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08 março 2008

as origens da arte moderna




Foi no Salão dos Recusados de 1863, à margem do Salão oficial da Academia, que alguns pintores jovens, que viriam a ser os impressionistas, tiveram consciência das suas aspirações comuns. O Almoço na Relva de Manet, tinha causado escândalo. O público indignava-se perante essa arte viva que, todavia, se limitava a retomar moderadamente um velho tema clássico querido a Giorgione e a Ticiano. Se o termo «impressionismo» surgiu na boca dum jornalista trocista a propósito duma tela de Claude Monet, Impressão, Sol Nascente, pode realmente definir a estética que corresponde aos acontecimentos sociais, culturais e científicos cerca de 1870. O futuro pertencia à ciência; as grandes invenções sucediam-se: Bell descobria o telefone, Edison, a lâmpada de incandescência, Pasteur, as leis da assepsia; as linhas de caminho de ferro multiplicavam-se. Uma vez que a invenção da fotografia punha ao alcance de todos a reprodução fiel do mundo visível, tornava-se necessário ir mais longe do que o realismo de Courbet. Por outro lado, as pesquisas de Chevreul no domínio da óptica e da cor mostravam que a luz se dividia em cores fundamentais, as quais eram registadas na retina segundo determinadas leis, pois os olhos apenas detectam manchas luminosas modeladas pela cor.

Assim, os pintores impressionistas, para captarem melhor a realidade óptica essencialmente luminosa e momentânea, acabaram por se interessar principalmente pela natureza, pela luz incessantemente mutável da paisagem, pelos espectáculos mais fugidios: as reverberações da água, as nuvens. Abandonando o atelier, instalando-se ao ar livre, aplicam a cor pura com pequenas manchas separadas, reconstituindo assim toda a luminosidade e movimento das coisas. Entretanto, Manet desconfia do «ar-livi-ismo»; já sabemos que ele gosta do jogo dos negros e dos brancos, dos mistérios da sombra e da luz, dos cinzentos. A procura dos tons puros feita pelos seus amigos impressionistas nunca o afastará dessas preferências. A Olímpia é uma variação sobre o claro-escuro; a pincelada fluida brinca nos brancos quentes da pele, no marfim do xaile e no branco azulado do lençol. As diversas texturas são apenas sugeridas; o artista não procurava indicar todos os fios do tecido. Uma pintura tão fresca, tão clara e tão directa teria que ofuscar a Academia, a qual considerava o quadro apenas como um esboço.

Contudo, esta obra-prima tratava um assunto frequentemente exposto nos Salões, o nu; mas os nus oficiais eram adocicados e idealizados, enquanto o de Manet é duro e realista; a carne parece viva e sólida, ao passo que os pintores tradicionais parecia que enchiam os modelos com algodão. Além disso, os nus académicos, sempre alegóricos, eram impessoais, pretendendo representar a Verdade, a Primavera ou a Alvorada, enquanto o de Manet é individualizado e, nessa época, identificável, pois é o retrato dum modelo profissional muito conhecido.

Vinte anos depois, n’ O Bar do Folies Bergére, Manet leva mais longe a simplificação das formas. As garrafas do bar são indicadas com uma série de pinceladas ousadas; Manet mostra apenas o essencial. O seu realismo óptico nunca é fotográfico. Implica uma selecção, uma escolha de pormenores vaporosos que não tem nada de comum com a precisão, forçosamente objectiva, da fotografia dessa época. Por maior que seja o interesse de Manet pelos fenómenos ópticos, o artista nunca se esquece de que é pintor, dispondo-se a sacrificar a realidade visual à composição. Atrás da criada, um espelho reflecte a sua imagem e a dos clientes sentados. Ora, sob o ponto de vista do realismo, é evidente que ninguém que se encontrasse diante da criada poderia ver todas essas imagens. Manet escolheu, pois, arbitrariamente, várias ópticas diferentes para intensificar a impressão que nos quis dar.

Separadamente, os temas tratados pelos impressionistas não têm talvez importância, mas, considerados em conjunto, traduzem a vida da época. Pessoalmente, Manet era bastante venturoso. Preferiu muitas vezes reconstruir os modestos divertimentos campesinos dos parisienses; mas retratou também outros, mais mundanos. As diversões campestres, como actualmente os fins-de-semana no campo, faziam na altura a alegria de muitos citadinos. Os pintores evocavam esses pequenos prazeres junto do rio, os passeios de barco e o sossego dos campos. Manet e outros gostavam também de mostrar os teatros, os passeios públicos, as salas de dança e os hipódromos, divertimentos preferidos da boa burguesia.

Claude Monet (1840-1926) é o verdadeiro corifeu do movimento impressionista. Formou-se junto de Boudin, Jongkind e Courbet. Em 1870, refugiou-se da guerra em Londres, na companhia de Pissarro e Sisley. A qualidade particular da luz londrina exerceu nos três artistas uma fascinação extraordinária que determinou o destino do Impressionismo. A luz brumosa e difusa que dilui os contornos correspondia às suas pesquisas. Apesar da sua precisão atmosférica, as paisagens de Monet têm uma grande beleza lírica. Um profundo amor à natureza impregna a sua obra, transcendendo o aspecto objectivo . A composição é tão livre que parece fortuita, e a rapidez da pincelada fez com que as pessoas da época dissessem que eram apenas esboços. Monet acabou por não ver no mundo senão um efeito de perpétuos movimentos luminosos .

Ninguém levou tão longe o estudo da luz como Monet. Pierre Auguste Renoir (1841-1919) divide os tons nas suas paisagens, mas parece estar menos apaixonado pelos problemas da atmosfera e da luz. Importa-lhe, principalmente, a figura humana, de preferência feminina. N’ O Baile no Moulin de la Galette, representando um lugar onde se dança ao ar livre, utiliza-se pouco a cor dividida. Todavia, encontra-se o gosto impressionista pela luz nos raios de sol filtrados pelas folhas das árvores e salpicando as caras e os vestidos azuis das mulheres. E o que desconcerta toda a gente, em 1876, pela sua novidade, é as sombras terem uma tonalidade violeta, o que todavia se pode verificar na realidade, olhando atentamente.

Com o tempo, Renoir continuou a estudar a mulher, de preferência gorda como a Banhista, uma das numerosas versões dum mesmo tema. Se utilizou a técnica impressionista até ao fim da vida, foi para poder obter tonalidades brilhantes com pequenas pinceladas vivas de vermelho, amarelo, violeta e azul. A expressão do volume tornou-se o centro das suas preocupações. Embora as figuras sensuais sejam um pouco estilizadas, a estrutura e o movimento delas continuam a ser primordiais. Encontra-se nas suas telas algo característico de Rubens, reelaborado pela imaginação fecunda de Renoir, tornando-se mais delicado, tipicamente francês. É que este pintor, mais do que os outros impressionistas, conservou alguns elementos da tradição francesa que o ligam espiritualmente a alguns grandes artistas franceses do passado, como Delacroix, Fragonard ou Boucher.

Edgar Hilaire Germain Degas (1834-1917) não pode ser considerado como um verdadeiro impressionista. Conservou o desenho delicado de Ingres, e mesmo o seu estilo linear. Muito rico, Degas criava para seu próprio prazer; desprezava tudo o que era banal; apreciava, pelo contrário, o inesperado e o que contrariasse os hábitos. As cores de algumas das suas cenas de bailado ou das suas banhistas podem espantar o espectador ou chocá-lo. É que Degas não hesita em associar um verde arsénico com manchas vermelho-tijolo ou malva; estas combinações parecia destoarem, quando na realidade dão muito sabor à sua pintura. Nessa época, considerou-se essa paleta discordante; os nossos olhos habituaram-se a esses efeitos, assim como o ouvido se habituou também há muito tempo à música de Wagner, que na mesma época se considerava cacofónica.

A rejeição de convenções não se encontra apenas nas composições de Degas, mas também na escolha dos temas. O pintor evita os tipos e as atitudes amáveis, preferindo o que então se considerava deselegante. Por outro lado, a Bailarina exprime, com muita felicidade, mais a beleza passageira do bailado do que a personagem, e é realmente por este aspecto fugidio do momento fixado na tela que o artista se vincula ao Impressionismo. Poderá notar-se que a bailarina se encontra à direita do quadro. Todavia, a composição está perfeitamente equilibrada, porque o artista contrabalançou a mancha clara da bailarina com a mancha escura do chefe do corpo de dança, junto aos bastidores. Verifica-se assim que a pintura, quando o assunto se torna secundário, adquire significação e qualidades a partir da disposição, cuidadosamente composta, dum certo número de superfícies e de volumes coloridos que são como outras tantas acentuações. Até então, a pintura ocidental tinha-se quase sempre baseado num conjunto de linhas ou de movimentos que conduziam o olhar dum ponto para outro e que ligavam as formas umas às outras, criando a unidade da composição. Esta podia ser geométrica, como nos pintores do Renascimento italiano, ou livre, como nos mestres holandeses, mas uma certa ligação visual existia sempre entre as diversas partes. Pelo contrário, a arte extremo oriental tende a basear a composição na reunião dum certo número de acentuações gráficas e coloridas. Os Orientais conhecem, por exemplo, o valor dos brancos, formando espaços abertos, e tiram partido disso: dispõem algumas flores ou frutos num rectângulo e é essa disposição que cria a composição e sugere o espaço.

