NOVA IORQUE
O mais colossal espectáculo do mundo. Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam dar conta deste acontecimento surpreendente que é Nova Iorque à noite, vista de um quadragésimo andar, Esta cidade pôde resistir a todas as vulgarizações, a todas as curiosidades dos homens que experimentaram descrevê-la, copiá-la. Conserva a frescura, o inesperado, a surpresa, para o viajante que a olha pela primeira vez.
O navio, em andamento lento, desloca devagar as perspectivas; procura-se a estátua da Liberdade, o presente da França; é uma pequena estátua modesta, esquecida no meio do porto, diante deste novo continente audacioso e vertical. Mas não se vê, por muito que levante o braço o mais alto possível. Inutilmente, não ilumina mais do que uma vela, coisas enormes que mexem, formas que, indiferentes e majestosas, a cobrem de sombra...
Seis horas mais tarde. O navio avança lentamente. Uma massa direita, alta, elegante como uma igreja, aparece ao longe, envolvida na bruma, azul e rosa, esfumada como um pastel, fechada numa ordem gótica, projectada para o céu como um desafio. Que nova religião é esta?
É Wall Street, que domina da sua altura este mundo novo. Depois de seis dias de travessia na água fluida e imperceptível, móvel, ágil, chega-se diante desta montanha, abrupta, obra de homens, que lentamente se define, se torna mais nítida, se precisa com os seus ângulos cortantes, as suas janelas alinhadas, a sua cor metálica. Levanta-se violentamente acima do nível do mar. O barco roda... Wall Street desapareceu lentamente, silhueta reluzente como uma armadura.
É a apoteose da arquitectura vertical; uma combinação audaciosa de arquitectos e de banqueiros sem escrúpulos, empurrados pela necessidade. Uma elegância desconhecida, involuntária, desprende-se desta abstracção geométrica. Apertados entre dois ângulos de metal, são cifras, números, que sobem, rígidos, para o céu, domados pela perspectiva deformante...
Um mundo novo!...
Brooklyn!, os cais maciços. jogos de sombra e de luz, as pontes, com as suas projecções de linhas verticais, horizontais, oblíquas… O nascimento de Nova Iorque. na luz que, pouco a pouco, aumenta, à medida que se avança na cidade... Nova Iorque, milhões de janelas luminosas... Quantas janelas? Quando aparecerá um alemão para fazer esta original estatística?
Espantoso país, onde as casas são mais altas do que as igrejas, onde os limpadores de janelas são milionários, onde se organizam desafios de futebol entre os prisioneiros e a Polícia!
A beleza de Nova Iorque à noite é feita de inumeráveis pontos luminosos e do jogo infinito da publicidade móvel.
O rigor ria arquitectura é quebrado pela fantasia sem limites das luzes coloridas. O grande espectáculo começa mal nos levantamos, e esta visão radiosa tem a particularidade de nenhum artista, de nenhum encenador ter contribuído para ela. Esta música comovente é tocada por casas em que habitam pessoas como vós eu. Estes milhares de fogos, que nos espantam, iluminam pessoas que trabalham modestamente na sua tarefa ingrata e quotidiana. Estas arquitecturas ciclópicas são estritamente úteis, racionais; o crescimento vertical é de ordem económica.
Elevou-se o número de andares, porque o terreno é pouco e caro, porque não é possível construir em extensão; construiu-se obrigatoriamente em altura. Não há nenhum sentimento romântico em tudo isto, a sombra de um orgulho deslocado. Toda esta orquestração surpreendente é estritamente útil. O mais belo espectáculo in the world não é criação de um artista.
Nova Iorque tem uma beleza natural, como os elementos da natureza, como as árvores, as montanhas, as flores. Está aí a sua força e a sua variedade. Pretender tirar partido artístico de semelhante tema é uma loucura. Admira-se modestamente, e é tudo.
No interior desta vida múltipla e organizada corre uma personagem indispensável a esta vida ilimitada: o telefone, actor principal. Faz parte da família. É o brinquedo da criança americana; pega-lhe como numa boneca, e essa boneca toca, fala, ri. É uma corda ininterrupta que liga, como aos alpinistas, toda esta gente rápida e apressada.
