faço o quê com a amargura? guardo-a no bolso, ou ponho sobre ela o peso de um dia aziago? talvez o mar me salve, ou me converta, talvez a terra seja o meu arado. quando o tempo passar à minha frente, peço-lhe uma folha de tília, e um pedaço de céu. emanuel jorge botelho sombras e outros disfarces averno 2022
rasgar cada dia com um lenho de espelho se possível, afiar cada hora numa pedra de linho. guardar o tempo dentro da alma. se possível, não morrer. emanuel jorge botelho sombras e outros disfarces averno 2022
percebi cedo que o mundo doía. o medo ainda não tinha nome, quando lhe paguei, com lágrimas, o primeiro dízimo. depois, foi só crescer. emanuel jorge botelho o livro das coisas ardidas averno 2023
resta-me, talvez, a minha sombra, essa espécie de risco benfazejo, com que a alma dá guarida ao descanso. digo sombra, como quem diz trevo, ou ousadia, e dou-lhe uma madeixa muito antiga. talvez seja assim que o medo perde o tino, e a memória guarda, quase impune, o desenho, quase inteiro, do meu corpo. emanuel Jorge botelho o livro das coisas ardidas averno 2023
e há os poemas que ainda não escrevi, os que são antes do papel, os que estão prontos antes das palavras. desses só há uma sombra a dizê-los no silêncio, uma espécie de rumor que os põe dentro do tempo. quando chegam, já são de linho. emanuel jorge botelho nervo/18 maio / agosto 2023 colectivo de poesia 2023
1. que golfinho cortou a pele da água, o mapa embuçado nas esquinas do medo? quem sarou a morte do sal? 2. há uma âncora de fogo no porão dos anjos na fuligem dos trevos, a sorte da viagem 3. levavas no bolso um limão de oiro o tigre e o fruto do pomar dos remos (versões, talvez provisórias, para o livro LADAILHAS) emanuel jorge botelho hífen 4 abr/ set 89 cadernos semestrais de poesia viagens 1989
para o Manuel de Freitas estou cansado de andar a ir morrendo, à espera que o tempo saia do meu nome. trepar paredes não é risco a que dê gasto de alma, e não tenho caligrafia para cancelar o endereço. ponho uma faca entre os dentes? masco tília? ou desenho a primeira sílaba de uma asa? não faço nada. não sou capaz de trair a minha morte. Agosto de 2013 emanuel jorge botelho telhados de vidro n.º 19 . maio .
2014 averno 2014