Precisamente, os impressionistas descobriram as estampas japonesas, assim como tinham descoberto Velásquez, não só porque estavam preparados para as compreender, mas também, mais directamente, porque se efectuou uma exposição de estampas dessas em Paris nos anos 6o. Degas não vai buscar os temas à arte oriental; mas as suas composições são influenciadas por ela, assimilando-a a ponto de a integrar no próprio estilo. É por isso que lhe acontece omitir uma parte dum objecto, e mesmo a parte mais importante, desde que a parte restante cumpra a função plástica procurada. Por exemplo, o chefe do corpo de dança fornece a mancha escura necessária para estabelecer um equilíbrio assimétrico; mas a cabeça não acrescentaria nada e por isso Degas esconde-a atrás dum pano do décor. Em vez de respeitar o ângulo de visão habitual, o pintor prefere olhar as personagens dum ponto de vista inédito, ora de cima, como se estivesse no balcão, ora de baixo, como se o espectáculo fosse observado do fosso da orquestra. Esta óptica explica-se facilmente, porque Degas era um frequentador assíduo da Ópera de Paris. Desde então, a fotografia e principalmente o cinema multiplicaram os enquadramentos e os ângulos de visão deste género, de modo que estamos actual e perfeitamente familiarizados com eles.

Como Degas, Toulouse-Lautrec (1864-1901) tem uma lucidez notável. Observa os costumes e os vícios dos seus contemporâneos e, com uma linha firme e expressiva, fixa-os numa cruel verdade.

Os inovadores do fim do século não tardaram a pôr em dúvida as próprias premissas do Impressionismo. A finalidade da pintura seria efectivamente registar o momentâneo, uma atmosfera sempre em mudança, uma ambiência luminosa efémera e fortuita? Não deveria o pintor procurar uma significação mais permanente? Não deveria estudar, antes de mais nada, a estrutura e a forma em vez das aparências? Alguns pintores pós-impressionistas testemunham estas inquietações. Entre eles, citemos em primeiro lugar Georges Seurat (1859-1891). Um Domingo na Grande-Jatte é impressionista pelo assunto: parisienses «de boa sociedade» vêm tomar ar à beira de água. Seurat, conservando inicialmente a divisão da pincelada impressionista, leva-a mais longe, fragmentando metodicamente essa pincelada em pontos coloridos, e é por isso que a sua técnica foi denominada pontilismo. Com efeito, consiste numa justa-posição de pequenas manchas de cor cuja intensidade é graduada para criar uma certa profundidade. Enquanto o método de Monet era parcialmente instintivo, o de Seurat é rigoroso e fundamentado.

As formas, de novo mais nítidas, estão de tal modo estilizadas que parecem quase abstractas, O artista não pinta nenhum pormenor supérfluo. Interessa-se principalmente pelos contornos, reduzidos ao essencial, que transformam as massas em figurações quase geométricas, representem elas o que representarem. As formas já não são um pretexto para exprimir os volumes e estabelecer o seu lugar no espaço. Não há movimento neste quadro e as personagens, rígidas, lembram as figuras monumentais de Piero della Francesca; tudo se passa de facto como se se encontrasse uma síntese da vida, imobilizada num instante altamente significativo e não apanhada repentinamente num momento passageiro. A isto chama-se Neo-impressionismo. Seurat morreu jovem. A sua obra marca um dos pontos de partida da arte moderna.

Também Paul Gauguin (1848-1903) exerceu uma influência determinante. Tornou-se pintor relativamente tarde, depois de ter sido marinheiro e empregado bancário. De ascendência peruana pelo lado materno, revoltou-se contra todas as convenções da sua época, tanto na vida privada como na vida artística. Primeiramente influenciado pelas cores luminosas dos impressionistas, depressa ficou fascinado — consequência das suas viagens marítimas — pelas civilizações primitivas, pouco marcadas pelo Ocidente. Foi sempre um visionário panteísta. Logo de início, a fé quase infantil das aldeãs da Bretanha inspirou-lhe O Cristo Amarelo, em que a figura distorcida do Redentor, tal como a mostram os calvários bretões, lembra as crucificações dos pintores italianos dos séculos doze e treze. Gauguin mostrou-se pouco preocupado com o realismo; o seu grafismo e as cores lisas anunciam já de certo modo o Expressionismo e, evidentemente, o Simbolismo. As toucas brancas das mulheres formam um arabesco sem relevo; lembram a arte do vitral, com zonas duma só cor delimitadas por contornos.

Este período bretão foi a primeira etapa do regresso de Gauguin ao primitivismo. Em 1891, instalou-se no Taiti. Este retorno às origens da arte revela-se bem em Manao Tupapau: a composição é bidimensional; cada forma ou zona colorida está delimitada por um contorno e pintada com uma só cor, sem modelado (designado, aliás mais sistematicamente, noutros artistas da mesma época, por cloisonnisme (termo que define a compartimentação das zonas coloridas nos quadros de Gauguin e seus continuadores. De cloison, tabique)). Para conseguir uma obra altamente decorativa, Gauguin não hesita em deformar as proporções das figuras, em modificar a perspectiva ou em sacrificar as cores da realidade. Os seus tons vigorosos são agora efectivamente os das tapeçarias e vitrais medievais. Apesar da intensidade das cores, os valores luminosos são pouco contrastantes no conjunto, sendo a riqueza das cores devida à sua profundidade.

Gauguin, tanto pelas pessoalíssimas concepções da arte, como pelas suas ideias sobre a religião, foi muito atraído pela arte primitiva, cujo carácter linear e ausência de perspectiva são em parte consequência da indiferença em relação a qualquer realismo e, por outro lado, são também consequência da interpretação mágico-religiosa das formas. Preferir isso à vida parisiense, era nessa época muito chocante para as pessoas, que, como bons burgueses conformistas, não lhe perdoaram. Com o tempo, a sua obra — a única coisa que conta, como em qualquer criador — triunfou dos preconceitos sociais. Gauguin extraiu dos povos primitivos tudo o que correspondia à sua estética pictural, sem os imitar todavia. Porque, apesar de pouco realistas, as suas formas não têm de modo algum uma concepção polinésica. Os assuntos têm muitas vezes uma inspiração ocidental, mas as personagens, o décor, grande número de símbolos e os títulos dos quadros do último período são neozelandeses.

Mais literalmente simbolista é a arte poética e misteriosa de Odilon Redon (1840-1916). Durante toda a vida, Redon teve talvez mais a companhia dos poetas do que a dos pintores. Foi amigo de Mallarmé e de Valéry. Sensível ao fabuloso, ao mágico, submeteu-se ao inconsciente, encontrando imagens próximas das «correspondências» de Baudelaire.

O místico ardente que era Vincent van Gogh (1853-90) lançou-se com uma paixão quase incontrolada em tudo o que fez. Como Gauguin, teve outras actividades antes de se consagrar unicamente à pintura. Empregado durante muito tempo na loja de Goupil, marchand d’art internacional — primeiro em Haia, depois em Londres e finalmente em Paris —, esse holandês visionário abandonou a profissão em 1876 para se tornar evangelizador protestante e trabalhar como missionário nos bairros pobres de Whitechapel, em Londres, e depois junto dos mineiros de Boridage. Mais pobre que os miseráveis a quem se dedica de corpo e alma, esse iluminado inquieta de tal modo os seus superiores religiosos que estes despedem-no. Em i88o, decide pintar, entregando-se à arte com uma energia feroz, produzindo uma grande quantidade de obras notáveis, principalmente durante os últimos cinco anos da sua vida, como se quisesse dizer tudo antes que a loucura e a morte o levassem.

Foi durante algum tempo amigo de Gauguin, que o influenciou um pouco, mas apenas exteriormente. O cloisonnisme e as cores lisas de Gauguin encontram-se, por exemplo, em A Ama, de Chicago (um dos cinco retratos que Van Gogh fez da Senhora Roulin), mas o sentido dos volumes é mais pronunciado em Van Gogh; antes de mais nada, é um retrato apaixonado e ardente que traduz o carácter do modelo, reflectindo simultaneamente a personalidade do artista. Van Gogh não se interessa pela beleza abstracta; procura principalmente valorizar o que lhe parece significativo ou expressivo (de facto, é um precursor do Expressionismo). Assim, viu a Senhora Roulin mormente como uma mãe; por isso aumenta as ancas e os seios. Como o pescoço se lhe apresentava desprovido de interesse, colocou a cabeça directamente em cima dos ombros. Quanto aos traços fisionómicos, bastante pesados e um pouco grosseiros, desprezou-os relativamente para dar maior importância aos olhos e à boca, aumentando-os para valorizar mais as características essenciais da cara.

Apesar da intensidade plástica desta tela, Van Gogh mostra-se nele muito decorativo, o que não está nos seus hábitos. A sua energia incandescente transforma em chamas A Estrada dos Ciprestes, em que o mais pequeno pormenor adquire uma vida atormentada. As cores foram aplicadas com violência em estrias onduladas, por vezes com o pincel, mas, mais frequentemente, com a espátula; a luminosidade e a pureza dos tons mostram que Van Gogh utilizava as cores tal como saíam dos tubos, sem as misturar. Toda a paisagem está em movimento; as árvores parecem chamas verdes e a terra é semelhante a uma vaga; céu e sol reduzem-se a turbilhões. Esta orgia visual, como muitas outras do mesmo artista, é sem dúvida produto dum espírito delirante, mas literalmente possuído pela necessidade de criar.

Se a Gauguin interessa principalmente o aspecto decorativo e a Van Gogh a grande intensidade dramática, Paul Cézanne atribui uma importância primordial à estrutura. Inicialmente, Cézanne (1839-1906), que era mais velho do que os outros dois, mas atingiu mais lentamente a maturidade artística, expôs com os impressionistas; todavia, a sua pincelada não tinha em nada a fluidez e a virtuosidade que Manet apreciava. Este, aliás, falando das telas de Cézanne, qualificava-as de «pintura suja», porque nessa altura elas estavam cheias duma pasta espessa, brutalmente triturada. Cézanne não negava algumas conquistas do Impressionismo, principalmente no domínio da cor, mas não podia admitir o seu gosto pelo momento transitório. Assim, procurou combinar as suas teorias da luz com a estrutura sólida que tinha observado nos museus, nos quadros dos mestres antigos.

