Redivivo. E basta a luz do mundo
movida ao toque no interruptor,
ou de lado
a lado negro,
quando se é esquerdo,
o amargo e o
canhestro à custa
de fôlego e lenta
bebedeira: o
esforço de estar vivo -
e lunas e estelas:
e as vozes magnificam pequenas
coisas das casas, e
teias dos elementos
pelas janelas,
teias
portas adentro: da
água compacta no corpo das paredes,
do ar a circundar
as zonas veementes dos utensílios
- e a música
mirabilíssima que ninguém escuta,
o duro, duro nome
da tua oficina de mão torta,
boca
cheia de areia estrita, áspera cabeça,
tanto que só
pensas:
se isto é música,
ou condição de música, se isto é para estar redivivo,
então não percebo
sequer o movimento, digamos,
da laranja
na fruteira, ou o
movimento da luz na lâmpada,
ou
o movimento do
sangue na garganta
impura - e menos
ainda percebo o movimento que já sinto
no papel se se
aproxima, por exemplo,
pelo tremor da textura
do caderno e da
força da
esferográfica
dolorosa, a palavra Deus saída pronta,
arrebatada aos limbos, como se diz que se arrebata
aos ferros, a poder
de tenazes e martelos,
um objecto, vá lá,
supremo:
uma chave, quer
se queira quer se
não queira, mas
que não abre quase
coisa alguma: que abre, a partir de como se está de ro-
dilhas,
um espaço em cada
nome, e nesse espaço se possa
dançar, no abismo
entre um quarto
e outro quarto da
terra, dançar dentro do ar como para
o ar bater nas
paredes, e as paredes
estremecerem com a
água esmagada contra si própria -
e depois
ninguém fala, e cada
coisa actua
sobre cada coisa, e
tudo o que é visível abala
o território
invisível.
Redivivo. E foi por
essa mínima palavra que apareceu não
se sabe o quê que
arrancou
à folha e à
esferográfica canhota a poderosa superfície
de Deus, e assim é
que te encontraste
redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,
apenas.
herberto helder
ou o poema contínuo
súmula
assírio & alvim
2001
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