Por que dançar esta noite? Saltar,
pular no arame debaixo dos projectores a oito metros do tapete?
Razão, terás tu que encontrá-la. Ao mesmo tempo caça e cata dor,
esta noite saíste do covil, foges de ti próprio
e andas à tua procura.
Onde estavas antes de apareceres na pista?
Tristemente disperso nos teus gestos quotidianos,
não existias. À luz experimentas a necessidade de te reconstituíres.
Todas as noites vais correr só para ti,
ficar contorcido no arame e retorcido numa busca do ser harmonioso,
disperso e extraviado num matagal de gestos familiares:
atar o sapato, assoar, coçar, comprar sabão...
Um só instante vais aproximar-te de ti e deitar a mão a ti próprio.
Na mesma solidão mortal e branca, sempre.
Mas o teu arame — e lá volto eu –
não esqueças nunca que às virtudes dele deves a graça.
Por certo a que tens, mas para descobrir e exibir as dele.
O jogo nem um nem outro favorece: brinca tu com o arame,
irrita-o com o tornozelo, surpreende-o com o calcanhar.
Não temas a crueldade que há entre os dois: cortante,
que vai fazer-te cintilar. E vê lá bem,
não abdiques nunca da mais requintada cortesia.
Faz-te consciente daqueles contra quem triunfarás,
contra nós, sim, mas... através de uma odiosa dança.
Não se é artista sem uma grande infelicidade de permeio.
De ódio contra qual deus? E vencê-lo para quê?
A caça no arame, a perseguição à tua imagem e
essas flechas que lhe espetas sem chegar a tocar-lhe e
a ferem e fazem cintilar, é realmente uma festa.
E será a Festa se acertares na imagem.
(...)
jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984