A sua Natureza-Morta com Cesto merece um estudo profundo. Como Chardin, Cézanne dá à sua composição um certo equilíbrio arquitectónico. Ano após ano, estudou cada vez com mais cuidado a disposição das coisas que queria pintar. Escolhe objectos muito simples, que coloca frequentemente numa mesa de cozinha, como acontece neste caso. A disposição desta natureza-morta é subtil, na sua aparência despretensiosa. A parte da frente da mesa está paralela ao plano do quadro, o que é acentuado pelos objectos colocados horizontalmente na mesa e pelos frutos alinhados dentro do cesto. A cadeira que se vê ao fundo e o canto da outra mesa, à direita, põem fim a esta série de planos paralelos. Poderá notar-se, de resto, que esta composição é um conjunto de figuras geométricas. Assim, as maçãs são esferas e, para sublinhar esta forma, várias pinceladas concêntricas repetem a sua silhueta circular. Os contemporâneos censuravam Cézanne, dizendo que desenhava mal, e apresentavam como exemplo este género de naturezas-mortas. Mas Cézanne quis que, ela fosse assim mesmo, para obter um efeito de composição: o que ele fez foi submeter os dados do real ao fim artístico que queria atingir. De facto, com Cézanne começa uma das grandes aventuras da arte moderna: submeter as formas da natureza às necessidades da composição.

A aparências da realidade tiveram pois uma importância cada vez mais relativa para Cézanne. Por muito bela que seja a textura duma maçã ou a luz incidindo no fruto, são factores insignificantes para o artista, em comparação com a natureza fundamental do fruto e as possibilidades picturais que apresenta. Em geral, as maçãs são quase esféricas. É isso que ele retém e não os acidentes que possam deformá-las ou alterar-lhes a cor. Cézanne tenta dar o aspecto permanente e universal da maçã, tal como o imaginamos quando pronunciamos a palavra «maçã». Desde Giotto, a reprodução do volume numa superfície plana tornara-se uma das principais finalidades da arte ocidental. Cézanrne tentou também sugerir o volume, mas apenas com a cor, e não com os jogos de luz. Aí estava algo de novo! Efectivamente, Cézanne tinha reparado que algumas cores parece fazerem avançar as superfícies no espaço, enquanto outras as fazem recuar; este fenómeno visual permitiu-lhe modelar as massas apenas com a ajuda da cor e estabelecer uma sucessão de planos servindo-se unicamente de tonalidades diferentes. Cézanne abria assim um caminho novo para a pintura. Disse-se muitas vezes que foi, como inovador, o Giotto do século XIX. Primitivo do seu tempo, na medida em que tinha — como ele próprio dizia — «uma pequena sensação» da existência de possibilidades ainda inexploradas.

Esta «modulação modelante» pela cor pura, e a importância atribuída à estrutura, constituem os fundamentos da pintura de Cézanne e explicam o lugar importante que ocupa na história da arte. Reencontram-se estas concepções nas suas paisagens, como A Montanha Sainte-Victoire, de Washington (uma das suas numerosas variações sobre esse tema). Esta paisagem foi primeiro dividida em «tramas», ou seja num certo número de rectângulos, cada um deles desempenhando uma função na composição total, devido à ordenação dos pormenores e dos planos. Tem-se inicialmente a impressão de que estas composições inspiradas na natureza não têm nenhuma relação com a realidade, que são imaginárias. Ora, acontece que foram fotografados os lugares pintados por ele em Aix-en-Provence e arredores; as fotografias são evidentemente mais pormenorizadas do que os quadros, mas os elementos essenciais destes encontram-se surpreendentemente nas fotografias. Cézanne aplica aqui o mesmo método das naturezas-mortas; analisa o que vê diante de si com grande cuidado de modo a reter os elementos susceptíveis de formar uma composição pictural perfeitamente arquitectada rejeitando todo o acessório. No primeiro plano, o ramo de pinheiro, que tem o mesmo movimento da silhueta da montanha no horizonte, é um exemplo excelente disto. Tudo nos leva a pensar que esse paralelismo existia realmente, mas o pintor descobriu-o e tirou partido disso para criar uma relação entre o primeiro plano e o fundo, para nos fazer sentir uma impressão de espaço e conferir uma unidade maior à composição. E, tal como nas naturezas-mortas, prefere o geral ao particular, valorizando por exemplo a massa cilíndrica do tronco da árvore e a silhueta característica da montanha.

Voltamos a encontrar os mesmos princípios nas composições com figuras humanas. Agora, o problema é todavia mais complexo, uma vez que há seres vivos. Nas paisagens e naturezas-mortas, Cézanne podia não considerar o movimento. Era-lhe pois mais fácil tratar na tela apenas alguns elementos da realidade. Abordando a figura humana, a deformação torna-se mais perigosa, especialmente em relação às ideias da época. Contudo, na obra de Cézanne, não é bem de deformação que se trata, mas antes de selecção e estilização. Em suma, o artista modificou principalmente as dimensões e as proporções das diferentes partes do corpo. As Grandes Banhistas, do Museu de Filadélfia, são um exemplo extremo disso. Uma das ambições de Cézanne era fazer «Poussin diante da natureza», quer dizer, reencontrar a estrutura pictural do mestre antigo e associá-la com a paleta dos impressionistas. A composição das banhistas é geométrica. As árvores inclinam-se para a frente, formando com o grupo um triângulo equilátero. Por sua vez, os dois grupos de mulheres nuas formam dois triângulos no interior do precedente. Neste exemplo, a exactidão anatómica tem pouca importância em comparação com as exigências da composição. As figuras humanas surgem-nos como formas geométricas, tal como o tronco da árvore se torna cilíndrico n’ A Montanha Sainte-Victoire e a maçã toma o aspecto esférico na Natureza-Morta.

As pinturas de Cézanne protestam contra a falta de estrutura das obras impressionistas, mas também, e ainda mais, contra a insignificância dos pintores oficiais, como Bouguereau e muitos outros. Basta comparar as telas características de Cézanne com as de Bouguereau para avaliar a distância que separa a arte inovadora do grosseiro sentimentalismo estagnado das celebridades então consagradas. O Nascimento de Vénus, de Bouguereau, por exemplo, representa tipicamente o ideal artístico duma sociedade de novos ricos. As figuras esguias e moles estão por certo bem desenhadas, segundo as normas académicas. O traço de Ingres combina-se com leves influências de Botticelli e de Rafael. Está tudo feito com cuidado e minuciosamente arranjado, mas é impessoal e sem alma. Só uma classe de novos-ricos, sem sentido crítico nem formação artística, podia deleitar-se diante desta obra de efeitos superficiais. Nada disto acontece com as telas poderosas de Cézanne, cheias de invenções picturais. É que Cézanne, diferentemente de Bouguereau, tinha alguma coisa para dizer e exprimir.


história mundial da arte
everard m. upjohn, paul s. wingert e jane gaston mahler
trad. maria teresa tendeiro e rui mário gonçalves
vol. 6 – artes primitivas e arte moderna
bertrand editora
1966


21 janeiro 2008

os livros de pascale










(…)

O deserto tem muitas coisas belas, mas nada dá mais paz aos homens que o atravessam do que estar deitado de noite por baixo do seu céu. O ar seco perdeu até os mínimos vapores do dia e as estrelas tombam em cascata de um baixíssimo tecto colorido de um violeta translúcido como água; dir-se-ia que nos chovem em cima em torrente. Os perfumes do deserto desaparecem com o frio, e não resiste em redor um rumor mais consistente do que a respiração do nosso vizinho deitado um pouco adiante. De dia caminhámos, ao entardecer virámo-nos a oriente para o nosso deus e alimentámo-nos de poucas coisas gordas e boas. Bebemos a água pura e doce tirada lá de baixo, no fundo do coração do Sara, e agora só nos resta arrumar-nos no centro do céu e ficarmos em paz com todas as coisas. É o que todos fazem.

Eu procurava todas as noites colocar-me um pouco afastado dos outros, para me treinar a vencer o medo dos escorpiões que se deitam debaixo das pedras da superfície — nunca me curei deste medo — e, enfiado no meu saco-cama, olhava para cima e inevitavelmente vinham-me à mente três ou quatro versos daquelas poesias que tinha lido na praia:

Chega lá o poeta
e depois retorna à luz […]
[…] estou longe com a minha melancolia
atrás de todas as outras vidas perdidas

Estes versos que me vinham mastigados à boca eram quase como urna oração; não poderei defini-los de outro modo. Eu não tinha o meu deus como os outros. Não podia no meio das dunas arranjar um lugarzinho, pôr o tapete no chão e aliviar-me um pouco do estupor do deserto com uma confortante canção de embalar a murmurar ao Sol que se põe. Chegava à noite desarmado e sozinho. E aquele — ainda me custa a pronunciar o seu nome — apoderava-se então da noite desértica e falava por mim a seu respeito. Dizia que no meio dela, confundido com todo aquele reluzir de estrelas em silêncio, eu descobria em qualquer parte de mim uma dor, um pequeno espasmo misterioso que me fazia comover por algo que eu não sabia muito bem o que era. E, ao deixar-me cair adormecido, parecia-me ver as estrelas tombarem sobre mim sem peso e sem queimarem.

Acordava sempre com a sensação de que um escorpião estava a farejar por entre as pregas do saco-cama. Mas era a primeira luz da manhã que começava a aquecer-me. Bebia leite de camela e depois chá fortíssimo e muito açucarado, comia biscoito cozido na pedra e tornava a pôr-me a caminho com o meu jumento. Tchonc, tchonc, tchonc, batiam as minhas coxas na barriga mole da burrinha. E com aquela melodia poderia ir até ao infinito, com todos os meus sentidos tranquilamente à espera do que havia de trazer o dia.

