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01 maio 2023

alexandre o'neill / o tabaco da vida

 



 
De amor cantando,
sem nele demasiado acreditar,
dei a volta ao coração (demorei anos):
está só – mas sem nenhuma vontade de parar…
 
Desiludidos? Paciência, amigos…
Bebamos mais, fumemos, refumemos,
entre as mulheres, o tabaco da vida.
Como cedilhas pendurados que felizes seremos,
 
exemplares cretinos nesta noite comprida…
 
 
 
alexandre o´neill
poemas com endereço 1962
poesias completas
assírio & alvim
2000
 



21 janeiro 2022

alexandre o'neill / fim de semana

 
 
Estirado na areia, a olhar o azul,
ainda me treme o parvalhão do corpo,
do que houve que fazer para ganhar o nosso,
do que houve que esburgar para limpar o osso,
do que houve que descer para alcançar o céu,
já não digo esse de Vossa Reverência,
mas este onde estou, de azul e areia,
para onde, aos milhares, nos abalançamos,
como quem, às pressas, o corpo semeia.
 
 
 
alexandre o´neill
de ombro na ombreira 1969
poesias completas
assírio & alvim
2000
 



08 novembro 2020

alexandre o'neill / mesa dos sonhos

 
 
Ao lado do homem vou crescendo
 
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente
 
Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas
 
Ao lado do homem vou crescendo
 
E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida.
 

 
alexandre o´neill
no reino da dinamarca 1958
poesias completas
assírio & alvim
2000

 



27 dezembro 2019

alexandre o'neill / os amantes de novembro



Ruas e ruas dos amantes
Sem um quarto para o amor
Amantes são sempre extravagantes
E ao frio também faz calor

Pobres amantes escorraçados
Dum tempo sem amor nenhum
Coitados tão engalfinhados
Que sendo dois parecem um

De pé imóveis transportados
Como uma estátua erguida num
Jardim votado ao abandono
De amor juncado e de outono.


alexandre o´neill
no reino da dinamarca 1958
poesias completas
assírio & alvim
2000







30 abril 2019

alexandre o'neill / amigos pensados: gente de pau e manta



Nunca jantam, quando jantam,
onde almoçam, quando almoçam.

Condenados, pois claro, à revelia,
o que deixam é um nome nos arquivos
e continuam maus, sornas e vivos.

O aguardente aquece-lhes a casa,
o tabaco fuma-lhes a prosa.

Quando dormem,
nem a formiga os acorda.

Aceitam trabalho aqui,
Mas sobretudo acolá.

É gente de pau e manta,
ó minha linda,
gente que pra ti não há.


alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000






08 fevereiro 2018

alexandre o'neill / em pleno azul




Com horror mal disfarçado
sincero desgosto (sim!)
lágrima azul aflita
mão crispada de piedade
vêem-me passar cantando
calamidades desastres
impossíveis de evitar
as mães
                as minhas a tua
as que estropiam ternamente os filhos
para monótono e prudente
avanço da família

E quando paro e faço a propaganda
dos lugares mais comuns da poesia
há um terror quase obsceno
nos seus olhos maternais

Então prometo congressos
em pleno azul

Prometo uma solução
em pleno azul

Prometo não fazer nada
em pleno azul

sem consultar o «bureau»
em pleno azul

Visivelmente sossegadas
é a hora de não cumprir
de recomeçar cantando
calamidades desastres
ruínas por decifrar


*

Se eu não estivesse a dormir
perguntaria aos poetas
A que horas desejam que vos acorde?

Vamos decifrar ruínas
identificar os mortos
dormir com mulheres reais
denunciar os traidores
e atraiçoar a poesia
envenenada nas palavras
que respiram ausência podre
vamos dizer sem maiúsculas
o amor a vida e a morte

                *

E as mães
onde estão elas?

As mães rezam as mães
cosem farrapos de dor
as mães gritam
choram
uivam
no espesso rio de um sono
já quase só animal



alexandre o´neill
tempo de fantasmas 1951
poesias completas
assírio&alvim
2000






01 fevereiro 2017

alexandre o'neill / o tempo sujo



Há dias que eu odeio
       como insultos a que não posso responder
sem o perigo duma cruel intimidade
coma mão que lança o pus
que trabalha ao serviço da infecção
São dias que nunca deviam ter saído
do mau-tempo fixo
que nos desafia da parede
dias que nos insultam que nos lançam
as pedras do medo os vidros da mentira
as pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
que se espelha no céu
dias do dia-a-dia
comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho
o sono centenário
mal vestido mal alimentado
para o trabalho
a martelada na cabeça
a pequena morte maliciosa
que na espiral das sirenes
se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
onde o sórdido dá as mãos ao sublime
onde vi o necessário onde aprendi
que só entre os homens e por eles
vale a pena sonhar


alexandre o’neill
tempo de fantasmas
cadernos de poesia
novembro de 1951





26 abril 2016

alexandre o'neill / canção



Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito

E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece

E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
– mas que saiam de joelhos

E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem



alexandre o´neill
tempo de fantasmas 1951
poesias completas
assírio&alvim
2000




21 setembro 2015

alexandre o'neill / o café




                É difícil respeitar os mortos quando eles estão, positivamente, à mão de… semear. Como este.
                Vamos olhando para ele de soslaio e falamos baixo. Ora! O que temos é medo do dizque-dizque da vizinhança, ou não fôssemos uma decorosa família.
                A mãe está na cozinha, a fazer café. Cantarola, mãe, cantarola! Manda a vizinhança meter-se na vida dos outros (somos quatro inquilinos por piso, que diabo!). Cantarola, mãe, cantarola – que é o teu primeiro café de mulher livre!
                A mãe não cantarola, antes soluça. De espaço a espaço, um ganido discreto – mas o café está excelente, está forte, está CAFÉ! Pela primeira vez bebe-se café nesta casa!
                Mãe! Não era ele que estava sempre a dizer que o café o matava?


alexandre o’neill
as andorinhas não têm restaurante
publicações dom quixote
1970



12 abril 2015

alexandre o'neill / a noite ordinária




Que bela noite ordinária que eu passei!


