11 outubro 2012

jean genet / a caracterização?





     A caracterização?
     Excessiva. Desmedida.
     Capaz de prolongar até ao cabelo os teus olhos.
     E vais ter unhas pintadas.

     Quem, normal e bem-pensante, anda no arame
     ou faz versos? louco demais.

     Homem ou mulher? de certeza monstro.
     E pelo Contrário,
     em vez de agravar um exercício destes vai atenuá-lo:
     é realmente mais claro do que um ser paramentado,
     dourado, pintado, para dizer tudo equívoco,
     que ali anda de passeio, sem perder o equilíbrio,
     onde notários e ladrilhadores nunca pensariam subir.

     Pintado pois, e sumptuosamente,
     até provocar náuseas.
     Mal apareça.
     Logo ao primeiro número no arame
     vai compreender-se que este monstro de pálpebras roxas
     só ali poderia dançar.
     Por certo irá dizer-se que pousar naquele arame assim,
     de olhos alongados, faces pintadas, unhas douradas,
     é que o obriga a ficar num Sítio onde nunca havemos nós graças a Deus!
     — de estar.

     Mas procuro agora que me entendam melhor.

     Para o poeta dispor da solidão absoluta que precisa,
     se realmente quer realizar a sua obra
     -- extraída de um nada a preencher e fazer, ao mesmo tempo,
     sensível pode expor-se numa atitude,
     numa atitude qualquer que será para ele a mais perigosa.
     Muito cruelmente afasta curiosos e todos os amigos,
     qualquer convite que tenda a vergar-lhe a obra em direcção ao mundo.

     Queira ele e pode proceder assim:
     largar à volta um cheiro pestilento,
     tão negro que ele próprio há-de perder-se,
     meio asfixiado, nele.

     De todos fugirem. E fica só.
     A maldição aparente vai permitir-lhe todas as audácias,
     já que se não perturba com nenhum olhar.
     E velamos como vai mover-se num elemento
     que parece a morte, o deserto.
     A sua Palavra não levanta eco.
     E porque se não dirige a ninguém,
     só a deve compreender quem estiver vivo,
     e aquilo que enuncia terá de fazer-se necessidade
     que a vida não exige mas antes a morte
     que vai dirigi-lo.

     (...)




jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984



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