No deserto há muitas coisas para ver, ouvir e cheirar. E cada uma tem um grande espaço em seu redor. Um arbusto enfezado de murta lança um perfume intensíssimo, mas é o único arbusto no raio de quilómetros e é o único odor que pode notar-se naquele momento. Com o olhar podem abraçar-se diversas horas de caminho e muitas montanhas e depressões e pistas que se perdem além do horizonte, mas nada está amontoado ao acaso, nada se sobrepõe e colide, como acontece numa cidade. Assim, todos os ruídos são distintos e livres de se propagarem até ao infinito. Tudo isto é muito repousante, tudo isto dá um sentimento de grande ordem e limpeza que torna fácil o caminho e nos deixa livres para pensar em sossego. Assim, o tempo torna -se uma coisa muito discutível e uma marcha de dez dias pode parecer um curto e agradável passeio. Desde que não queiramos alterar as regras. Fazem-no os que do deserto saem maltratados e perturbados ou os que não saem vivos; parece quase impossível, mas ainda há quem tente fazer as coisas à sua maneira. Eu viajava desviando-me sempre que me apetecia ver qualquer coisa ou perseguir um ruído. A corrida de um coelho, um grupo maravilhoso de rochas violetas, uma depressão escavada por fendas estranhas e complicadas, uma pista mal traçada que levasse à invisível nascente de água protegida por um beduíno e por uma palmeira anã. Inépcias deste género.

Nas horas mais quentes procurava urna sombra entre as rochas e fazia o chá com os pauzinhos que havia apanhado ao longo do caminho; o jumento tinha a sua aveia e para ele era sempre domingo. Eu pensava em muitas coisas, creio que sem cessar, mas de um modo tão suave e tão leve que nem dava por isso. Estava a dar-me a um luxo: esta minha marcha era como que umas férias de tudo. Assim cheguei a Siwa. E cheguei lá em companhia de urna data de gente.

Vinham do Sinai e estavam com as mulheres e os filhos num total que talvez fosse de duzentos, amontoados em cima de velhos camiões militares. Encontrei-os pouco antes da descida da colina de Dakrour, quando para lá da primeira barreira de palmeiras já se via a piscina de água quente que, dizem, mas não é verdade, foi construída por Marco António para Cleópatra. Avançavam pela estrada muito lentamente, precedidos por uma camioneta da milícia, os quatro camiões apinhados de gente carregada de trouxas, e em cada um deles um soldado negro e magro tentava desfraldar no ar pesado de poeira escaldante a bandeira verde da Jihad. Dos lados dos camiões estavam pendurados cartazes já desbotados com frases que eu não percebia escritas em caracteres muito grandes.

Quando a caravana me alcançou arrancando numa ultrapassagem interminável, um tipo de cara cinzenta de pó gritou-me qualquer coisa incompreensível. Fiz-lhe um gesto de saudação e por única resposta ele entoou um canto, encorajando com amplos gestos toda a gente a fazer o mesmo. Saiu um coro a custo que foi enfraquecendo logo até se tornar uma ladainha desafinada e bastante lúgubre. Deviam estar todos esgotados. Contudo, passado pouco tempo esse tal debruçou-se do parapeito e repetiu-me gritando a sua pergunta: «Inglé?». Não. Agora finalmente compreendi. «Yenky? » «Não, alexandrino, alexandrino da junihuriya árabe do Misr», respondi-lhe, com a certeza de que a minha cómica inflexão o enterneceria.

E, de facto, tal como todos os árabes que tenham uma pequena conversa na sua língua comigo, também se pôs a rir. Só que ria às gargalhadas e por entre os soluços continuava a gritar-me «Iskandariya, Iskandariya a gorda, a puta gorda, a puta gorda! Ah,, homem afortunado de lskandariya!», escandindo bem as palavras, corno se fizesse tenções de ensinar-me urna frase novinha em folha. E, com efeito, era a primeira vez que alguém, dirigindo-se a mim, usava o nome árabe de Alexandria.

Entretanto, a minha burra insistia em zurrar de despeito pela poeira que os pneus levantavam, envolvendo-nos em moles e asfixiantes baforadas de pó-de-talco. Para manter a dignidade, tentei acalmá-la com umas pancadas secas das rédeas no cu gordo. Era a primeira vez que demonstrava a minha autoridade de maneira assim brusca, e ela levou tão a mal que desatou a arrastar-me numa louca galopada pela ladeira abaixo, se calhar querendo mostrar ao vasto público dos refugiados a sua indómita burrice. Os dos camiões reanimaram-se de repente e começaram a incitá-la inesperadamente de bom humor, berrando toda a espécie de insultos. Eu só podia tentar manter-me em equilíbrio na garupa fazendo por salvar a pele. Assim, entrei em Siwa perseguido por uma horda motorizada de árabes em aclamação, meio morto de medo, agarrado às rédeas do jumento que rangia os dentes como um chacal.

Passei uma semana a tomar estupendos banhos quentes nas velhas piscinas, a vadiar pelo oásis por entre as ruínas dos antigos monumentos e a beber vinho de taráxaco no café de um pequeno hotel que tinha uns quartos estranhamente bonitos. Siwa era o Egipto, o Egipto árabe e africano, o Egipto dessa civilização demasiado velha para ser compreensível, mas que perdurava misteriosamente nos rostos de uma raça jamais vista em Alexandria: gente que falava um dialecto de sons cerrados entre os lábios e se vestia de cores conturbantes. Para mim, era como estar em viagem por um trópico que jamais atravessara.

Via coisas bastante notáveis à minha volta, coisas estranhas e exóticas, mas a minha curiosidade enfraquecia logo até se reduzir a nada. Vagueava em vez de observar. Caminhava como que pairando entre os pomares de damasqueiros e os hortos de palmeiras pejadas de cem maravilhosas qualidades de tâmaras. Brincava com os reflexos claro-escuros dos regatos ou no meio das grandes pedras historiadas do templo do Oráculo, sem realmente procurar nem descobrir nada que me sacudisse de um profundo desinteresse interior.

Em resumo, tinha a cabeça noutro sítio qualquer. Só que não sabia onde, senão poderia orientar-me de qualquer maneira. De vez em quando, ia ter com a minha burra ao estábulo onde estava alojada e, despreocupadamente, confiava-lhe que não me sentia nada brilhante para a minha idade e a minha condição. Ela, naturalmente, não respondia.

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maurizio maggiani
os livros de pascale
trad. josé colaço barreiros
gradiva
1996

18 outubro 2007

mestres-do-chá




Na religião, o Futuro está atrás de nós. Na arte, o Presente é o eterno, O mestre-do-chá defendia só ser possível a verdadeira apreciação artística aos que a encaram como uma influência viva. Assim, procuraram regular o quotidiano das suas vidas pelo elevado padrão de requinte que prevalecia na sala-de-chá. Fosse qual fosse a circunstância, havia que manter a serenidade de espírito, e a conversa deveria conduzir-se de modo a nunca perturbar a harmonia da ambiência. O corte e a cor do traje, a pose do corpo e a maneira de caminhar podiam ser transformados em expressão da personalidade artística. Estes preceitos não deviam ignorar-se com ligeireza, pois até se tornar a si próprio belo ninguém tem direito a aproximar-se da beleza. Assim, o mestre-do-chá esforçava-se por ser algo mais que o artista — a própria arte. Era o Zen do esteticismo. A perfeição está em todo o lado, basta decidirmos reconhecê-la. Rikiu adorava citar um velho poema que diz: «Aos que anseiam apenas pelas flores, eu mostraria com agrado a primavera desabrochada que subsiste nos botões obstinados dos montes cobertos de neve.»

Foram de facto diversas as contribuições dos mestres-do-chá para a arte. Revolucionaram completamente a arquitectura clássica e as decorações interiores, e estabeleceram o novo estilo que descrevemos no capítulo sobre a sala-de-chá, um estilo a cuja influência se sujeitaram inclusivamente os palácios e mosteiros erigidos depois do século dezasseis. O versátil Kobori Enshiu deixou exemplos notáveis do seu génio na vila imperial de Katsura, nos castelos de Nagoya e Nijo, e no mosteiro de Kohoan. Todos os jardins célebres do Japão foram planeados pelos mestres-do-chá. É provável que a nossa cerâmica jamais atingisse aquela altíssima qualidade de excelência se os mestres-do-chá não lhe houvessem emprestado a sua inspiração, uma vez que a manufactura dos utensílios utilizados na cerimónia-do-chá exige o maior dispêndio de engenho por parte dos nossos ceramistas. Os Sete Fornos de Enshiu são sobejamente conhecidos de todos os estudiosos da cerâmica japonesa. Muitos dos nossos tecidos trazem os nomes dos mestres-do-chá que lhes conceberam as cores ou o padrão. Em verdade, é impossível encontrar algum sector da arte em que os mestres-do-chá não tenham deixado marcas do seu génio. Na pintura, e nas lacas, parece quase supérfluo mencionar o imenso serviço que prestaram. Uma das maiores escolas de pintura deve a sua origem ao mestre-do-chá Honnami-Koyetsu, afamado também como artista lacador e ceramista. Perto da sua obra, a criação esplêndida do seu neto, Koho, e dos seus sobrinhos-netos, Korin e Kenzan, quase cai na penumbra. Toda a escola Korin, como geralmente é designada, é expressão do Cháismo. Nos traços largos desta escola parecemos encontrar a vitalidade da própria natureza.

Por maior que tenha sido a influência dos mestres-do-chá no campo da arte, ela não é nada quando comparada com a que eles exerceram na conduta da vida. Sentimos a presença dos mestres-do-chá não apenas nos usos da sociedade polida, mas também no arranjo de todos os nossos detalhes domésticos. Muitos dos nossos pratos delicados, bem como a maneira de servirmos os alimentos, são invenções suas. Ensinaram-nos a vestir somente trajes de cores sóbrias. Instruíram-nos no espírito próprio para nos aproximarmos das flores. Acentuaram o nosso amor natural pela simplicidade, e mostraram-nos a beleza da humildade. Na verdade, através dos seus ensinamentos o chá entrou na vida do povo.

