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21 abril 2021

nuno vidal / primeira oração

 
 
O orvalho da manhã
na caneca de café com leite.
A luz sem sombras
Que vem do oleado do céu
pelos vidros de poeira
presa da precipitação.
O brilho dos arruamentos
conduz ao cotovelo
onde podias vir estacionar
por mim. Pela saudade.
Eu apagava o cigarro embaraçado
do hálito e do desalinho.
Queres café?
Sem conseguir olhar-te
como se não estivesse em minha casa
como se remediar não fosse um predicado.
O teu cabelo cresceu.
As mãos fortuitas no cós da saia.
Sinais apagados como a prece
na janela desembaciada
por onde estarias a olhar
o subúrbio da alegria franciscana
se isto fosse mentira de mercê
obrigado à minha irmã chuva.
 
 
nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





 

29 março 2017

nuno vidal / coda



Quando falas duma estrela
falas da ruiva, da polícia,
de ti? Falas da falta.
Uma cova de leite.
Pode ser um brilho que prende
o casaco, um talismã de procela.
Aquilo fica connosco até
de madrugada, quando reparamos
obriga-nos a não dormir
e por vezes tossimos um pouco.

Mas ninguém sabe da cera
iluminada por trás, pensa
cada fervor de solitário.
Depois vem a ver uma fotografia
de novecentos e sessenta e sete
e lá está bem melhor. Com
semelhante sediela se ata
o gosto para versos para ninguém.
Há uma rapariga que vê.
Liga com a sua infância
e vai tornar a filosofia inútil.


nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




20 setembro 2013

nuno vidal / responsoria



Levaste a vida a dançar
agora tens só um cacho d´uvas
uma branda moeda no bolso de trás,
e a custódia dos perigos.

Foram, não foram, os filhos
de Job? disseram isto
a noites que sucedem a noite
como um cego exemplo.

E tu raladíssima.
Há sempre tanto a fazer,
não é, e porém a cuidados
o pior é para ti? Deixá-lo.

Quando o colóquio da tristeza
cair, estarás num muro de pedra
as algas florescem entre os joelhos
e eu apanhei a tua écharpe, vês
tu endoideceste de vez
com  a loiça por lavar e esse
estupor que me despede.

Vais na quarta paixão
eu misturo os tempos todos
e o Senhor que nos acuda.



nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



26 março 2013

nuno vidal / um fio



É de quanto precisas o amor
e de um espelho. As perguntas
do teu lado do telefone conduzem
a isto, uns olhos no tecto julgadores.

Completar uma interrupção é infeliz
e são desapontamentos antigos.
Deixa-me todavia ouvir-te que
há saudades e se fosse e pudesse.
Transtorno-me momentaneamente
por um inesperado de imaginação.
É a tua voz ou as tuas narinas
uma afoiteza familiar.


Não não. Fui eu que me lembrei.
Dois putos que se viram com uma
casa, dois ou três limites, coisa pouca.
E eu ia para o frio um autocarro
à uma da madrugada tu de barriga
para baixo no mesmo incómodo.
Ao menos temos isso.



nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




09 novembro 2010

nuno vidal / lachrimae coactae







A locusta sagrada vinha pela noite
rilhava a esperança posta para amanhã
nas pancadas repetidas das gelosias.
O pulso apertava o fim sem chegada
mas que fazia morrer cada dia
tinha
de haver sempre para quê?

Aqui era a decrépita restaurada mão
aleivosa do amor a dobrar-nos
no cadafalso, com escarninha mesura.
Pelo soalho cotão, o cheiro
restado dos lençóis, doçura
tudo em rodilha, cinza, exaltação.

Pelo lento valado do verão
de tentearmos encontros, as vésperas
num visco enorme de sol tardio
julgando cada dia por roubado
ao destino que não pertencia
e corria por outro regato.
Meu Deus, a tua sede cortada.

Tens sempre o teu albergue, os teus
inestimáveis bens comungados
e porém. Os espoliados d´aquém
mar, que diabo os carregue?
Mas não fiques, não oiças
não quero, eu só quero que
a noite não suceda.

Eu desamparo-te o foral eu
nem vale que me cale
quedo-me sem pátria que nem
tinha e houvera unhas tangia
uma canção de protesto triste.






nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990