?
Tempo!
Tu é que tens a última palavra!
Corres,
e, sem dó, tudo inutilizas.
Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!
Destrói! Mata!
Que o pior mal,
de todo o pior,
é esperar,
sempre esperar.
  
Lisboa 1936



irene lisboa
um dia e outro dia….
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991






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