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10 julho 2024

fernando assis pacheco / o pensionista de caxias



 

 
Já o fotografaram em pijama agora de gilet claro e é o mesmo homem
fala baixo aos jornalistas com repetidas desculpas
por não saber responder a tal assunto (preso há três anos)
enquanto da Pide tem uma imprecisa e vaga como explicar lembrança
 
mas instado a dizer se aceitaria ainda uma vez ser o chefe
de uma qualquer polícia dessas que afinal «iguais em todo o lado»
encolhe os ombros. Por «honestidade» sim senhor repórter aceitaria
 
 
 
fernando assis pacheco
a profissão dominante (1982)
a musa irregular
tinta-da-china
2019
 



 

21 fevereiro 2019

fernando assis pacheco / estrada de elvas


  

Cilindros ao longo do asfalto
esmagam a tua memória sem sentido.
É o Inverno em Borba, não recordo
quase nada de ti. Vejo o trabalho
destes homens com suas pás, seus maços,
paro um momento à beira deles
para acender um cigarro. «Compadre,
tenho um irmão na Angola!» E nada sabem
do gelo que nascia em tua boca.

Levo outro amor mais claro do que o teu.
Não te recordo já: talvez morresses
antes de ser memória, chuva, e a noite.



fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019





27 março 2015

fernando assis pacheco / com a tua letra



Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.

Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.

E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.


fernando assis pacheco
cuidar dos vivos
1963





22 setembro 2011

fernando assis pacheco / desversos





2

A minha proposta reduz-se a isto
nem mais um aluno para os liceus
o verdadeiro ensino está na vida
da pá e pica aos moinhos de vento

que sensaboria a História Antiga
com os seus heróis e os seus reis
tanto estudante a fingir que estuda
e faltam braços para o pastoreio

as artes nobres: varrer sachar empar
e outras: bordar coser fazer renda
não tenho nada contra a poesia
mas é mais útil a limpeza a seco





fernando assis pacheco
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
1990