Se um dia morrer subitamente, não haverá ninguém no seu enterro, porque ninguém saberá o dia e a hora do funeral.
Nova Iorque e o telefone vieram ao mundo no mesmo dia, no mesmo barco, para conquistar o mundo.
Em Nova Iorque a vida mecânica está no apogeu. Tocou o limite, ultrapassou o fim… crise!
A vida americana é uma sucessão de aventuras, conduzidas com optimismo até ao fim.
Arriscou-se tudo, experimentou-se tudo; e há realizações definitivas. Naturalmente, o volume da arquitectura deveria tentá-los. Antes de mais, tudo quanto se vê. A arquitectura e a luz são os dois pólos da sua expressão plástica; no barroco, atingem o monstruoso.
Nova Iorque e Atlantic City têm cinemas que é difícil descrever a quem não os viu. Um amontoamento inverosímil de todos os estilos europeus e asiáticos; um caos colossal, para ferir a imaginação, fazer publicidade, fazer «mais que em frente»; a Enormidade no «mais rico do que tu».
Escadas inúteis, empregados em número incalculável, espantar, atrair e ganhar dinheiro. É o fim de toda esta vertigem que atinge a repugnância e a beleza.
Gosto tanto desta inundação de espectáculos, de toda esta força incontida, desta virulência, mesmo no erro... É muito novo. Engolir um sabre a sorrir, cortar um dedo, porque está sujo...
Até ao fim, é sempre a América. Naturalmente, se me detenho a reflectir, se fecho os olhos, entrevejo os dramas que pairam à roda deste dinamismo exagerado, mas eu vim para ver — e continuo.
As cartas lançadas do quinquagésimo andar pelo tubo pneumático, aquecem com o atrito e chegam a arder ao rés-do-chão. É necessário gelar os tubos — mas demasiado frios, as cartas chegarão no meio de neve.
Tudo fuma em Nova Iorque, «até as ruas». Ouvi raparigas dizer que fumar durante as refeições distrai e impede de engordar, uma inesperada relação entre o cigarro e a elegância.
O dia, em Nova Iorque, é muito severo; falta-lhe cor e, se o tempo está enevoado, Nova Iorque é uma cidade de chumbo.
Porque não se hão-de colorir as casas? Porquê esta lacuna, na terra de todas as invenções?
Fifth Avenue, vermelha — Madison, azul - Park Avenue, amarela. Porque não? E a falta de verdura? Nova Iorque não tem árvores. A medicina decretou há muito que o verde, em particular, é uma cor indispensável à vida; deve viver-se no meio da cor: é necessário como a água e o fogo.
Poder-se-ia obrigar os vendedores de modas a lançar em série vestidos verdes, fatos verdes...
Periodicamente, um ditador da cor decretaria as cores mensais ou trimestrais; o trimestre azul, a quinzena rosa! Para aqueles que não podem ir ao campo, passear-se-iam árvores pelas ruas. Paisagens móveis com flores tropicais, passeadas lentamente por cavalos de penacho.
Duas da manhã, ao acaso das ruas… bairro popular... Avenue «A» ou «B»... Uma imensa garagem de camiões, todos parecidos, em filas de seis, reluzentes como para um desfile, como elefantes, uma luz fixa. Nada se move: entro e olho.., um ridículo barulho de guizos... ao fundo, à esquerda, descubro um cavalo arreado. A única coisa viva, neste silêncio de ferro... O prazer de lhe tocar, de o ver mexer, de o sentir quente. O animal ganhava um tal valor, pelo contraste, que eu teria podido registar todos os barulhos que pode fazer um cavalo em repouso; barulhos minúsculos, sempre os mesmos; ouvia-lhe a respiração… movimentos delicados… as orelhas... os olhos pretos... uma estrela branca na cabeça... o casco polido e o joelho que, de tempos a tempos, se move lentamente.
O último cavalo de carga, à espera de reforma. Depois, aos domingos, será exposto numa vitrina e as crianças ficarão espantadas por Napoleão ter conquistado o mundo montado nele.
