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20 novembro 2024

pedro tamen / poema para todos os dias

 




 

 
I dia
 
 
                                        Un trozo azul tiene mayor
                                        Intensidad que todo el cielo.
 
                                        Alfonso Cortés

 
 
 
Fresco era o dia, plantado na chuva,
jovens os relógios tocando Mozart...
Os carros corriam, os passos passavam
e os velhos sentados dormiam no tempo
regressos perdidos de todas as sombras.
Pássaro poisado na alma da tarde,
era todo o sol natural inverno...
O mar estava perto nos olhos da gente,
um barco chegava em cada minuto
e o segredo bailava nas mãos da criança.
 
Recordo uma paz sob as gabardinas,
recordo humidade nas rodas dos carros...
(Tão solta no ar corria a memória
que as folhas tão verdes marcavam os anos.)
A chuva nascia da terra para o ar
e ria na cara da gente perpétua
– cada riso dela era a rua inteira
e era o cão vadio cheirando esta terra
gerada no vento pelo grande gesto.
Rua colocada por amor das formigas,
pequeno brinquedo achado no bosque,
eras mão aberta para todos os sons,
para cada assobio de vapor de água,
para a bela frescura da brisa salgada.
Ligeiros, os céus brincavam escondidos
com a tarde criança presente no ar,
jogavam às pedras ao pé dos passeios
e corriam juntos fugindo ao vento...
Passavam pessoas de faces vermelhas,
de um sonho pequeno agora acordadas,
seus passos miúdos de nada sabiam
– nada estava feito e tinham dez anos.
A branca neblina sentada no sol
sorria de perto a tudo o que era
e tudo saltava na sua presença.
 
Escorregavam horas do berço dos ramos
ficando caladas, respirando fumo...
E, leves, cheirosas, perpassavam as mãos,
tão estreitas e fortes do primeiro mundo.
 
Algo se esperava, algo estava perto,
algo era preciso, faltava a resposta,
o rio que fosse a cama da chuva,
a sombra final para o sol se deitar,
a torre perfeita com todos os olhos,
a mão que apertasse as coisas dispersas...
E eis que o rio vem, a sombra e a torre,
e se estendem dedos com a tua chegada.
 
Saltaram coelhos de todas as tocas
e a fonte da serra sorriu-se no musgo.
Manaram os beijos no ar respirado
e as malas abertas mostraram o fundo.
Fugiram cavalos de pernas de espuma
levando no pêlo notícias em branco.
E o vento corria em busca da lua
e a tarde e os céus calavam os gritos…
Silêncio se fez, e a erva cresceu
mais verde e mais fresca, segura certeza.
Espreitaram os sinos, riram-se as escadas
tudo estava pronto e de novo erguido.
 
Tão bela que vinhas como que de infância,
tão pura e tão simples, tão gesto benigno,
tão nova palavra rasgada no mar...
Menina dos anos, dos anos perdidos,
sombra de outras noites, noiva de outros dias,
perfeita miragem, pele das próprias mãos,
eis que então chegavas e eis que eu te via,
e as horas sorriam, felizes, completas.
 
Teu rosto era a concha dos quatro oceanos,
teu corpo era a praia de areia molhada,
teus olhos erguiam o toldo do céu
e enchiam os mastros de verdes bandeiras.
Tu eras o vento, tu eras a força,
dançavam secretas tuas mãos de aragem...
 
Nasceste presença na tarde de bronze
e agora já nada seria indeciso.
Agora tu eras a essência dos nomes,
os galos cantavam, era bom respirar.
Os prados distantes ficavam tranquilos,
esperando os teus pés, berlindes pequenos.
A chuva e a brisa, a jovem frescura,
guardavam certeza, seguras estavam
– morena lembrança, segundo natal.
 
Nunca mais a noite mordida no escuro,
nunca mais o dia manchado de cuspo,
nunca mais o véu tapando-me tudo,
nunca mais os dedos procurando flores...
A estátua plantada na nudez do largo
devolvia a calma aos olhos fechados
e enchia de sombra as pedras queimadas.
Agora eu sabia que em cada manhã
nasceria o sol atrás dos teus ombros.
 
