Se considerarmos os sermões apenas como obra
literária, eles parecem-nos uma obra precária, carregada de erudição fastidiosa
e de simbolismo desesperante. Mas como diz o próprio Santo António, «o teu
rosto, ó homem, é outro homem». É preciso encontrar nessa face construída,
marchetada, encontrar a respiração, o sangue, a força da compaixão. A sua
linguagem é mais como o som da trombeta e raramente significa outra coisa a não
ser a esperança. O povo ouve-a, não para meditar, não para consumar a busca do
próprio coração, mas para alimentar a esperança. Os filósofos procuram
verdades, pensam e amadurecem as suas ideias, constroem um sistema; mas as
multidões só esperam, e esse é o sentido do seu caminho e é todo o seu
encontro. Para elas, Deus é a relação com a esperança. Se vemos nos textos de
Santo António só a prosopopeia edificante, ou a redacção do mestre de teologia,
ou o preceito do vigilante, não vemos quase nada do seu rosto. É preciso
situá-lo na praça paduana, à luz das mil candeias abrigadas com a concha da mão
do vento da madrugada; é preciso ver o paralítico no seu estrado de rodas e que
levanta para o ar a cara ávida, cheia de dureza estranha, pois a atenção é rude
e violento o movimento de quem se quer salvar. É preciso pensar numa terra
dividida, num mundo que não compensa já a imaginação das pessoas que tudo
usaram e que esperam a ave viva solta no campo. «A ave viva é o espírito» – diz
o Santo. Assim se entende a prodigiosa fama desse homem, mas não apenas em
parte dele, na cultura, na ascese, na virtude, na prudência; não no livro
somente, mas no mundo inteiro de que se revestiu. Não na palavra que deixou aos
copistas, mas na incondicional relação com todas as coisas.
agustina
bessa-luís
dicionário
imperfeito
guimarães editores
2008
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