Em casa do arquitecto Corbett, juntamente com Kiessler. Ë um dos maiores construtores do edifício americano. Um homenzarrão simples... conseguir meter 20.000 pessoas num edifício, diz-me ele, eis o meu trabalho actual. Não julgue que se trata apenas de uma questão de número de andares! Não, é mais complicado, é uma questão de elevador, O problema é o de manobrar verticalmente este exército! Fazê-lo descer todos os dias para as quatro salas de jantar que se encontram a vinte metros debaixo da terra... Dar vazão a tudo isto, nas horas requeridas.
Depois, a saída de toda esta gente, sem engarrafar o trânsito... Seis meses de trabalho. Dez engenheiros especializados, e a solução ainda não foi encontrada.
Problema específico dos americanos, imbatíveis na racionalização, na série, nos números. Partir do total, para dar conforto à unidade... Novo mundo!
Dão a impressão de nada os deter; vida sucessiva e rápida. Destruí Nova Iorque, contruí-la-ão de outro modo. Aliás, que alvos admiráveis estas arquitecturas. Demolir Nova Iorque! Não é possível que o marechal Pétain não tenha tido, por um segundo, por meio segundo, a tentação. Que magnífico trabalho para um artilheiro! Militarmente não seria problema, pois não, meu general? Estive em Verdun sob as suas ordens, é suficiente, mas por desporto, por amor do ofício! Os americanos seriam os primeiros a aplaudir e, então, que veríamos nós? Pouco tempo depois, uma nova cidade estaria construída. Adivinhai como: aposto um contra mil: de vidro, de vidro!
Esta é a sua última invenção. Alguns engenheiros encontraram meio de fabricar vidro com leite coalhado, mais barato do que o betão. Imaginai: todas as vacas americanas a trabalhar na reconstrução da capital!
Nova Iorque transparente, translúcida, os andares azuis, vermelhos, amarelos! Uma fantasmagoria inédita, a luz desencadeada por Edison trespassando tudo isto e pulverizando as arquitecturas.
Os bairros populares são belos a qualquer hora. Há uma tal crueza, uma tal variedade de matérias-primas! Bairros russos, judeus, italianos, chineses. A Third Avenue, ao sábado à noite e ao domingo, é Marselha!
Chapéus cor-de-rosa para os negros. Vitrinas onde se encontra uma bicicleta pendurada por cima duma dúzia de ovos, alinhados sobre areia verde...
Frangos depenados, suspensos, em contraluz, sobre fundo negro... dança macabra!
Uma vida decorativa intensa valoriza infinitamente o objecto à venda.
O ar dos desempregados: nada os distingue, se não que andam mais devagar do que os outros. Apinhados nas praças, uns contra os outros, não conversam. Estas multidões são silenciosas: o indivíduo permanece isolado, não comunica; lê ou dorme!
Wall Street de dia: milhentas vezes descrita, mas ide lá ver!
Wall Street à noite, Wall Street às duas da manhã. Sob o luar seco e brilhante. O silêncio é absoluto. Ninguém, nestas ruas estreitas e estranguladas pela projecção violenta de linhas cortantes e perspectivas multiplicadas ao infinito, em direcção ao céu. Que espectáculo! Onde estamos? Um sentimento de solidão oprime-nos, como uma imensa necrópole. Os passos ressoam no pavimento. Nada se move. No meio desta floresta de granito, um pequeno cemitério de pequeninos túmulos, humildes, modestos: é a morte que se faz pequena, ao pé da exuberância da vida que a rodeia. O terreno deste pequeno cemitério é, certamente, o mais caro do mundo. Mas os businesssmen não lhe tocaram. Permanece como uma pausa, uma paragem na corrente vital… Solucionar a morte, último problema!
