28 outubro 2012

herberto helder / redivivo






             Redivivo.  E basta a luz do mundo movida ao toque no interruptor,
   ou de lado
   a lado negro, quando se é esquerdo,
   o amargo e o canhestro à custa
   de fôlego e lenta
   bebedeira: o esforço de estar vivo -
   e lunas e estelas: e as vozes magnificam pequenas
   coisas das casas, e teias dos elementos
   pelas janelas, teias
   portas adentro: da água compacta no corpo das paredes,
   do ar a circundar as zonas veementes dos utensílios
   - e a música mirabilíssima que ninguém escuta,
   o duro, duro nome da tua oficina de mão torta,


             boca cheia de areia estrita, áspera cabeça,
   tanto que só pensas:
   se isto é música, ou condição de música, se isto é para estar redivivo,
   então não percebo sequer o movimento, digamos,
   da laranja
   na fruteira, ou o movimento da luz na lâmpada,
   ou
   o movimento do sangue na garganta
   impura - e menos ainda percebo o movimento que já sinto
   no papel se se aproxima, por exemplo,
   pelo tremor da textura
   do caderno e da força da
   esferográfica dolorosa, a palavra Deus saída pronta,


             arrebatada aos limbos, como se diz que se arrebata
   aos ferros, a poder de tenazes e martelos,
   um objecto, vá lá, supremo:
   uma chave, quer
   se queira quer se não queira, mas
   que não abre quase coisa alguma: que abre, a partir de como se está de ro-
                                                                                                                 dilhas,
   um espaço em cada nome, e nesse espaço se possa
   dançar, no abismo entre um quarto
   e outro quarto da terra, dançar dentro do ar como para
   o ar bater nas paredes, e as paredes
   estremecerem com a água esmagada contra si própria -


             e depois ninguém fala, e cada
   coisa actua
   sobre cada coisa, e tudo o que é visível abala
   o território invisível.
   Redivivo. E foi por essa mínima palavra que apareceu não
   se sabe o quê que arrancou
   à folha e à esferográfica canhota a poderosa superfície
   de Deus, e assim é
   que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,
   apenas.





herberto helder
ou o poema contínuo
súmula
assírio & alvim
2001




Sem comentários: