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27 dezembro 2023

rui diniz / a solidão é a única certeza

 
 
A solidão é a única certeza.
Escutai: os pássaros gritam
nas azinhagas.
O relógio ausente,
a memória rachada.
Um porto de espera,
O odor vívido de mar.
já nem a tribo é refúgio
e a travessia do deserto
deixou um sabor amargo
na promessa nómada.
As ilhas são só origem
as cidades expulsam
o poeta.
Só a brancura da folha
estendida na mesa
coma sua ânsia de tinta
e o seu desejo de palavras
só essa virtualidade
nos é destino.
«A lâmpada funde-se
entre os dedos,
o silêncio apodrece.
Há flores por toda a parte,
definhando.»
a solidão é-nos destino.
Dela damo-nos conta
quando o encontro se desfaz,
entre gafes,
balbuciamentos.
Respiro, é tarde.
O teu retrato exude
a melancolia
de todas as distâncias.
Suspiro, cismo.
Um corvo crocita
de árvore em árvore.
No passado que se aproxima
terei sido esquecido.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




09 outubro 2023

rui diniz / o outono

  
Num lugar ao sul às aves lentas é dado
o trémulo saber do mar. As asas afastadas,
o sangue inquieto e um único olhar que
enfrente as mãos e o riso da intempérie,
estas aves deslocam-se e viajam, frequente-
mente até ao norte, a uma galiza sonhada
na pureza do céu, sob o trajecto das primeiras
chuvas, em novembro ou outro mês. O frio
transporta-as aos velhos palácios da Cantuária,
a instância do seu nome e do seu fulgor
arrasta-as até aos enormes salões e ameias,
num precipício comum, a aventura leda e
cega do animal, sua rota de acaso, sua beleza
imortal. Nos campos ásperos e molhados dos
manors, rostos, serenidade e demência, perante as frágeis
regiões que percorrem, abrem sua sulcada voz
e um instante é percorrido desse balbuciar alado,
sombras no céu da silhas, no exacto lugar
de junção das correntes do estreito, caudais
fortes e rápidos, certeza, decisão, um lugar.
Por fim, quando da travessia exaustas, se
Deixam vogar na solidez de um vento, e
Nesse semelhante gesto ao do amor, seu destino
Qual for entre si abertas deliberam.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022





17 agosto 2023

rui diniz / postal com guache

 
 
Com Zelkie, com Vania. Ou um remoto retrato
De Dorian Gray. Eis como vivo – digo para mim.
Há sangue. Bebem beer na gare do midi.
Mas eu exilei-me em Toledo,
comprei livros. Durmo. Como laranjas num bar.
E quando é noite sonho cavalos, como suas narinas
Alargando cheiram o perigo.
 
Com Tom, pergunto. Um tom de sinos em infâncias
com vasos etruscos. Dilatam os rostos nos sons. São
os criados, no fundo, varrendo o desconsolo. Há anos.
Com uma faixa azul sobre o vestido de organdi branco:
Vania vestida para beber gin. Ou um remoto cais.
Ou um quadro de bosch. Com figos,
na prisão.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