 
 
pedro tamen
poema para todos os dias (1956)
tábua da matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 




12 fevereiro 2023

pedro tamen / annie besant

 
 
Os falsos deuses sentaram-se em redor
Tal como nas mesas de pé-de-galo
foi preciso chegar aos últimos extremos
foi preciso que o ar ardesse de murmúrios
para que o lápis começasse a mover-se
Não há morte dizia
de um lado e outro do papel
não há morte dizia
de um lado e outro do papel
são as mesmas vozes o trovão
é o mesmo atroando os ouvidos pois
de um lado e outro do papel dizia
não há morte
Morte há porém no papel onde o lápis
soprado se moveu
Só no papel
só no papel mortalha
 
 
 
pedro tamen
relâmpago nº. 13 10-2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003
 



30 dezembro 2022

pedro tamen / nem esquecer o que tenho

 
 
 
Nem esquecer o que tenho
nem no que vens
se esfuma:
das ilhas continentes donde venho
em cada tens
ilustrações – é uma
apenas só viagem nossa,
quer siga eu aonde eu possa
ter memória de ti,
quer venhas tu de frente,
andando simplesmente
até aqui.
 
E assim dos nossos pés se fica em brasa
o chão do corredor da nossa casa.
 
 
 
pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982





23 março 2022

pedro tamen / ivan illitch

 
 
Não perguntei ao agonizante que paisagem
via para além dos pés da cama
que era aquilo dos rostos inquietos
se de verdade inquietos
aos pés da cama há tantos dias          ai
há tantos          tantos dias
espreitando          espreitando de olhos molhadinhos
a passa passividade          a quase passada
posição deitada mas respirante ainda
 
 
Não perguntei se do outro lado
por cima ou          bem melhor          atrás
da vazia cabeça          alguma coisa ardia
sem nada anunciar
tudo pronunciando
 
 
 
pedro tamen
relâmpago nº. 13 10-2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003




 

28 dezembro 2021

pedro tamen / poema à moda antiga

 
 
 
Chegaste, como eu, da outra margem
aos enigmas dos lobos indecisos
entre mudar de cores ou a pelagem
e destruir em nós o som dos guizos
que outrora desdobrava as nossas falas.
 
E assim as malas podres da bagagem
que transportamos são maiores que malas
– recordação polar da nossa imagem.
 
Deixemos pois as gulas e juízos,
golpes de facas vis, rotas de balas,
agoniados tufos de paragem;
 
recomecemos surdos, tardos, lisos
do que jamais eu disse ou que tu calas:
o nosso rio, amor, é só barragem.
 
 
Abril, 1989
 
 
 
pedro tamen
colóquio letras 113-114
janeiro-abril de 1990
fundação calouste gulbenkian




 

28 setembro 2020

pedro tamen / que quer dizer um ano…

 
 
 
Que quer dizer um ano, ou mês?
Que a minha mão não está no teu cabelo
– nem tê-lo
é ter de vez.
 
 
 
pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982

 







04 janeiro 2019

pedro tamen / fontes




Na fonte, a terra
dá-se à terra.
A água é um abraço
Que se dá a beber
E que nos cerra.



pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982











29 janeiro 2018

pedro tamen / fazer horas





Adelina: a bruma que era ontem
voa – não é já. Foi-se tão prestes
como o João das Índias. E foi lá
que um pero se ficou – tão são,
tão nosso irmão.

Adelina: que é do candeeiro
que tu dizias fosco? A luz que deu
dá ora gosto. Por isso aqui te digo
que após a morte é um minuto grande
e outro umbigo.

E está-se, Adelina. Se como burro
dói, é vero, mas está-se.
Até que passe.



pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982








02 setembro 2017

pedro tamen / manhã no louvre



1. O escriba acocorado

Ele que escreve que não saibamos já,
olhos fitos no nada que por ciência tem?
Sob os ardores do sol burila só silêncio
que sustenta no colo
e onde cabe tudo.


2. Vénus de Milo

Tisnada pelos tempos, com braços largou
com que agarrasse a norma
e o calendário sábio:
nem mais nem menos que outras,
teve a sorte que o século
dispensa aos muitilados.