Foi isso há tempos
num quarto defendido pelas pulgas
e vigiado por um vento carteirista
que morava (disseste)
mesmo ali ao pé.

O problema da luz foi o primeiro
(que resolvemos apagando-a)
depois o das torneiras
depois o do marinheiro
que queria entrar nos nossos problemas
depois o teu
o teu problema já na cama
- na cama com mais paciência que encontrei!

Depois
falaste com as torneiras
e eu gritei

Gritei por calculado amor
por brilhantina
por miséria
gritei até pela vitória
(supremo humor!)
dos que se batem contra a Cara-Alegre
gritei p'ra não parar de gritar
gritei «Chapultepec!» e «Oaxaca!»
(nomes por excelência afrodisíacos)
gritei até descobrir
o sítio em que te «escondias»
e então deixei-te gritar...

Quando a noite resignada
abria a última pálpebra
gritei ainda: «Mas é isto o espelho!»

E o dia levantou-se como um cão
(imagem acessível à família...)
da bela noite ordinária
que passei...



alexandre o'neill




15 janeiro 2015

alexandre o'neill / os cegos



                      «Ah, Madame! qu ela morale des aveugles
                      est différente de la nôtre!»

                                           Diderot, Lettre sur les aveugles



Durante os meses de inverno, podemos  ver  os cegos,
sobre  os  telhados,  acariciando  os  dedos - à procura
duma mãe que não seja virgem.

O  prazer  torna-os  redondos  como  ovos e o  vapor  de
água  vem  flutuar  sobre os  seus  bigodes sempre em
sangue.

Às vezes soluçam e deixam escapar da boca pequenas
coisas - o que não basta para interromper o jogo.

Quando  chega  a  primavera,  os cegos caem dos telha-
dos e começam a andar pelas ruas à procura da moeda
de perfil de luz.

  

alexandre o'neill





20 novembro 2014

alexandre o'neill / amor



O amor é o amor- e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos- e somos um? somos dois?
espirito e calor!

O amor é o amor e depois?!


 alexandre o'neill 





11 setembro 2014

alexandre o'neill / lego



1979

Está tudo conformado
ao triste proprietário.
Mecânicas ovelhas,
na erva de plástico,
têm pastor de pilhas
e cão pré-fabricado.
Flores marginam esse
às peças-soltas prado.

Eléctricas abelhas,
obreiras sem contrato,
daquele herbário extraem
um mel supermercado.
A malhada, no estábulo,
quase manga de alpaca
(é A VACA, sabias?),
dá leite engarrafado.

No céu (para colorir)
a nuvem, pontual,
aguarda a vez de ser
chovida no nabal,
enquanto o Sol dardeja
na eira proverbial.

Já tudo afeiçoado
ao bom do proprietário
(ervas, bichos, moral),
ele conta com os seus
e espera sempre em Deus.

("- Deste corda ao pardal?"").



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986



15 maio 2014

alexandre o'neill / o adjectivo



O adjectivo? Que horror
quando não é incisivo
quando atira para o vago
o pobre substantivo
ou o circunda de um halo
de um falso resplendor,
em que o ouro utilizado
não é ouro é só dourado!


O sol assim captado
é sol, mas sol de teatro,
ouro em falsete, luz barata,
e no prego não dá nada,


que o prego não acredita
(senão já estava falido)
nesse ouro sem quilate
que usam a valdevina

e o poeta que se orna
(que orneia, melhor diria)
de luzidias mentiras,
de poética poesia.

Disse pouco do que queria
na parte que antecede.
Se é discursiva, a poesia
também não serve...

Voltando ao adjectivo
(nada tenho contra ele):
é melhor ficar despido,
cosido co'a própria pele,

do que pedir emprestada
a piedosos enchumaços
aquela largura de ombros
que nos faz ginasticados,

quando, em verdade, não temos
mais ginástica do que essa
em que somos atletas
e que se resume apenas

no aguentar alegre
do peso quotidiano
(pode ser que para o ano
a terra nos seja leve).

Tal como do mal o menos
- e nesta regra redijo-
antes quero sóbrios termos
do que fingir que sou rico...



alexandre o'neill
abandono vigiado
1960




13 janeiro 2014

alexandre o'neill / amigo



Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

  
"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986




26 outubro 2013

alexandre o'neill / já



1972

já não é hoje?
          não é aquioje?

já foi ontem
          será amanhã?

já quandonde foi?
          quandonde será?

          eu queria um jàzinho que fosse
          aquijá
          tuoje aquijá.



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986



29 agosto 2013

alexandre o'neill / daqui, desta lisboa compassiva



Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;

Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...



alexandre o'neill
atrás dos tempos vêm tempos
1996



08 agosto 2013

alexandre o'neill / doceiras de amarante



Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

  
alexandre o'neill
feira cabisbaixa



13 março 2013

alexandre o'neill / em todo o caso




Remancha, poeta,
Remancha e desmancha
O teu belo plano
De escrever p'la certa.
Não há "p'la certa", poeta!

Mas em todo o caso acerta
Nem que seja a um verso por ano...



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986