15 agosto 2012

jean genet / paro esta ferida —






     Paro esta ferida —
     incurável porque ele próprio, em pessoa —
     e nesta solidão,
     é que ele deve morrer;

     pode aí desencantar a força,
     a audácia e a destreza necessárias à sua arte.


     Vou pedir-te um pouco de atenção.
     E vê lá bem: para te entregares melhor à Morte,
     fazer que more em ti com a mais rigorosa exactidão,
     tens de estar sempre de boa saúde.
     A doença mais insignificante iria devolver-te à nossa vida.
     Partir esse bloco de ausência que vais ser.
     Uma espécie de humidade com bolores
     haveria de invadir-te. Vigia a saúde.


     (Se o aconselho a evitar luxos na vida privada,
     se o aconselho a andar meio sujo, usar roupa desleixada,
     sapatos cambados,
     é para ter menos à-vontade de noite,
     toda a esperança do dia se exaltar na aproximação da festa,
     a distância de uma miséria aparente
     à mais esplendorosa das aparições
     dimanar tensão tamanha
     que a dança funcione como a descarga de um grito,
     para a realidade do Circo se preservar
     nesta metamorfose em poeira de ouro,
     mas sobretudo aquele que deve suscitar imagem tão admirável
     ser morto ou, se preferirmos, arrastado pelo chão
     como o derradeiro e mais desprezível homem.

     Chego ao ponto de o aconselhar a ser manco,
     cobrir-se de andrajos, piolhos, e a cheirar mal.
     Que o seu corpo cada ‘vez se apague mais para deixar cintilar,
     ser cada vez mais brilhante,
     a imagem a que me refiro, habitada por um morto.

     Que acabe por existir só na sua aparição.)

     (...)




jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984


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