Os que, entre nós, desconhecem o segredo de regular adequadamente a sua existência neste mar tumultuoso de problemas tolos a que chamamos vida, estão num estado de tristeza constante, embora tentem em vão parecer felizes e contentados. Vacilamos ao tentar manter o nosso equilíbrio moral, e vemos prenúncios da tempestade em cada nuvem que paira no horizonte. Contudo, há alegria e beleza na espiral das vagas que se encapelam rumo à eternidade. Por que não entrar no seu espírito, ou, como Liehtse, cavalgar o próprio furacão?

Quem apenas viveu com o belo pode morrer em beleza. Os últimos momentos dos grandes mestres-do-chá foram de um requinte sofisticado tão completo quanto o haviam sido as suas vidas. Procurando constantemente harmonizar-se com o grande ritmo do universo, estavam sempre preparados para entrar no desconhecido. O «Ultimo Chá de Ríkiu» evidenciar-se-á para sempre como o auge da grandiosidade trágica.

A amizade entre Ríkiu e o Taiko Hideyoshi vinha de há muito, e era elevada a estima em que o grande guerreiro tinha o mestre-do-chá. Mas a amizade de um déspota é sempre uma honra perigosa. Vivia-se uma época fértil em traições, e os homens não confiavam sequer nos seus parentes mais próximos. Rikiu não era um cortesão servil, e ousara amiúde discordar do seu feroz patrono. Tirando partido da frieza que existia há algum tempo entre o Taiko e Rikiu, os inimigos deste último acusaram-no de estar implicado numa conspiração para envenenar o déspota. Foi segredado a Hideyoshi que a poção fatal lhe seria administrada com uma chávena da beberagem verde, preparada pelo mestre-do-chá. Para Hideyoshi a suspeição era terreno suficiente para execução imediata, e não houve apelo que demovesse a vontade do irado governante. Um só privilégio foi concedido ao condenado — a honra de morrer pela sua própria mão.

No dia destinado à autoimolação, Rikiu convidou os seus principais discípulos para uma última cerimónia-do-chá. Enlutados, na hora estipulada os convidados encontraram-se no alpendre. Quando olham para o caminho do jardim as árvores parecem estremecer, e no restolhar das folhas escutam-se murmúrios de fantasmas desabrigados. Como sentinelas solenes perante os portões do Hades estão as lanternas de pedra cinzenta. Uma onda de incenso raro solta-se da sala-de-chá; é o chamamento que ordena aos convidados que entrem. Um a um avançam e tomam os seus lugares. No Tokonoma está pendurado um kakemono um escrito maravilhoso de um monge antigo, discorrendo sobre a evanescência de todas as coisas terrenas. A chaleira cantante, à medida que ferve sobre o braseiro, soa como uma cigarra derramando os seus lamentos ao Verão em declínio. Pouco depois o anfitrião entra na sala. Um a um são servidos de chá, e um a um esvaziam silenciosamente as suas chávenas, sendo o anfitrião o último a fazê-lo. De acordo com a etiqueta estabelecida, o convidado principal pede agora permissão para examinar o equipamento-do-chá. Rikiu dispõe frente a eles os diversos artigos, com o kakemono. Tendo todos expressado admiração pela sua beleza, Rikiu presenteia com um destes artigos cada um dos convivas reunidos, como lembrança. Só a malga reserva para si mesmo. «Jamais esta chávena, poluída pelos lábios da desgraça, será usada pelos homens.» Fala, e quebra o recipiente em bocados.

A cerimónia termina; os convidados, dificilmente retendo as lágrimas, despedem-se pela última vez e deixam a sala. A um apenas, o mais próximo e mais querido, é solicitado que fique e testemunhe o fim. Então, Rikiu remove o seu fato-do-chá e dobra-o cuidadosamente sobre a esteira, desvendando assim o imaculado vestido branco de morte que até aqui se ocultara. Com ternura fita a lámina reluzente do punhal fatal, e dirige-se-lhe assim, em versos singulares:


Bemvinda sejas,
Ó espada da eternidade!
Através de Buda
E também de Daruma
Cravaste o teu caminho!

Com um sorriso no rosto, Rikiu entrou no desconhecido.






kakuzo okakura
o livro do chá
trad. fernanda mira barros
biblioteca editores independentes
2007





23 agosto 2007

paris, os passeios de um flâneur









(…)


Era no Hôtel de Lauzun que Le Club des Hachichins realizava as suas reuniões. Aí, um grupo de homens ligados às letras e às artes — incluindo os escritores Balzac, Gautier e Baudelaire e os pintores Édouard Manet, Honoré Daumier e Constantin Guys — reunia-se com umas quantas mulheres para passar longas noites em que ouviam música e... comiam haxixe (porque, pelos vistos, o haxixe era servido sob a forma de uma geleia esverdeada), O anfitrião, Fernand Boissard, um pintor menor, era rico (sem depender de heranças) e vivia no principal e principesco andar do Hôtel, onde tinha um clavicórdio, ao que parece decorado com pinturas de Watteau, e elegantes peças de mobiliário que casavam na perfeição com as paredes e as portas pintadas, esculpidas e douradas. Boissard costumava tocar violino quando estava pedrado; ou então contratava músicos para o acompanharem num trio de Beethoven ou Mozart.

Uma das visitas da casa, Paul Guilly, lembra que Boissard

...era um homem que vivia para o refinamento e a volúpia e que tinha verdadeiro horror aos convidados importunos ou maçadores. O seu maior prazer era receber e, por isso mesmo, seleccionava as visitas com todo o cuidado; não se podia aparecer sem convite, mas, a partir do momento em que éramos admitidos no círculo íntimo, podíamos fazer ou dizer aquilo que nos apetecesse. Rodeava-se de artistas que partilhavam os seus gostos e de belas raparigas que não eram obtusas, nem, em abono da verdade, completamente ignorantes das questões espirituais ou artísticas. Acima de tudo, Boissard adorava os jantares com amigos sinceros, incondicionais, essas noites íntimas em que passávamos horas debatendo os significados de um paradoxo entre um pouco de música de cravo e as estrofes de um poema.

Théophile Gautier deixou-nos um relato extremamente colorido da sua primeira participação numa das reuniões mensais do Club des Hachichins. Nesse texto, Gautier recorda que estava uma noite de breu e um nevoeiro muito cerrado — uma verdadeira tela de algodão que esbatia todos os objectos e que só a luz das lanternas ou das janelas conseguia penetrar. Além disso, caía uma chuva fria, de tal forma que o cocheiro de Gautier mal conseguia enxergar a placa de mármore que indicava o nome do Hôtel. Uma velha criada abriu-lhe a pesada porta e, com um dedo magro, indicou-lhe o caminho.

De súbito, o escritor viu-se diante de uma daquelas escadarias gigantescas construídas na época de Luís XIV (tão gigantesca, de facto, que uma casa moderna caberia toda lá dentro com a maior facilidade, diz Gautier). A estátua de uma quimera egípcia erguia uma única vela. Pensando nos cortesãos do século XVII com as suas rendas e perucas, Gautier concluiu que estava pessimamente vestido para a ocasião. No andar de cima, Gautier tocou a uma sineta e logo penetrou numa ampla sala, iluminada apenas numa das extremidades; nesse instante, teve a clara sensação de que acabara de recuar dois séculos.

Um médico encarregava-se do haxixe. Aparecia com uma bandeja carregada de geleia verde e os convidados, depois de terem comido a dose a que tinham direito, passavam uns aos outros as chávenas de café turco. Tendo começado com a última coisa que se serviria num jantar francês normal, sentavam-se depois a uma mesa a fim de degustarem uma refeição mais convencional. Os pratos e os copos, contudo, eram estranhos, exóticos — pratos de serviços diferentes (da China, do Japão, da Saxónia), copos de cristal de Veneza. Sob a influência da droga, a água sabia a vinho e a carne a framboesas. Com a refeição já perto do fim, Gautier sentiu que estava a enlouquecer. As alucinações que, durante o jantar, se tinham apossado dele em vagas intermitentes, converter-se-iam, durante o resto da noite, numa parte permanente, embora sujeita a flutuações constantes, da sua percepção.

Todos os sinais de quem está totalmente, delirantemente, ou mesmo perigosamente pedrado, e que o meu caro leitor tão bem conhece, eram já algo de familiar para os frequentadores e residentes do Hôtel de Lauzun mais dados às artes e às letras. Rompiam num riso incontrolável e, escassos segundos depois, um medo inexprimível apossava-se deles, logo seguido de um plangente amor a toda a humanidade ou da total imersão num livro de gravuras. Os movimentos tornavam-se lentos e viscosos, o tamanho dos quartos expandia-se de uma forma brutal, um sentido do épico e do magnificente distorcia a atmosfera da reunião, para logo ser substituído por um olhar que descobria com repulsa os grotescos rostos dos outros hachichins. Tudo era tão distorcido — e tão apelativo para a imaginação — que não admira que Gautier tivesse usado a palavra «fantasia» para descrever uma tal noite. Saberia Gautier (por certo sabia) que uma fantasia era também uma composição musical de forma livre aberta ao improviso? Ou que, em Marrocos, uma fantasia era uma gala equestre e militar que envolvia espectaculares investidas de sucessivos esquadrões de cavalaria dotados de inexcedíveis talentos na arte da equitação, os homens vestidos com figurinos de veludo debruados a ouro e mantos esvoaçantes, montando magníficos garanhões, acompanhados por uma banda e por tambores e até por danças, e com toda a cena envolta no nevoeiro causado pelo fumo das fogueiras onde se preparava o banquete que se seguiria ao espectáculo?

