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15 dezembro 2024

ángél gonzález / discurso aos jovens

 
 
 
De vós,
os jovens,
espero menos coisas grandes que as que realizaram
os vossos antepassados.
Entrego-vos
uma herança grandiosa:
guardem-na.
Amparem esse rio
de sangue,
sujeitem com firme
mão
o troco dos cavalos
velhíssimos,
mas ainda poderosos,
que arrastam com pujança
o fardo dos séculos
passados.
 
Nós somos estes
que aqui estamos reunidos,
e os outros não importam.
 
Tu, Pedra,
filho de Pedro, neto
de Pedra
e bisneto de Pedro,
esforça-te
por seres sempre pedra enquanto vivas,
por seres Pedro Petrificado Pedra Branca,
por não tolerares o movimento,
por asfixiares em moldes apertados
tudo o que respira ou quanto pulse.
 
A ti,
leal amigo,
companheiro de armas,
escudeiro,
sustento da nossa glória,
jovem alferes dos meus esquadrões
de arcanjos vestidos de azeitona,
sei que não preciso de admoestar-te:
com seguires sendo fogo e ferro,
basta.
Fogo para queimares o que floresce.
Ferro para esmagares o que se ergue.
 
E, finalmente,
tu, dono
do ouro da terra,
poderoso impulsionador da nossa vida,
não nos faltes nunca.
Sê generoso
com aqueles de que precisas,
mas guarda,
expulsa do teu reino,
mantêm-nos para lá das tuas fronteiras,
deixa que morram,
se é preciso,
os que sonham,
os que procuram
só a luz e a verdade,
os que deveriam ser humildes
e às vezes não o são, é assim a vida.
 
Se algum de vós
pensasse,
eu dir-lhe-ia: não penses.
 
Mas não é preciso.
 
Continuem assim,
meus filhos,
e eu prometo que tereis
paz, e pátria feliz,
e ordem,
e silêncio.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



23 fevereiro 2023

ángél gonzález / aniversário

 
 
Reparo nisto: em como me vou tornando
mais dúbio, mais confuso,
dissolvendo-me num ar
quotidiano, tosco
farrapo de mim, esfiapado
e de punhos esfolados.
 
E compreendo: vivi
mais um ano, e isso é muito duro.
Bater o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!
 
Para viver um ano é preciso
morrer muitas vezes muito.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 


22 novembro 2022

ángél gonzález / o inverno



 

O Inverno
de largas luas e pequenos dias
está sobre nós. Há tempos
era eu uma criança e nevava muito,
muito. Recordo-o
ao ver a terra negra que repousa,
apenas pelo gelo
de um charco iluminada.
 
É incrível: mas tudo isto
que hoje é terra dormente sob o frio,
amanhã vai ser, com o vento,
trigo.
             E rubras
papoilas. E vergônteas…
 
Sem esperança:
a terra de Castela está à espera
– crescem os rios –
e tem certezas.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 




 

19 março 2022

ángél gonzález / crise

 
 
O ideal, nestes casos,
seria morrer de morte natural,
fazer um gesto amargo,
deitar-me
definitivamente,
e partir com cuidado
para que ninguém possa
dar-se por ofendido.
Mas isso não é possível,
descontando Deus nosso Pai
– e os outros.
Por isso
– frio na rua, tédio
em quantos passam –
não saio do sítio, e vivo
– coração assediado pelo pranto –
a minha hora terrível:
a que ainda não soou.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018




23 setembro 2021

ángél gonzález / porvir

 
 
Chamam-te porvir
porque nunca vens.
 
Chamam-te: porvir,
e esperam que tu venhas
como um animal manso
comer-lhes à mão.
 
Mas tu continuas
para lá das horas,
agachado não se sabe onde.
… Amanhã!
                       E amanhã será outro dia calmo,
um dia como hoje, quinta ou terça-feira,
qualquer coisa e não aquilo
que esperamos não obstante, ainda, sempre.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018

 





29 novembro 2017

ángél gonzález / dia de anos




Noto isto: estou a ficar
menos certo, confuso,
dissolvendo-me no ar
quotidiano, tosco
girão de mim, desfiado
e roto pelos punhos.

Compreendo: vivi
um ano mais, e isso é bem duro.
Mover o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!

Para viver um ano é necessário
muitas vezes morrer muito.



ángél gonzález
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985






02 maio 2017

ángél gonzález / como se nunca




     É algo mais que o dia o que morre esta tarde?
O vento,
                          – que leva ele?
que aromas arrebata?
Desatadas de súbito as folhas das árvores
cegas vão pelo céu.
Pássaros altos atravessam, adiantam-se
a luz que os guia.
                               Sombria claridade
será já em outro sítio
 – só por um instante –
madrugada.

     Com bandeiras de fumo alguém me avisa:

      – Olha bem tudo isto:
isto que passa
não voltará jamais
e é como se nunca tivesse sido

     efémera matéria de tua vida.



ángél gonzález
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. josé bento
assírio & alvim
2001




18 janeiro 2017

ángél gonzález / epílogo



Arrependo-me de tanta queixa inútil,
                                                              de tanta
lamentação impertinente.
São as regras do jogo inapeláveis
e justificam toda, qualquer perda.
Agora
só o inesperado ou o impossível
poderia fazer com que eu chorasse

uma ressurreição, nenhuma morte.



ángél gonzález
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





21 junho 2016

ángél gonzález / todos vocês parecem felizes…



… e sorriem, às vezes, quando falam.
E até dizem uns aos outros
palavras de amor. Mas
amam-se
de dois em dois
para
odiar de mil
em mil. E guardam
toneladas de asco
por cada
milímetro de felicidade.
E parecem – nada
mais que parecem – felizes,
e falam
com o fim de ocultar essa amargura
inevitável, e quantas
vezes não o conseguem, como
não posso ocultá-la
por mais tempo: esta
desesperante, estéril, longa,
cega desolação por qualquer coisa
que – não sei para onde – lentamente, me arrasta.


ángél gonzález
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985