31 maio 2023

rui diniz / carta



 
Escrevo-te da noite girassolada dos trópicos. A riviera é
Um velhíssimo meeting de gerações de ébrios. As raparigas,
em Madrid, foram muito amáveis. Mas tenho razões para
voltar a barcelona, talvez no verão. Viajei no comboio
de Paris onde conheci alguns escritores refugiados. Um poeta
das astúrias ria com vinho escorrendo-lhe dos lábios.
Tenho a impressão que em alguns minutos te descrevia
O amor quente que me tomou em Almalfi, onde me lembro
de sebastian. Subitamente, num outono escuro, em Pádua de
que já falei, estive toda uma tarde a ler os teus poemas e
a chorar. Fazia um vento azulado e áspero e as mesas de
metal emitiam dolorosos sons ao longo da vazia esplanada.
Dos jardins queimados em Toledo não te direi nada. Ríamos.
Éramos um grupo estranho, talvez por um sopro azulado de
Nêsperas ter feito curvar os rostos até aos livros, numa
praia. Era o algarve, extenso, com a doce cal e os terraços
de choro nocturno, com o céu claríssimo do sul sacrificando
o que nos era possível criar, escrever, amar. Regressei
a portimão quando as flores de pesca se alongavam
pela margem. Alguém me escrevera de um café em Lagos
e eu conhecia mesmo vários poetas em badajoz, onde me
lembro de hemingway indo às touradas. Escrevo-te
pois, de um snack-bar, em pleno setembro, com um
rosto lindíssimo afundado numas nuvens, e destilando
o seu cinzento choro, com a guerra civil cantando
à minha volta os hinos roucos das ruas, suaves como
casacos de montanha, com a sua maquillage
de sangue e de crianças. Tudo são preparativos para uma
expedição que desconheço, mas lentamente em mim
apercebo-me de que também eu irei nela e verei os
aviões sobrevoando os vestidos escuros das mulheres,
onde os lábios desmanchados compõem ao som das
fogueiras nocturnas e nos vasos áticos do repouso,
as amadas flores de sal, os beijos ardentes que receberão
os poetas presos no Bósforo.
 
 
 
rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977



 

13 março 2023

rui diniz / explicação

 
 
Sem dizer que outrora entre lâmpadas
de seda o som cítio traçou um olhar
de incêndio. Sem dizer que o que sentimos
se transformou no que dissemos, e o
céu alagou-nos os olhos de uma véspera
de lágrimas. Então que nos fica por dizer?
 
Em bruxelas à noite as ruas e os bairros
humedecidos, encontrados, desencontrados.
A razão para escrever. Os sempre longos
losangos de chuva. A ínfima degolação
da mágoa como o apagar-se de um nome
na memória esgotada de azul e febrecitude.
 
Invento de um engenho que apesar dos
anos nos mantenha despertos para buscar.
Apenas os lábios de dessedentam com tais
palavras. Tal como os sobre a mesa pousados
escritos. Recordo-me de apenas uma mágoa.
De um cântaro deverão quebrado num
alpendre, depois do bulício e do sonho em
que o vi.
 
Sem descrever com amor os séculos e
as rodas das azenhas. Sem com as mãos
já muito doentes folhear o céu, na vã
vontade de o ler. Que poderei eu nestes
lugares procurar e encontrar, além de
rubro desânimo?
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




14 novembro 2022

rui diniz / de lembrar-me

  
Nos cafés em Madrid vi suceder o Outono. A chuva
demorava-se suave sobre o contorno esquecido
dos teus lábios, a Vania de anos passados junto à
obscuridade das brasseries da margem, em Córdova.
Ninguém compreendeu a comprida cidade que
era o teu olhar escuro – diferente em tudo do meu.
Ninguém compreendeu porque não escreveste sequer
uma palavra e tuas palavras eram tão difíceis
de dizer. Era simples: o vento crescia sobre a solidão
do teu quarto decorado com os quadros de Mondrian.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




17 agosto 2022

rui diniz / solilóquio

 
 
«Devagar, italiano, devagar com essa barca,
estes canais devem ser vistos devagar, assim
disseram por toda a parte os que de
veneza se lembravam. O Doge recuou com
as suas tropas face a esta dura revolução.
Não, amigo, não está nos meus hábitos
ser sóbrio, seja no que for. Falo muito,
mais do que me aconselharam os que
de veneza se lembravam. Devagar, pois,
devagar sob esta ponte onde Desdémona
sofreu a crina fria dos seus desgostos,
e afogou esse focinho ardente e irrequieto
do puro sangue árabe. Nela, tudo confluía
num duro rio de loucura, um frio
rio no qual vogava já a pétala de
de um vestido. Isso, italiano, faz deslizar o
esguio corpo da gôndola sobre o cume
das águas, assim mesmo, nem profundas
nem temerosas, as águas, apenas para o
amor propícias quanto mortais, exactamente
assim, como mo disseram os que
por toda a parte de veneza se ausentavam.
Devagar, italiano, mais devagar, que por toda
a parte se acendem já as luzes de Veneza.»
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




