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29 dezembro 2024

paul bowles / cena III

 
 
 
Às vezes a febre regressa e eu posso ver as montanhas,
a manhã cheia de freiras que passam
e as terríveis seringas,
as árvores rapaces, as falsas cataratas brilhando com aranhas,
as vinhas do silêncio.
Vejo as mesmas montanhas surdas, com as suas bocas cobertas de neve,
e movo um pouco os meus dedos; ainda assim,
preciso de ajuda.
 
Às vezes a febre vagueia ao anoitecer pelos subúrbios.
Às vezes há apenas uma montanha, meso por cima das nossas cabeças.
Ao meio-dia começa a chover. Os cavalos escondem-se entre as rochas,
e o mar idiota lá está.
De vez em quando preciso de ajuda.
 
«Naquele dia dois mil homens morreram nessa praia infinita.»
 
                Para nós: tubarões, estanho, água estagnada.
                Oito doenças à noite
                enquanto o escorpião se agarra ao tecto.
                Para nós: arame farpado, bocas abertas, sangue seco,
                as cabeças peludas das tarântulas
                e o constante olho cego
                do tempo, congelado no ar.
 
                O vento cai em pedaços
                pelos caminhos da montanha.
                Temos de gritar sem tréguas –
                aquele que pára está perdido.
 
 
                                                  1938

 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



04 abril 2024

paul bowles / tudo o que se lamenta

 
 
 
Quando as raiadas serpentes rastejarem sobre nós
E os nervosos gritos dos pássaros
Calarem todas as fontes e os pomares e quando estes
Prenderem todas as asas
Que esvoaçam no céu
Então uma e outra vez
Arrancarei sorrisos aos passeios do jardim
Transformando as carpas em falcões
As tarântulas e as abelhas
Então uma e outra vez
Destruirei tudo o que se lamenta.
 
 
                                          1929


paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008



 

29 junho 2023

paul bowles / cena VII

 
 
Secar é a única missão do sol.
Não é o prazer dos insectos ou o chicote dos morcegos.
A salgada erupção depois do amor,
Que sabes tu dessas coisas, tu que o devias saber?
O fogo lento, o banho dormente,
A tua ignorância do porvir, a tua surda bondade.
Os farrapos do sol esvoaçam para ferir os teus olhos.
A cama é um refúgio, mas há mosquitos no quarto.
Ranger de dentes, ausência de lágrimas, inércia.
Um forte abraço, nenhuma faca, a tua falsa surpresa.
O sol movia-se, e a terra, noutros tempos.
Agora os abutres voam muito alto, mudos, sobre os sinos.
 
 
                                                                              1940
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 


10 fevereiro 2023

paul bowles / sidi amar no inverno

 



 

Penso que nunca vi o teu rosto
Num dia de chuva, quando as sombrias artérias do céu
Pulsam junto às árvores, e no teu coração
A água corre. Nunca te vi chorar
Com o monólogo da noite, com a tua mente resistindo ao silêncio.
 
Chegará o dia em que as linhas do céu
Se desprenderão das torres
E em que tu, que tremes pela noite
Partirás para os lugares sombrios ao lado de um desconhecido.
 
 
                                                                              1935
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 




01 setembro 2022

paul bowles / mensagem

 
 
Ninguém gritou no Verão
Os dias eram quartos quentes
Pelos irrespiráveis corredores das noites
Um dragão atravessou as pontes do som
Com o brilho das suas escamas e arrastando a cauda
Através dos soluçantes parques, assustando os ratos
 
Tropeçando desceu as ruas e afastou-se da colina
O seu riso percorreu e serpenteante rio
Todas as cúpulas da cidade estremeceram no seu alabastro
E junto às árvores dos subúrbios do sul
As ervas mais secas quebraram-se e enrugaram-se
 
 
                                                         1929
 
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



09 agosto 2022

paul bowles / noites

 
 
Tempos houve, aqui ou além,
em que o murmúrio das palavras não era suficiente.
 
Em alguma estante da memória jaz um Verão perdido,
um que não guardámos para saborearmos um dia.
certamente acabou depressa, com inesperados nevoeiros,
com o vento a deslizar pela incomensurável escuridão.
 
Nenhuma voz podia ser suficiente, aqui ou além,
e as horas caindo velozmente.
 
                                                            1977
 
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008