Como seria de esperar, Balzac inspeccionou com toda a atenção a geleia verde e chegou mesmo a pegar nos diversos apetrechos, provenientes do Próximo Oriente, que se destinavam ao consumo da droga, e, como era seu timbre, fez todas as perguntas do género «recolha de informações» — mas não provou nem um miligrama do haxixe, receando perder o controlo da sua vontade de aço ou da sua influenciável mente. Provavelmente, o Clube dos Consumidores de Haxixe não se reuniu mais de oito ou nove vezes. Também não há nenhuma prova de que o próprio Baudelaire tenha experimentado a droga mais do que uma ou duas vezes; de qualquer modo, o poeta considerava o vinho preferível ao haxixe, já que o vinho, dizia ele, era mais «democrático» porque mais barato e mais facilmente disponível (tal e qual como Oscar Wilde, Baudelaire era simultaneamente um «socialista» e um snob estético). Para ser mais exacto, Baudelaire louvava tanto o vinho como o haxixe por promoverem «o excessivo desenvolvimento poético da humanidade», mas não deixava de acentuar que o vinho exalta a vontade, o haxixe aniquila-a. O vinho é um sustento para o corpo, o haxixe uma arma pata o suicídio. O vinho torna as pessoas boas e amistosas. O haxixe isola, O vinho significa trabalho duro, ao passo que o haxixe é um sinónimo de preguiça. Por que estranha razão há-de alguém suportar a maçada que é trabalhar, lavrar a terra, escrever, enfim, fazer o que quer que seja, se, com uma fumaça, pode alcançar o paraíso? O vinho é para as pessoas que trabalham e que merecem bebê-lo. O haxixe pertence à categoria dos prazeres solitários; foi feito para o ocioso infeliz, O vinho é útil, produz resultados frutíferos. O haxixe é inútil e perigoso.

É possível que a imaginação de Baudelaire fosse tão espicaçada pela atmosfera do Hôtel de Lauzun como pelo próprio haxixe. Ele e Gautier celebravam a história segundo a qual a palavra haxixe estaria ligada à palavra assassino; no seu conto Le Club des Hachichins, Gautier conta mesmo a história do déspota «oriental» que transformou os seus homens em saqueadores (ou assassinos) desvairadamente intrépidos e sem o menor medo da morte, mantendo-os constantemente pedrados com haxixe.

Ou talvez Baudelaire tivesse sido estimulado pelos seus companheiros e muito em particular por uma surpreendente jovem conhecida como Pomaré (de seu verdadeiro nome Elise Sergent) que praticava o travestismo. «La Pomaré», como lhe chamava Baudelaire, vestia-se como um «gentleman» (o poeta usava a palavra inglesa), com gravata branca, fraque preto, calças pretas e sobretudo branco. As mãos enluvadas de branco costumavam empunhar uma bengala. A Pomaré era, segundo o poeta, um bom camarada e óptima companhia — excepto quando dava com uma bourgeoise num restaurante. Se, por exemplo, visse a mulher de um notário sentada a uma mesa com o marido, tinha um acesso de fúria e rompia a cantar a sua canção favorita — que falava de um general do exército italiano que estava de cócoras a coçar os tomates, o que levava uma elegante virgem a dizer-lhe que ele não passava de um cara de cu... A Pornaré era alta e esbelta, com um peito raso, um dito espirituoso sempre na ponta da língua e, quando lhe dava para isso, era tão frontal, tão terra-a-terra, que Baudelaire lhe chamava «o meu camarada das ancas largas». A Pomaré vivia no Hôtel de Lauzun e Baudelaire desejava-a (ou, pelo menos, excitava-o a ideia de uma mulher tão sem pruridos nem inibições) tanto quanto a estimava.

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edmund white
paris, os passeios de um flâneur
tradução josé vieira de lima
asa editores
2004








24 julho 2007

o artista e a vida moderna




NOVA IORQUE




O mais colossal espectáculo do mundo. Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam dar conta deste acontecimento surpreendente que é Nova Iorque à noite, vista de um quadragésimo andar, Esta cidade pôde resistir a todas as vulgarizações, a todas as curiosidades dos homens que experimentaram descrevê-la, copiá-la. Conserva a frescura, o inesperado, a surpresa, para o viajante que a olha pela primeira vez.
O navio, em andamento lento, desloca devagar as perspectivas; procura-se a estátua da Liberdade, o presente da França; é uma pequena estátua modesta, esquecida no meio do porto, diante deste novo continente audacioso e vertical. Mas não se vê, por muito que levante o braço o mais alto possível. Inutilmente, não ilumina mais do que uma vela, coisas enormes que mexem, formas que, indiferentes e majestosas, a cobrem de sombra...
Seis horas mais tarde. O navio avança lentamente. Uma massa direita, alta, elegante como uma igreja, aparece ao longe, envolvida na bruma, azul e rosa, esfumada como um pastel, fechada numa ordem gótica, projectada para o céu como um desafio. Que nova religião é esta?
É Wall Street, que domina da sua altura este mundo novo. Depois de seis dias de travessia na água fluida e imperceptível, móvel, ágil, chega-se diante desta montanha, abrupta, obra de homens, que lentamente se define, se torna mais nítida, se precisa com os seus ângulos cortantes, as suas janelas alinhadas, a sua cor metálica. Levanta-se violentamente acima do nível do mar. O barco roda... Wall Street desapareceu lentamente, silhueta reluzente como uma armadura.
É a apoteose da arquitectura vertical; uma combinação audaciosa de arquitectos e de banqueiros sem escrúpulos, empurrados pela necessidade. Uma elegância desconhecida, involuntária, desprende-se desta abstracção geométrica. Apertados entre dois ângulos de metal, são cifras, números, que sobem, rígidos, para o céu, domados pela perspectiva deformante...
Um mundo novo!...
Brooklyn!, os cais maciços. jogos de sombra e de luz, as pontes, com as suas projecções de linhas verticais, horizontais, oblíquas… O nascimento de Nova Iorque. na luz que, pouco a pouco, aumenta, à medida que se avança na cidade... Nova Iorque, milhões de janelas luminosas... Quantas janelas? Quando aparecerá um alemão para fazer esta original estatística?
Espantoso país, onde as casas são mais altas do que as igrejas, onde os limpadores de janelas são milionários, onde se organizam desafios de futebol entre os prisioneiros e a Polícia!
A beleza de Nova Iorque à noite é feita de inumeráveis pontos luminosos e do jogo infinito da publicidade móvel.
O rigor ria arquitectura é quebrado pela fantasia sem limites das luzes coloridas. O grande espectáculo começa mal nos levantamos, e esta visão radiosa tem a particularidade de nenhum artista, de nenhum encenador ter contribuído para ela. Esta música comovente é tocada por casas em que habitam pessoas como vós eu. Estes milhares de fogos, que nos espantam, iluminam pessoas que trabalham modestamente na sua tarefa ingrata e quotidiana. Estas arquitecturas ciclópicas são estritamente úteis, racionais; o crescimento vertical é de ordem económica.
Elevou-se o número de andares, porque o terreno é pouco e caro, porque não é possível construir em extensão; construiu-se obrigatoriamente em altura. Não há nenhum sentimento romântico em tudo isto, a sombra de um orgulho deslocado. Toda esta orquestração surpreendente é estritamente útil. O mais belo espectáculo in the world não é criação de um artista.
Nova Iorque tem uma beleza natural, como os elementos da natureza, como as árvores, as montanhas, as flores. Está aí a sua força e a sua variedade. Pretender tirar partido artístico de semelhante tema é uma loucura. Admira-se modestamente, e é tudo.
No interior desta vida múltipla e organizada corre uma personagem indispensável a esta vida ilimitada: o telefone, actor principal. Faz parte da família. É o brinquedo da criança americana; pega-lhe como numa boneca, e essa boneca toca, fala, ri. É uma corda ininterrupta que liga, como aos alpinistas, toda esta gente rápida e apressada.
Se um dia morrer subitamente, não haverá ninguém no seu enterro, porque ninguém saberá o dia e a hora do funeral.
Nova Iorque e o telefone vieram ao mundo no mesmo dia, no mesmo barco, para conquistar o mundo.
Em Nova Iorque a vida mecânica está no apogeu. Tocou o limite, ultrapassou o fim… crise!
A vida americana é uma sucessão de aventuras, conduzidas com optimismo até ao fim.
Arriscou-se tudo, experimentou-se tudo; e há realizações definitivas. Naturalmente, o volume da arquitectura deveria tentá-los. Antes de mais, tudo quanto se vê. A arquitectura e a luz são os dois pólos da sua expressão plástica; no barroco, atingem o monstruoso.
Nova Iorque e Atlantic City têm cinemas que é difícil descrever a quem não os viu. Um amontoamento inverosímil de todos os estilos europeus e asiáticos; um caos colossal, para ferir a imaginação, fazer publicidade, fazer «mais que em frente»; a Enormidade no «mais rico do que tu».
Escadas inúteis, empregados em número incalculável, espantar, atrair e ganhar dinheiro. É o fim de toda esta vertigem que atinge a repugnância e a beleza.
Gosto tanto desta inundação de espectáculos, de toda esta força incontida, desta virulência, mesmo no erro... É muito novo. Engolir um sabre a sorrir, cortar um dedo, porque está sujo...
Até ao fim, é sempre a América. Naturalmente, se me detenho a reflectir, se fecho os olhos, entrevejo os dramas que pairam à roda deste dinamismo exagerado, mas eu vim para ver — e continuo.
As cartas lançadas do quinquagésimo andar pelo tubo pneumático, aquecem com o atrito e chegam a arder ao rés-do-chão. É necessário gelar os tubos — mas demasiado frios, as cartas chegarão no meio de neve.
Tudo fuma em Nova Iorque, «até as ruas». Ouvi raparigas dizer que fumar durante as refeições distrai e impede de engordar, uma inesperada relação entre o cigarro e a elegância.
O dia, em Nova Iorque, é muito severo; falta-lhe cor e, se o tempo está enevoado, Nova Iorque é uma cidade de chumbo.
Porque não se hão-de colorir as casas? Porquê esta lacuna, na terra de todas as invenções?
Fifth Avenue, vermelha — Madison, azul - Park Avenue, amarela. Porque não? E a falta de verdura? Nova Iorque não tem árvores. A medicina decretou há muito que o verde, em particular, é uma cor indispensável à vida; deve viver-se no meio da cor: é necessário como a água e o fogo.
Poder-se-ia obrigar os vendedores de modas a lançar em série vestidos verdes, fatos verdes...
Periodicamente, um ditador da cor decretaria as cores mensais ou trimestrais; o trimestre azul, a quinzena rosa! Para aqueles que não podem ir ao campo, passear-se-iam árvores pelas ruas. Paisagens móveis com flores tropicais, passeadas lentamente por cavalos de penacho.


