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A
intimidade perdida…
Neste
princípio de insónia, repenso o ritual da leitura, todas as noites, à cabeceira
da cama, quando ele era pequeno, a horas fixas e com gestos imutáveis: era de
certo modo como uma oração. O súbito armistício depois da balbúrdia do dia, os
reencontros livres de todas as contingências, o momento de silêncio concentrado
antes das primeiras palavras da história, a nossa voz que finalmente soa como
de facto é, a liturgia dos episódios… Sim, a história lida todas as noites
constituía a mais bela função da oração, a mais desinteressada, menos
especulativa, a que dizia respeito apenas aos homens: o perdão das ofensas. Não
se confessava nenhuma falta, não havia qualquer preocupação em receber uma porção
de eternidade, era um momento de comunhão entre nós, a absolvição do texto, um
regresso ao único paraíso que tem valor: a intimidade. Sem que o soubéssemos,
descobríamos uma das funções essenciais do conto, e mais generalizadamente da
arte em geral, que é impor uma trégua no combate entre os homens.
O amor
ganhava um novo rosto.
E era
gratuito.
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Gratuito.
Pelo menos era assim que ele o entendia. Um presente. Um momento fora de todos
os momentos. Qualquer que fossem as circunstâncias. A história nocturna
aligeirava-lhe o peso do dia. Largavam-se as amarras. Ia com o vento,
levíssimo, o vento que era a nossa voz.
Não lhe
pedíamos que pagasse a viagem, não lhe exigíamos nada, nem um centavo, não lhe
pedíamos a menor contrapartida. Nem sequer era uma recompensa. (Ai as
recompensas… a necessidade de alguém se mostrar recompensado!) No nosso caso,
tudo era gratuito.
A
gratuidade é a única moeda da arte.
daniel pennacc
como um romance
trad.
francisco paiva boléo
edições
asa
1994
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