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31 julho 2024

agustina bessa-luís / agustina por agustina

 
 
 
Eu não dou sossego a quem me ouve, não deixo que parem no dia santo, porque ponho pedra firme até na água e projecto na criança de mama, e pingo de azeite na porta perra, e juízo no louco que se faz desentendido e diz: «Isto não é comigo.»
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Não sou vaidosa. Sou contente, sou feliz e agradecida dos meus dotes de coração, dos meus talentos, da luz dos meus olhos, da saúde física, do vigor moral. Bens momentâneos – bem o sei. Valores falíveis e facilmente dispersos no tempo. mas é nesta alegria, nesta exaltação vital, que está o meu cântico à vida – humano e, contudo, esplêndido, divino e, contudo, humilde.
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Eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.
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Nunca me senti cansada a descrever o humano, precisamente porque participo de tudo o que é humano. Nunca me senti marcada em misteriosa contradição com o comum dos outros, nunca experimentei o sentimento de estar à parte, de estar isolada. Eu consigo participar da despreocupação dos momentos vividos, e posso revelá-los pela palavra, sem que eles de alterem e se intensifiquem pela observação.
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 Minha obra é portuguesa, constituída por sentimento e gente portuguesa até à medula.
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Tudo o que eu escrevo se destina a interessar as pessoas na sua própria entidade. Daí, muitas vezes, ela ter um efeito devastador, a obra e a pessoa que a produz. Sobretudo a pessoa, devo dizer. Eu desmarco os outros da rotina, espanto a manada. Depois os efeitos são maravilhosos, combinam com a imortalidade.
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Se eu não sou poética, apesar de dizerem que sou, cada vez com mais veemência e singular teimosia sei descobrir nas coisas comuns uma directa via que as leva ao coração, que as torna capazes de serem mais doces do que a lírica mais melodiosa.
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Não quero como assunto nada de extravagante, mesmo com timbre de lírico. Não quero brilhar, nem convencer, coisa que os poetas querem muitas vezes. Quero ser sóbria de palavras, constante de gratidão, verídica de fidelidade para quem confia em mim.
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Para mim é fácil ser verdadeira quanto à minha insinceridade.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




06 novembro 2023

agustina bessa-luís / gostos




  

Um dos grandes factores do diálogo nos restaurantes e em todos os espaços gregários, é a discussão sobre os gostos, embora se saiba que não se discutem. Vendo bem as coisas, os gostos são um morbo cultural que justifica o tempo perdido em discuti-los. Vive-se muito de desinteligências menores, e por isso é que se alimentam cismas, birras, contrariações e fronteiras de todos os tipos. Os Portugueses não são muito caricatos nisso de odiar e aborrecer; talvez porque onde outros povos têm barreiras entre estado e costumes extremamente sádicos entre principados, nós temos passagens de nível. Melhor assim.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008


 

13 junho 2022

agustina bessa-luís / santo antónio

 
 
Se considerarmos os sermões apenas como obra literária, eles parecem-nos uma obra precária, carregada de erudição fastidiosa e de simbolismo desesperante. Mas como diz o próprio Santo António, «o teu rosto, ó homem, é outro homem». É preciso encontrar nessa face construída, marchetada, encontrar a respiração, o sangue, a força da compaixão. A sua linguagem é mais como o som da trombeta e raramente significa outra coisa a não ser a esperança. O povo ouve-a, não para meditar, não para consumar a busca do próprio coração, mas para alimentar a esperança. Os filósofos procuram verdades, pensam e amadurecem as suas ideias, constroem um sistema; mas as multidões só esperam, e esse é o sentido do seu caminho e é todo o seu encontro. Para elas, Deus é a relação com a esperança. Se vemos nos textos de Santo António só a prosopopeia edificante, ou a redacção do mestre de teologia, ou o preceito do vigilante, não vemos quase nada do seu rosto. É preciso situá-lo na praça paduana, à luz das mil candeias abrigadas com a concha da mão do vento da madrugada; é preciso ver o paralítico no seu estrado de rodas e que levanta para o ar a cara ávida, cheia de dureza estranha, pois a atenção é rude e violento o movimento de quem se quer salvar. É preciso pensar numa terra dividida, num mundo que não compensa já a imaginação das pessoas que tudo usaram e que esperam a ave viva solta no campo. «A ave viva é o espírito» – diz o Santo. Assim se entende a prodigiosa fama desse homem, mas não apenas em parte dele, na cultura, na ascese, na virtude, na prudência; não no livro somente, mas no mundo inteiro de que se revestiu. Não na palavra que deixou aos copistas, mas na incondicional relação com todas as coisas.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008



20 fevereiro 2022

agustina bessa-luís / cumplicidade

 
 
     Eu hoje sou profundamente aceite na sociedade portuguesa na medida em que sou profundamente cúmplice dela. cúmplice das pessoas. […] Cúmplice na medida em que as entendo e faço parte delas. Por um fenómeno de mimetismo, pode-se dizer. […] Mais do que pelas ideias ou até do que pelo engenho dos livros. Há uma enorme quantidade de pessoas que me lêem pouquíssimo – ou que não me lêem de todo – e, contudo, fazem parte de mim e eu delas. Sem dúvida nenhuma. Quando eu morrer vou fazer imensa falta, nessa medida. Essa cumplicidade desaparece. E ela é necessária à vida humana. As pessoas sabem que nada de mal acontece a um povo em que essa cumplicidade está viva e é permanente…
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




27 julho 2021

agustina bessa-luís / criar

 
 
 
     «Os judeus pedem milagres, os gregos pretendem a sabedoria.» Nada melhor do que estas palavras de São Paulo, palavras evidentemente dum romano, ainda que transfigurado pela pressão do seu caso, o seu espinho, como lhe chamou. Sem este espinho, a vontade criadora, continuaremos a pedir milagres e encher-nos de sabedoria. O espírito que cria uma obra ou que a projecta, é um espinho na carne; é um combate formidável que só muito palidamente nos é sugerido nos grandes teatros da turbulência humana. Criar é, ao mesmo tempo, obediência e revolta. Tem dois sexos, a aparência e as condições. É austero prazer e alegria corajosa; é uma arte curativa e é uma lei dinâmica.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008





10 junho 2021

agustina bessa-luís / portugal


De repente, cada um de nós vê um território banhado de mar agitado e frio, com manhãs verdes de nevoeiro e com os campos onde os nomes das mais pequenas ervas nos fazem humedecer os olhos
 
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Evidentemente que Portugal é Europa. Mas uma Europa de refugiados, um lugar mantido em independência para servir de exílio a vencidos e enganados. Uma Suíça doutro padrão, onde nada se agita e tudo se murmura. Portugal foi mundo de mercadores, pátria para imigrados, delícia dos tímidos e calamidade para santos e perversos. Para o meio termo é boa casa, e não o digo em tom pejorativo, muito pelo contrário. E Alijó, no tempo das cerejas, tem a medida de Wall Street.
 
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Os Portugueses não são pontuais nem respeitadores das praxes. Não têm espírito de corpo, em suma, e aproveitam todas as ocasiões para o demonstrar. Eu creio que Benjamin Constant nunca poderia vislumbrar nos Portugueses algo que se parecesse com a alquimia da perseguição. Pois a unanimidade não lhes parece necessária nas opiniões; a oposição é vista como uma mania curável. Tudo a inteligência remedeia, e por isso a submissão é absolutamente fora de causa.
 
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Quando nomeamos Espanha e Portugal, vemos o palco da História e nós como protagonistas. Isto diminui a nossa iniciativa, ao mesmo tempo que enriquece o nosso sentido de nação.
 
Eu creio que foi Dostoievski quem disse que para fazer um país é preciso a convicção de que ele, país, é o melhor do mundo; doutro modo, não se passa de constituir apenas um material etnográfico. Nós, Portugueses, sempre desenvolvemos uma vaidade expansiva frente ao orgulho caudaloso e sério do povo da Espanha. Às vezes até somos modestos por fora para melhor gozar o nosso vinculado prazer de superioridade. E quando nos louvam a humildade, não pressentem que ela é mais desdém do que caturra virtude de confessionário.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




01 fevereiro 2020

agustina bessa-luís / inverno


  
     De repente, era Inverno; escurecia cedo outra vez, os vendedores de castanhas apareciam e o fumo dos pequenos assadores espalhava-se no ar húmido, ar de cidade à noite, quando toda a gente sabe que tem um lar e o procura. Os jornais eram capazes de ter razão e traziam folhetins completamente conforme os meus gostos: Sem família ou Lucrécia Bórgia. E os manequins das montras abriam a estação com os modelos que pareciam sempre algo reprováveis, mas irresistíveis – isso eram.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008










09 agosto 2019

agustina bessa-luís / verão



Havia diante de nós três meses compridos, sem praia e sem mudanças. O calor varava a ramada sobre o pátio, e o banco de jardim que lá estava só lhe faltava crepitar e arder. Acho que era por se dar ao respeito, como banco e não madeiro velho, que ele não se punha a fumegar. Vinha da mina uma água fria e saborosa, e ela só alegrava a mesa de Verão; o seu gorgolejar na treva de xisto da mina dava uma impressão de calma e abundância.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008








19 maio 2019

agustina bessa-luís / poesia




A poesia, não acredito que seja esse estado nervoso tão doente e agitado. Alguns poetas parece que lhes arrancam os dentes ou deliram numa meditação assombrosa com coisas que nos descrevem o amor e a morte, mas não sabemos se se lhes parecem. A poesia, vou dizer-vos o que é: eu tinha uma avó velhíssima, de quase cem anos, que perdera já a memória do presente. Não reconhecia as filhas, que a não deixavam nunca só e a serviam continuamente. Não reconhecia os lugares da casa, a porta chapeada de zinco que abria para o caminho, a outra porta pequena que abria para o quinteiro. Mas, às vezes (eu fixo-me numa ou duas em que assisti a isso), ficava atenta à chuva que caía, e ordenava, levantando a mão tão branca e ociosa, ela que trabalhara tanto a amassar a farinha e carregara tantas abadas de legumes e de feijão, e carregara ao peito os filhos também. Ela disse, olhando pela janela a eira inundada: «Vem ali o teu pai e não tem casaco. Leva-lhe um casaco para que a chuva o não molhe.» Era uma cena que ela reproduzia fielmente passados mais de quarenta anos, e isso era poesia.

A melhor impressão que a poesia nos pode dar é esta: ficar de coração vagabundo, deixando a vareja estalar na janela as asas grossas, e não dar por isso, como um cão surdo.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008






11 setembro 2018

agustina bessa-luís / aforismos




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Na consciência dessa presença alheia, única e permanente mesmo que seja pelo espaço de um momento breve, está o amor.

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Ninguém se orgulhe de despertar amor. Ele é um efeito de sombras, de entendimentos com o passado de que nem sequer somos testemunhas.

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O amor não é uma temperatura, é todo o fundamento duma cultura. É uma forma de impertinência sagrada, um repudiar de todas as crenças que envolvem a destruição desse segredo imenso que é o ser humano.





agustina bessa-luís
aforismos
guimarães editores
1988






20 julho 2015

agustina bessa-luís / emigrar



Às vezes penso em emigrar. É uma tendência fatal dos Portugueses que se manifesta desde o primeiro bocejo; só que um é de fome e outro de puro aborrecimento: um sugere-o a contracção do estômago onde se digerem côdeas e couve galega; outro, a mente em que se arrefecem pensamentos e suas consolações. Por isso, por esta inclinação movediça, a nossa cultura é estrangeirada; não se recorre ao sabor pátrio, de tanto que ele se traduz em humilhação e impedimento. Mas vai eu, em tentação de romper com muitas amizades, que em serem inimigas me dariam mais proveito, estabeleço planos tão bem gizados que, a traduzirem estratégia guerreira, já tinha por camaradas Aníbal e Alexandre. Todavia, há sempre um nada que me assombra e imobiliza. Não é o respeito por coisas famosas, a História e os grandes cá da terra. São coisas pequenas, devoradoras da paz se as temos por distantes: um dia de chuva na Primavera, com aqueles campos acima do Ave, crivados de malmequer amarelo, desse de que se faziam colares, com cheiro ácido, de botica. […] Às vezes penso, é certo, em emigrar. Entre os que se entendem há demasiada claridade. E preferimos incertezas vulgares a tácitas indiscrições, de gente vizinha e, no geral, amiga. Mas depois mudamos de ideia.


agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008



03 abril 2015

agustina bessa-luís / oliveira, manoel de







  
É um visionário. O seu lado obscuro desconcerta; o seu lado grave converte-se em humor para não ser apercebido. Eu aparento Manoel de Oliveira àqueles poetas saudosos que tivemos; Bernardim foi um deles, outro o cavaleiro Francisco Manuel de Melo. Vou dizer porquê. Porque em todos há mais determinação de fazer obra sua, do que voz do mundo.

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Como um Bergman ou um Dreyer, ficará para sempre um mistério para os seus contemporâneos. Umas vezes é subtil, outras é sarcástico, raramente é amoroso e abandonado a um sentimento terno. Abandona-se à perfeição e nada mais. Há nele um empenho de contradição, o que faz a força da sua obra tão variada, tão inesperada e tão controversa.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008



24 maio 2011

agustina bessa-luís / inteligência nacional

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À medida que a angústia aumenta numa sociedade, vemos que os cargos estranhos são criados. Aparece um sem número de profissões e de ocupações paralelas que absorvem a consciência e a maturação efectiva. Portugal é, de certa maneira, um campo de ensaio onde se testa o progresso da tendência a ser-se mais consciente. Por um lado, a maturação afectiva que depende da força moral personalizada e não projectada pelo preconceito da organização social. Por outro, a soberania duma razão ainda fundada no direito que foi notabilizado pelas evidências fictícias e as ideologias em função do poder. Tudo isto exige muito mais que simples pensamentos estereotipados ou convenções nulas que operam estatutos deficientes. A sociedade não funciona como tal, pois os modelos de comportamento recíproco entre indivíduos ou grupos estão completamente desarmados do seu comportamento normativo. No caso português, é flagrante: o passado parece-nos mais fácil viagem do que admitirmos conceitos novos e um empenhamento da alma colectiva noutros caminhos e instituições. É pena. Onde estão os mágicos do meu país estranho que não vêm magicar? Deitando às ortigas a angústia de culpabilidade que nos está a roer a pele, o osso e os vícios. Pelo que o diabo deserta, e a inteligência emigrará com ele.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008
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04 setembro 2009

agustina bessa-luís / saúde






Direi como disse um médico famoso: «O ser humano que matava com uma lança os leões treme hoje com a picada duma mosca.» Isto quer dizer alguma coisa de angustiante, e nós sabemos que a angústia nos mantém em cativeiro. O modo de vida urbano propagou-se à província, o homem levou as suas doenças até ao sertão mais impenetrável, e uma série de maldições pesa sobre a nossa saúde tornada delicada. O sabor do vinho tornou-se venenoso, o sol já não tem o mesmo efeito abrasador e doce na nossa pele; pomos o pé com precaução no solo, desinfectamo-nos antes de dormir e ao acordar.






agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008





02 junho 2009

agustina bessa-luís / europeus





Possivelmente, todos nós, nas terras da Europa, nos parecemos. Temos uma sensibilidade comum perante a vida e as suas mudanças. O que mais nos agrada é inventariar as coisas do progresso para não nos iludirmos com ele. Mas, acima de tudo, amamos tudo aquilo que afinal não está na agenda da celebridade. Amamos os quatro favores da pobreza, que são: o humor, o vínculo ao quotidiano, o respeito pela morte e por tudo o que a pode atrasar ou activar. E amamos os caminhos da terra que percorremos sem descanso, mesmo quando somos obrigados a um ofício sedentário.






agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008