Duas da manhã, ao acaso das ruas… bairro popular... Avenue «A» ou «B»... Uma imensa garagem de camiões, todos parecidos, em filas de seis, reluzentes como para um desfile, como elefantes, uma luz fixa. Nada se move: entro e olho.., um ridículo barulho de guizos... ao fundo, à esquerda, descubro um cavalo arreado. A única coisa viva, neste silêncio de ferro... O prazer de lhe tocar, de o ver mexer, de o sentir quente. O animal ganhava um tal valor, pelo contraste, que eu teria podido registar todos os barulhos que pode fazer um cavalo em repouso; barulhos minúsculos, sempre os mesmos; ouvia-lhe a respiração… movimentos delicados… as orelhas... os olhos pretos... uma estrela branca na cabeça... o casco polido e o joelho que, de tempos a tempos, se move lentamente.
O último cavalo de carga, à espera de reforma. Depois, aos domingos, será exposto numa vitrina e as crianças ficarão espantadas por Napoleão ter conquistado o mundo montado nele.
Em casa do arquitecto Corbett, juntamente com Kiessler. Ë um dos maiores construtores do edifício americano. Um homenzarrão simples... conseguir meter 20.000 pessoas num edifício, diz-me ele, eis o meu trabalho actual. Não julgue que se trata apenas de uma questão de número de andares! Não, é mais complicado, é uma questão de elevador, O problema é o de manobrar verticalmente este exército! Fazê-lo descer todos os dias para as quatro salas de jantar que se encontram a vinte metros debaixo da terra... Dar vazão a tudo isto, nas horas requeridas.
Depois, a saída de toda esta gente, sem engarrafar o trânsito... Seis meses de trabalho. Dez engenheiros especializados, e a solução ainda não foi encontrada.
Problema específico dos americanos, imbatíveis na racionalização, na série, nos números. Partir do total, para dar conforto à unidade... Novo mundo!
Dão a impressão de nada os deter; vida sucessiva e rápida. Destruí Nova Iorque, contruí-la-ão de outro modo. Aliás, que alvos admiráveis estas arquitecturas. Demolir Nova Iorque! Não é possível que o marechal Pétain não tenha tido, por um segundo, por meio segundo, a tentação. Que magnífico trabalho para um artilheiro! Militarmente não seria problema, pois não, meu general? Estive em Verdun sob as suas ordens, é suficiente, mas por desporto, por amor do ofício! Os americanos seriam os primeiros a aplaudir e, então, que veríamos nós? Pouco tempo depois, uma nova cidade estaria construída. Adivinhai como: aposto um contra mil: de vidro, de vidro!
Esta é a sua última invenção. Alguns engenheiros encontraram meio de fabricar vidro com leite coalhado, mais barato do que o betão. Imaginai: todas as vacas americanas a trabalhar na reconstrução da capital!
Nova Iorque transparente, translúcida, os andares azuis, vermelhos, amarelos! Uma fantasmagoria inédita, a luz desencadeada por Edison trespassando tudo isto e pulverizando as arquitecturas.
Os bairros populares são belos a qualquer hora. Há uma tal crueza, uma tal variedade de matérias-primas! Bairros russos, judeus, italianos, chineses. A Third Avenue, ao sábado à noite e ao domingo, é Marselha!
Chapéus cor-de-rosa para os negros. Vitrinas onde se encontra uma bicicleta pendurada por cima duma dúzia de ovos, alinhados sobre areia verde...
Frangos depenados, suspensos, em contraluz, sobre fundo negro... dança macabra!


Uma vida decorativa intensa valoriza infinitamente o objecto à venda.
O ar dos desempregados: nada os distingue, se não que andam mais devagar do que os outros. Apinhados nas praças, uns contra os outros, não conversam. Estas multidões são silenciosas: o indivíduo permanece isolado, não comunica; lê ou dorme!

Wall Street de dia: milhentas vezes descrita, mas ide lá ver!
Wall Street à noite, Wall Street às duas da manhã. Sob o luar seco e brilhante. O silêncio é absoluto. Ninguém, nestas ruas estreitas e estranguladas pela projecção violenta de linhas cortantes e perspectivas multiplicadas ao infinito, em direcção ao céu. Que espectáculo! Onde estamos? Um sentimento de solidão oprime-nos, como uma imensa necrópole. Os passos ressoam no pavimento. Nada se move. No meio desta floresta de granito, um pequeno cemitério de pequeninos túmulos, humildes, modestos: é a morte que se faz pequena, ao pé da exuberância da vida que a rodeia. O terreno deste pequeno cemitério é, certamente, o mais caro do mundo. Mas os businesssmen não lhe tocaram. Permanece como uma pausa, uma paragem na corrente vital… Solucionar a morte, último problema!
Wall Street dorme. Continuemos o passeio… Oiço um fraco murmúrio regular. Wa]l Street ressona? Não, é uma perfuradora que, harmoniosamente, começa o seu trabalho, como um trabalho de térmita. Nenhum barulho! É a única parte de Nova Iorque que verdadeiramente dorme. É preciso digerir os números do dia, as somas, as multiplicações, a álgebra financeira e abstracta destes milhares de indivíduos virados para o grande problema do ouro. Wall Street dorme profundamente. Deixemo-la dormir. A trinta metros debaixo da terra, na rocha, as caves de aço do Irving Bank. No centro, os cofres-fortes de fechaduras magníficas e brilhantes, complexas como a própria vida, um posto de polícia onde alguns homens velam. Microfones ultra-sensíveis trazem-lhes os menores ruídos da rua, e os barulhos que se notam sob as abóbadas de aço do banco moderno. Uma mosca a voar… Ouvem voar a mosca... Um velho negro deambula pelas ruas, canta baixinho uma velha melodia do Sul. A canção sobe, perde-se nas arquitecturas, mas desce também aos microfones que, debaixo da terra, registam discretamente a velha canção do Sul.
Wall Street não dorme... Wall Street está morta. Volto a passar ao pé do pequeno cemitério. Não são, agora, os maiores bancos do mundo! Não, são os mais orgulhosos túmulos de família dos grandes milionários. Aí, repousam os Morgan, os Rockfeller, os Carnegie. Como novos faraós, edificaram as suas pirâmides. Serão enterrados de pé como semideuses; e como estes gigantes modernos se tornam legendários e imortais, abriram-lhes mil janelas para que o povo saiba que talvez não estejam mortos, que respiram, que voltarão ainda uma vez para espantar o mundo com novas concepções ciclópicas.
Wall Street é a imagem da América audaciosa, deste povo que está sempre a agir e que nunca olha para trás de si.
Nova Iorque... Moscovo...
Os dois pólos da actividade moderna... A vida actual concentra-se aí...
Somente aí se ousa a experiência perigosa de que os outros aproveitarão.
Nova Iorque .. Moscovo!
Moscovo... Nova Iorque!
Paris, posto de observação!
Georges Duhamel veio à América. Dentro da mala, trouxe as suas concepções de francês médio e as pantufas. Talvez não tenha podido servir-se delas, das pantufas, o que o deixou, manifestamente, de mau humor. Por aqui, ainda não se usa disso. Pelo que as americanas são rainhas e têm pés bonitos. Ë preciso não ficar a querer mal à locomotiva que, ao passar a cem à hora, nos faz voar o chapéu.












fernand léger
funções da pintura
trad. tomás de figueiredo
livraria bertrand
1965

22 julho 2007

ilhas na corrente






(…)
Lograra substituir quase tudo excepto os filhos, pelo trabalho e pela vida de actividade normal, regular, que edificara na ilha. Estava convencido de que conseguira com essa vida algo de perdurável que o fixaria. Agora, quando se sentia solitário e tinha saudades de Paris, lembrava-se de Paris em vez de ir até lá. Fazia o mesmo com toda a Europa, grande parte da Ásia e da África.
Lembrou do que Renoir dissera ao contarem-lhe que Gauguin fora para Taiti pintar. «Porque há-de ele ir gastar tanto dinheiro para ir pintar para tão longe quando se pinta tão bem aqui em Batignolles?» Em francês soava melhor: «quand on peint si bien aux Batignoiles», e Thomas Hudson concebia a ilha como o seu quartier no qual se instalara, travando conhecimento com os vizinhos e trabalhando tão assiduamente como trabalhara em Paris quando o jovem Tom era ainda bebé.
Algumas vezes deixava a ilha para ir pescar ao largo de Cuba ou visitar as montanhas no Outono. Mas arrendara o rancho que tinha comprado em Montana por, ali, a melhor época ser o Verão e o Outono, e agora era sempre no Outono que os rapazes tinham de voltar para a escola.
Ocasionalmente, via-se obrigado a ir a Nova Iorque para se avistar com o seu agente. No entanto, era mais frequente agora ser o seu agente a visitá-lo e a levar as telas para o norte consigo.
Tinha uma reputação bem firmada como pintor, e era respeitado tanto na Europa como no seu próprio país, Contratos de exploração de petróleo em terrenos que o avô possuíra garantiam-lhe proventos regulares. Esses terrenos tinham sido terras de pastagem, e ao serem vendidos retivera os direitos ao subsolo. Cerca de metade do rendimento era absorvido pela pensão que pagava às suas ex-mulheres, e o resto dava-lhe a segurança necessária para pintar conforme lhe apetecia sem quaisquer pressões de ordem comercial. Permitia-lhe também viver onde lhe dava na fantasia e viajar quando se sentia inclinado a isso.
Tivera êxito quase a todos os respeitos excepto na sua vida de casado, embora, na realidade o êxito nunca o houvesse preocupado muito. O que lhe interessava era a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher que despertara o seu amor. Amara muitas mulheres desde então e, por vezes, lá vinha uma ou outra ficar na ilha. Precisava de ver mulheres ao pé de si e acolhia-as bem durante algum tempo. Gostava de as ler ali, às vezes durante longo período. Mas, no final, ficava sempre satisfeito quando se iam embora, mesmo se gostava delas a valer, Disciplinara-se de forma a deixar-se de discussões com mulheres, e aprendera a arte de não se casar, Estas duas coisas haviam sido quase de tão difícil aprendizagem como instalar-se e pintar a um ritmo regular e bem ordenado. Mas aprendera a fazê-las, e a sua esperança era que essa aprendizagem tivesse sido permanente. Havia muito que sabia pintar, e estava convencido de que ia aprendendo sempre mais a cada ano que passava. Mas fora difícil aprender a assentar e a pintar disciplinadamente porque tinha havido na sua vida uma fase em que ele próprio não fora disciplinado. Nunca tinha sido verdadeiramente irresponsável, mas indisciplinado, egoísta e desapiedado, isso sim. Sabia-o agora, não por muitas mulheres lho terem dito, mas por o haver descoberto finalmente à sua custa. Resolvera então só ser egoísta na sua actividade de pintor, só ser desapiedado no seu trabalho, e disciplinar-se e aceitar a disciplina.
(…)