30 junho 2022

rui diniz / as estações

 
 
«Sorrio estimulado pelo segredo», um céu de flandres
deflagra como se o mundo acabasse. Nada
renasce, nenhuma coisa melhora. Eu, que passei
nos anos a melhor parte da espera, entro na
gare e saúdo-vos, até virem melhores dias.
Nas casas, o rio deixa uma sonoridade de
milénios, de tal modo se torna inútil inquirir
da sua antiguidade. Os cafés superlotados do
outono contêm rostos ligados a uma cor pálida
e desgostada, pobres, jovens mães, romancistas
de carreira. E eu brinco com os dejectos à beira-mar.
espevito para os faróis a carne vermelha das
orelhas porque se faz tarde e os barcos, suas
quilhas que alongam, pervadem o salso mapa,
em direcção da terra. Isto que não sei que seja
sinto hoje ou sempre, não os outrora complicados
de um compatriota, não a resposta para como se
deve viver, mas esta atmosfera saudável que
cobre o rio, a morada do lótus, o rodado premicial
de guindastes e âncoras. Sorrio junto
a mais este cais, nova etapa do périplo que
efectuo na terra, mais quilómetros e dias
numa ampulheta de whisky.
A experiência de olhar, o desfile das paisagens,
a mais simples forma de idolatrar, estes rostos
ávidos, em pressa, fugindo-se mutuamente
at last acoitados ao abrigo de sótãos, carpetes
e ateliers. Por outro lado as algas cantam, de
completamente diverso modo os náufragos rezam.
A quem sabe da voragem nada jamais surpreende.
Nem os lábios que se acendem, nem o rubor dos
assassinos, nem coisa tão insolitada como o bater
regrado do interrogando no interrogado. Pois
as madeiras sonham barcos enquanto o
desgoverno nos oprime.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




04 abril 2022

rui diniz / no sul

 
 
No inverno, em Sines, eu podia compor, na solidão
da casa, um súbito esquecimento. Falava de
antónia, lendo os poemas de eugénio e compondo
nos olhos de um castanho nocturno o ágil brilho
do amor. Por vezes ela recordava. Mas eu, a pouco e
pouco, fui até perdendo o significado de muitas das
palavras e simplifiquei assim toda a minha vida.
 
Eu passava agora tardes numa praia afastada, con-
templando o mar cuja áspera agitação
me surpreendia algumas vezes. Bebia à tarde, cansado
dos violentos sepulcros esboçados pelo crepúsculo.
E havia alturas em que ouvia um disco de vivaldi,
um adágio de ellington.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




18 março 2022

rui diniz / (love poem)






 
O tempo é a flor da marijuana e as tardes tristes.
Toda a tarde um morto na principal praça. À
distância, o fumo azul de uma exumação no cemitério.
E neste café leio o amor de Jaime e de Gisèle.
Nas ruas da Baixa a cidade inventa pessoas vivas,
mas os anos são vasos de tédio e copos de gin num bar.
Sigo com o olhar o vento: é leve e azulado.
Uma flor salta-lhe da boca, uma boca excêntrica e
floral. Uma a uma as pétalas e as páginas vão sendo
espalhadas pelos jardins e cais. É o crepúsculo no mar,
por fim. Acendem-se as luzes, amarelas e ninfómanas.
Ouço num búzio a espuma imóvel. Respiro o tempo.
E os meus olhos em silêncio recordam Sapho numa
ilha.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




 

28 agosto 2020

rui diniz / ils ont bu l´absinthe avec odette dulac



Bebi absinto com Odette Dulac. Senti-me então
especialmente disposto a escrever e compus
um poema sobre Peale Bishop, morto em 44.
Não era a peste de Lisboa que então me encheu
de desespero. Não eram os veleiros de Blood
que iam lentamente consumindo a memória
leal dos heróis. Não era o meu cérebro, enegrecido
por vezes pela morte de gertrude, de Lautrec, do
próprio Cocteau, afogado em ópio.