3. Vitória de Samotrácia

Ideia pura, impura, do sobre o mar vencido,
ei-la que nada é, sequer a glória,
senão escultura, pedra,
e, mais, dispersa
nessa mão intrigada e lacunar
que nada diz nem voa.


4. Gioconda

Agora sei, enfim, porque sorri:
tantos papalvos, céus, em busca da memória
que a pintura não dá.

 Maio, 1989



pedro tamen
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990





14 julho 2017

pedro tamen / e agora: a tua pele




E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.

Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
no côncavo da mão o sol nascia.


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982




09 fevereiro 2017

pedro tamen / tu que fumas



Adiro ao grande segredo da pedra, ao
prumo inteiro da sua própria sombra.
Brando, revejo a solar rotunda dos teus ombros
e (repito) há pedra sobre pedra, inicialmente.
És tu, portanto. Tu que dizes. Tu
que sopras as coisas, tu que fumas.

A todos direi que já sabia, mas é sempre
a remodelar lembrança a dar-me sangue.
Só que nem sempre, é isto, de algo serve:
pois que veias, mais do que intenção?
e que largura imensa só nos olhos?
Fumo sem fogo, amor? Sinais?


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982




22 março 2016

pedro tamen / como se na boca da trompete



Como se na boca da trompete
coloca-se a surdina sobre a vida
e a memória irrompe qual um vento
imitação de sons    de vozes    tiros
num escuro que nada mais já pode iluminar

Não há cheiro novo que resseja a planta
verdadeira    a genuína cor    o prato
a fumegar de uma sápida sopa inexistente
sopra-se na vida todo o ar que o tempo
nos pôs no peito em anos discorridos
e é cor de sombra agora o arco-íris


pedro tamen
memória indescritível
gótica
2000



20 agosto 2015

pedro tamen / e agora: a tua pele.


E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.

Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
No côncavo da mão o sol nascia.


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
s/d





16 dezembro 2014

pedro tamen / a água


2.
Na perfeição do ramo está a pedra. Na seiva
se descobre, no rumo se percebe. Tudo se vai
em rodas de mistério, a própria viração
é a certeza da água, da pureza da água.

Nos trabalhos humildes das nossas mãos capazes,
no seio das maçãs,
no verde-mar dos dedos,
na perfeição do ramo está a pedra.



pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
1958





29 agosto 2014

pedro tamen / os dias


3

Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.
Quando nascia o sol todas as pessoas viam
e os homens eram crianças para além dos montes.
Era uma planície, grande como convém a todas as
                                                             planícies
E plana porque tudo estava certo.
Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais
                                                   às ervas e às flores.
Tu,
tão perfeita que era impossível não seres,
tão erguida como um riso de andorinha,
tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,
e não havia motivos nem razões porque sabíamos
                                                                  tudo.
A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima
e ao deitarmo-nos na terra como folhas da mesma
                                                                 planta,
gratos, reduzidos, conscientes.
Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos
                                  vinham sentar-se no rebordo
e riam como nós pequenas gargalhadas.
Eu cantava canções mais belas do que não tendo
                                                            palavras
e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos,
                    exactamente como a todos os sons.




pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
s/d




30 março 2014

pedro tamen / o sangue



3.
Escrevo estes versos de grãos de terra na mão: eis a prova.
Tenho a certeza dos passos. Todos temos. Só no mais diferimos.
Era uma longa subida. Era a certeza
da nossa própria emigração. A mais bela,
a mais funda companhia. A perfeita igualdade do transporte
foi amassada em três quedas. Um braço, outro braço, um corpo
e a longa subida.



pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
1958





27 julho 2011

pedro tamen / madame butterfly, velha

 
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Engano: não, não me matei,
suguei
a vida que outros deram.
 
Gueixa nasci e aqui estou de gueixa,
borboleta que fui, borboleta que sou,
mosca, ah, sim, mosca,
mas de manteiga.
 
E envelheço porque não morri.
Envelheço? Não pode envelhecer
quem sempre foi assim.
Dizem-me velha? Olhem-me as pinturas:
todos os dias chegam barcos,
barcos, marinheiros,
todos os dias chegam.
 
 
 


 
pedro tamen
relâmpago nº. 13 10-2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003
 
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