ernest hemingway
ilhas na corrente
trad. jorge rosa
livros do Brasil
19..




25 março 2007

book zapping #009 diários, kafka




1910


Os espectadores ficam de pedra quando o comboio passa.

«Se ele tiver sempre questões para me pôr.» O ô, solto da frase, voou como uma bola sobre o prado.

A sua seriedade mata-me. A cabeça no colarinho, os cabelos ordenados, imóveis, sobre o crânio, os músculos em baixo, nas faces, esticados no lugar devido...

A floresta ainda lá está? A floresta em boa parte ainda lá estava. Mas mal o meu olhar se afastou dez passos, eu desisti, de novo preso na conversa aborrecida.

Na floresta escura, no caminho ensopado, só me orientava pelo branco do seu colarinho.

Pedi em sonhos à bailarina Eduardowa que dançasse mais uma vez as czardas. Ela tinha uma larga fita de luz ou de sombra no meio do rosto, entre a orla inferior da testa e o meio do queixo. Veio precisamente naquele momento alguém com os repugnantes movimentos do intriguista inconsciente para lhe dizer que o comboio estava prestes a partir. Pela maneira como ela ouviu a informação, percebi horrorizado que ela não mais dançaria. «Sou uma mulher horrível, não sou?», perguntou. «Oh, não», disse eu, «isso não», e voltei-me para ir para qualquer lado. Antes, tinha-a interrogado sobre as muitas flores que ela trazia à cintura. «São de todos os príncipes da Europa», respondeu. Pensei que significado teria o facto de estas flores, que ela trazia frescas à cintura, terem sido oferecidas à bailarina Eduardowa por todos os príncipes da Europa.

A bailarina Eduardowa, amante da música, anda, quer de eléctrico, quer de outra maneira qualquer, sempre na companhia de dois violinistas que ela frequentemente manda tocar. Porque não há lei que proíba que se toque no eléctrico, se a música é boa, se agrada aos companheiros de viagem e se nada custa, ou seja, se depois não houver peditório. Na verdade, ao princípio é um pouco surpreendente, e durante uns momentos as pessoas acham um pouco deslocado. Mas em plena marcha, com forte corrente de ar e rua silenciosa, soa bem.

A bailarina Eduardowa não é tão bonita cá fora como no palco. As cores pálidas, as maçãs do rosto que esticam a pele de tal maneira que quase não há naquele rosto outro movimento mais forte, o grande nariz que parece elevar-se de uma cavidade, com o qual ninguém pode brincar — ver se a ponta é dura ou pegar nele levemente e puxá-lo de cá para lá e de lá para cá, ao mesmo tempo que se diz: «Mas agora vens comigo.» A figura larga com a cintura alta e saias com demasiadas pregas — a quem é que isto pode agradar —, ela parece-se com uma das minhas tias, senhora de certa idade, muitas tias de idade de muita gente têm este aspecto. Para estes defeitos, não se encontra porém na Eduardowa, cá fora, de facto nenhum substituto a não ser os pés, que são verdadeiramente bons, o que na verdade não é nada pára suscitar a admiração, o espanto ou mesmo o respeito. E assim vi tratarem muitas vezes a Eduardowa com uma indiferença que até os cavalheiros de maneiras muito correctas e usos mundanos não conseguiam esconder, se bem que o tentassem a todo o custo, perante uma bailarina tão famosa como não deixava de ser a Eduardowa.

A concha do meu ouvido sente-se fresca, áspera, fria, sumarenta como uma folha.

Escrevo isto levado, com toda a certeza, pelo desespero que me causa o meu corpo e o futuro deste corpo.
Quando o desespero se exprime tão categoricamente, se apresenta assim ligado ao seu próprio objecto, assim mantido à retaguarda como que por um soldado que cobre a retirada e que por isso se deixa despedaçar, isso não é o verdadeiro desespero. O verdadeiro desespero está constantemente a ultrapassar o seu alvo (com esta vírgula, verifica-se que a primeira frase estava certa).
Estás desesperado?
Sim? Tu estás desesperado?
Foges? Queres esconder-te?

Os escritores falam fedor.

As costureiras de roupa branca sob os aguaceiros,

Finalmente, depois de cinco meses da minha vida, durante os quais não consegui escrever nada que me satisfizesse, pelos quais nenhum poder me compensará, embora todos eles a tal fossem obrigados, lembrei-me de voltar a exprimir-me. Respondi sempre a este apelo; todas as vezes que de facto me interrogava, havia ainda qualquer coisa a fazer sair de mim, deste monte de palha que sou eu desde há cinco meses, e cujo destino parece ser deitarem-lhe fogo no Verão e extinguir-se mais rapidamente do que o pestanejar do espectador. Se ao menos isto me pudesse acontecer! E dez vezes deveria acontecer-me, porque nem sequer lamento essa época infeliz. O meu estado não é de infelicidade, mas também não é de felicidade, nem de indiferença, nem fraqueza, nem cansaço, nem outro interesse, mas então o que será? O facto de eu não saber está ligado à minha incapacidade de escrever. E esta penso que percebo, sem saber o porquê. É que todas as coisas de que eu me lembro não se me apresentam pela raiz, mas algures, pelo meio. Que alguém tente segurá-las, que alguém tente segurar a vergôntea e segurar-se a ela, à vergôntea que começou a crescer no meio da haste. Só poucos o conseguem, por exemplo, os saltimbancos japoneses, que sobem uma escada que não se apoia no solo mas nas plantas dos pés que um homem semideitado levanta, e que não se encosta a uma parede mas que apenas sobe para o ar. Eu não sou capaz, mesmo abstraindo o facto de a minha escada não ter à disposição os pés acima citados. E óbvio que isto não é tudo, e um tal pedido de informação não me dispõe a falar. Mas em cada dia pelo menos uma linha tem de me ser dirigida, tal como se dirige o telescópio para o cometa. E se eu um dia aparecer perante essa frase, atraído por essa frase, como por exemplo me aconteceu no Natal passado, quando eu estava tão longe que mal me conseguia controlar, quando eu de facto parecia estar no último degrau da minha escada, a qual, porém, pousava calmamente no solo e se apoiava à parede. Mas que solo, que parede! E no entanto essa escada não caiu, de tal modo os meus pés a comprimiam contra o solo, de tal modo os meus pés a empurravam contra a parede.
Hoje, por exemplo, fui três vezes insolente, com um condutor, com uma pessoa que me apresentaram, bom, foram só duas vezes, mas doeram como uma dor de estômago. Teriam sido uma insolência da parte de quem quer que fosse, quanto mais vindas de mim. Saí de mim próprio, lutei no ar no meio do nevoeiro, e para cúmulo: ninguém notou que fui insolente com quem me acompanhava, uma insolência sem mais, e tinha de o ser, tinha de assumir a sua verdadeira forma e a sua responsabilidade; mas o pior foi quando uma das pessoas que me acompanhavam não tomou essa insolência como sinal de um carácter, mas como o próprio carácter, me chamou a atenção para a minha insolência e a admirou. Porque não fico eu em mim? Na verdade, digo para mim próprio: olha, o mundo deixa que lhe batas, o condutor e a pessoa que te apresentaram ficam calmos quando tu te afastas, o último até cumprimenta. Mas isto não significa nada. Não consegues alcançar nada se renunciares a ti próprio, mas que perdes tu além disso no teu meio? A este apelo apenas respondo: também eu prefiro que me batam no meu meio do que bater-me a mim próprio fora dele, mas onde com os diabos fica esse meu meio? Durante um tempo vi-o estendido na terra, como que espargido com cal, mas agora paira só em meu redor, que digo?, nem sequer paira.

Noite de cometas, 17/18 de Maio. Juntamente com Blei, a mulher e o filho, de tempos a tempos escutei-me a mim próprio fora de mim, soava acidentalmente como o ronronar de um gatinho, mas sei lá.
Quantos dias voltaram a passar, mudos; hoje é o dia 28 de Maio. Não tomei eu uma vez a decisão de ter diariamente na mão esta caneta, este bocado de madeira? Creio já não a ter tomado. Remo, cavalgo, nado, fico deitado ao sol. Por isso tenho as barrigas das pernas em bom estado, as coxas nada mal, a barriga ainda passa, mas já o peito está em péssimo estado, e se a cabeça me assenta no pescoço...






franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986