Bebi gim com Júdice e Ernst, uma época
inteira mergulhada em cogitações. Uma noite
acordei e tinha a boca cheia de sangue. Ao meu
lado Anya Seton respirava docemente.
Pus então um disco e acendi uma
luz. Os anos escoavam no soalho surdamente.
Depois saí. Bach – podia escutá-lo ainda daquela
praia tão antiga onde o próprio Van Gogh
cortara a orelha. O terror acompanhava
a vastidão das espumas, os rochedos soletravam
a desolação.

Bebi esse fogo nos meus nervos – vodka de
milénios, alongamento dos naufrágios para
o negrume irreal das costas, o pudor que se
inclinava para o areal como um século negro.
O verão acendia as pequenas doenças de infância.
e ouvia de novo, fora do sonho, as vagas sem idade
como um sonho.

Bebi com Zizi no bar Z. numa shooting gallery
estive com Auden e Zane Grey.
li.lhes as cartas estranhas de Cowley e
Faulkner. Sorrimos de todas as gerações.
Também eles beberam outrora com Dulac o absinto.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






06 agosto 2019

rui diniz / os anos de transição – uma canção de exílio



Em Paris vi as raparigas escuras, por entre
a neve, respirando a solidão,
nas esquinas ásperas das tardes, descendo
nos passeios, procurando talvez os amigos
desaparecidos. Estava sentado nos cafés, a
escrever um romance sobre um grupo de pessoas,
muito jovens, que se reunia nos cafés para
estudar e vadiava e bebia, a maior parte do tempo,
e também às vezes alguém se apaixonava
por alguém de uma maneira terrível e se
preocupava durante dias e às vezes meses seguidos
com isso. Eu próprio, de vez em quando,
parava de escrever e bebia um bocado
de pernod que encomendara.
De certo modo, as minhas recordações eram assim,
com pessoas a amarem-se secretamente, nos cafés,
enquanto conversavam sobre a opressão e os meios
de revolucionar os dias e as tardes, rindo nervosa-
mente, bebendo bagaços ou mesmo «moscas».
E as raparigas que entravam nos cafés e se sentavam
para tomar cafés e começavam a ler um livro
tirando os óculos escuros, eram as mesmas que
eu conhecera e talvez amara em Lisboa, os mesmos
rostos tristes, quase sem palavras, onde uma
alucinação milenária brilhava, em certos instantes, tão
terrivelmente.
Em Paris vi o inverno dilatar-me roxas olheiras
e aumentar-me a fome e não fui capaz de
escrever o romance porque o meu vocabulário
sempre tinha sido muito restrito e afinal eu
nunca soubera escrever na minha vida.
Uma tarde de Dezembro, no café Versailles,
tomei um whiskey com soda e conversei com
o criado sobre o vício em que todos os exilados
como eu ali se afundavam, e vi-o concordar
e várias vezes sorrir-me com uma quase piedade,
e nessa altura paguei, levantei-me, e pensei pelo
caminho muito seriamente se voltaria a
frequentar aquele café.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977







27 julho 2018

rui diniz / a situação literária em 1968




Ainda nos séculos se pergunta uma respiração.
O poema é a consciência irreversível que gira
cruelmente na tarde.
Consumimos tabaco na penumbra. Aqui estou
rindo convulsivamente o tom pestilento da
opressão, meditando uma bebida e nunca
a imaginar a terra.
No calor incidem as moscas que lembram
lentamente um destino, pétalas que destilam
a necessidade de publicar.

Quentes mãos que temi em dias de olhares.
Compreendendo assim os ares, os espaços…

Põe poema a tua metafísica azulada
nas fendas dos lábios de aldeia.
A literatura do sul é o sono profundo das memórias.
Tudo ali nos entontece confusamente.
As erínias zumbem com o vento nas narinas.
O mar gera as crianças estagnadas. É talvez
Tudo uma intensa visão. O ócio do cansaço…

Ainda nas casas as paredes se idolam.
Os poetas param à beira dos poços, passam
Um dedo pela cal, pensam
em publicar. Vão para as searas,
abraçam friamente as avós, conversam
debaixo do crepitar das uvas, preferem
dizer que as braseiras não existem.

É-lhes a noite propícia às surtidas, à visita.
E ao convencimento da cultura, à virgem idade dos
livros.

Isto leva-nos à contemplação dos demónios, aos
obscuros encandeamentos. Assim as lâmpadas
condenam por todo o sempre a palavra que
foi escrita.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






31 janeiro 2018

rui diniz / esboço





Sentados nas esplanadas da margem ouvíamos
o grito das civilizações. Havia semanas de silêncio
nas cidades litorais. Eu beberia entretanto cerveja
após cerveja e lia the Sun also rises. Que
mais escrevera este homem no seu solar
em Davim? Ninguém gostou de um poema que
que escrevi sobre o suave génio das gerações. E então
decidi partir para Bruxelas.

De todos os destinos o de Alice Toklas fora
o mais doloroso. Ela escrevera pacientemente
a biografia de todos os monges loucos e
por fim, enlouquecida pelos seus feitos, destruíra
os manuscritos enquanto dizia poemas de chaucer.

O seu olhar cintilava roxas estações, negros
campos de peste, livros e livros lidos pelas
insónias adiante.

E nós permanecemos sentados durante anos e
e anos nas esplanadas vazias, escrevendo loucamente
a incapacidade do tempo, a fúria dos dias e
das noites, a incansável desolação de cada palavra.

Repetimos o amor no interior das casas.
Recebemos um fulgor fácil das horas marítimas,
poemas vieram facilmente escritos aqui e ali.

Também da vida dissemos a alucinação exacta, os
motivos febris da inspiração, o ópio, o espaço
das flores de álcool, o olhar coincidindo
com a humilhação, os lábios distorcendo a mágoa
e a pouco e pouco já apenas o medo, o puro
medo de de repente em nós a voz se deteriorar.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






11 novembro 2016

rui diniz / descida de dante ao céu



e naquele outono frio estive com antónia pela última
vez em singapura. Cloé cambaleava drogada à
nossa frente na manhã que raiava. Um estranho
país, a índia, onde vagos coronéis se queimavam
vivos uma praça, execuções quase diárias, apenas
um exemplo. Céline teria gostado disto. Ou das
casas amarelas no outono, ou da bomba que
destruiu uma noite a fachada da casa do
governador. Antónia, suas mãos. O gelo dos olhos
valia o ouro do corpo, o sangue do céu, a
economia morta. Grande era a tendência para
passar fome. O mal de Cloé era a sua anemia
impiedosa, o que ela tinha que suportar pela
altura das chuvas. Nos dias históricos enviava-me
o meu pai, pontualmente, uma madeixa
do seu bigode, uma perfeita imposição de respeito.
A minha força filial era, por seu turno, enorme.
Não – dissera eu a antónia mas ela nem sequer falara.
A sua voz (antónia) podia
sair da garganta ou do ventre, indistintamente.
Não que ela fosse ventríloqua, mas o
certo é que sofrera muito. Dachau, provavelmente.
Ou um outro lugar, muito pior, que não
chegara à celebridade. Eu, pessoalmente, não
desejava confessara cloé o meu imenso amor. Mas
houve um dia em que tive que o fazer. Em
singapura, como sabem, não há mar. O índico
porém, baila nas pupilas da branca cloé, e
o incêndio da sua casa, na virgínia.
Episódios da guerra civil. Cloé,
antónia, o meu pai, eu, Céline
e coronéis carbonizados. Quando pela ultima vez
em baden-baden olhei na rua antónia e
cloé morta sem sangue, que antónia levava
pela mão.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977