Wall Street dorme. Continuemos o passeio… Oiço um fraco murmúrio regular. Wa]l Street ressona? Não, é uma perfuradora que, harmoniosamente, começa o seu trabalho, como um trabalho de térmita. Nenhum barulho! É a única parte de Nova Iorque que verdadeiramente dorme. É preciso digerir os números do dia, as somas, as multiplicações, a álgebra financeira e abstracta destes milhares de indivíduos virados para o grande problema do ouro. Wall Street dorme profundamente. Deixemo-la dormir. A trinta metros debaixo da terra, na rocha, as caves de aço do Irving Bank. No centro, os cofres-fortes de fechaduras magníficas e brilhantes, complexas como a própria vida, um posto de polícia onde alguns homens velam. Microfones ultra-sensíveis trazem-lhes os menores ruídos da rua, e os barulhos que se notam sob as abóbadas de aço do banco moderno. Uma mosca a voar… Ouvem voar a mosca... Um velho negro deambula pelas ruas, canta baixinho uma velha melodia do Sul. A canção sobe, perde-se nas arquitecturas, mas desce também aos microfones que, debaixo da terra, registam discretamente a velha canção do Sul.
Wall Street não dorme... Wall Street está morta. Volto a passar ao pé do pequeno cemitério. Não são, agora, os maiores bancos do mundo! Não, são os mais orgulhosos túmulos de família dos grandes milionários. Aí, repousam os Morgan, os Rockfeller, os Carnegie. Como novos faraós, edificaram as suas pirâmides. Serão enterrados de pé como semideuses; e como estes gigantes modernos se tornam legendários e imortais, abriram-lhes mil janelas para que o povo saiba que talvez não estejam mortos, que respiram, que voltarão ainda uma vez para espantar o mundo com novas concepções ciclópicas.
Wall Street é a imagem da América audaciosa, deste povo que está sempre a agir e que nunca olha para trás de si.
Nova Iorque... Moscovo...
Os dois pólos da actividade moderna... A vida actual concentra-se aí...
Somente aí se ousa a experiência perigosa de que os outros aproveitarão.
Nova Iorque .. Moscovo!
Moscovo... Nova Iorque!
Paris, posto de observação!
Georges Duhamel veio à América. Dentro da mala, trouxe as suas concepções de francês médio e as pantufas. Talvez não tenha podido servir-se delas, das pantufas, o que o deixou, manifestamente, de mau humor. Por aqui, ainda não se usa disso. Pelo que as americanas são rainhas e têm pés bonitos. Ë preciso não ficar a querer mal à locomotiva que, ao passar a cem à hora, nos faz voar o chapéu.
fernand léger
funções da pintura
trad. tomás de figueiredo
livraria bertrand
1965
O navio, em andamento lento, desloca devagar as perspectivas; procura-se a estátua da Liberdade, o presente da França; é uma pequena estátua modesta, esquecida no meio do porto, diante deste novo continente audacioso e vertical. Mas não se vê, por muito que levante o braço o mais alto possível. Inutilmente, não ilumina mais do que uma vela, coisas enormes que mexem, formas que, indiferentes e majestosas, a cobrem de sombra...
Seis horas mais tarde. O navio avança lentamente. Uma massa direita, alta, elegante como uma igreja, aparece ao longe, envolvida na bruma, azul e rosa, esfumada como um pastel, fechada numa ordem gótica, projectada para o céu como um desafio. Que nova religião é esta?
É Wall Street, que domina da sua altura este mundo novo. Depois de seis dias de travessia na água fluida e imperceptível, móvel, ágil, chega-se diante desta montanha, abrupta, obra de homens, que lentamente se define, se torna mais nítida, se precisa com os seus ângulos cortantes, as suas janelas alinhadas, a sua cor metálica. Levanta-se violentamente acima do nível do mar. O barco roda... Wall Street desapareceu lentamente, silhueta reluzente como uma armadura.
É a apoteose da arquitectura vertical; uma combinação audaciosa de arquitectos e de banqueiros sem escrúpulos, empurrados pela necessidade. Uma elegância desconhecida, involuntária, desprende-se desta abstracção geométrica. Apertados entre dois ângulos de metal, são cifras, números, que sobem, rígidos, para o céu, domados pela perspectiva deformante...
Um mundo novo!...
Brooklyn!, os cais maciços. jogos de sombra e de luz, as pontes, com as suas projecções de linhas verticais, horizontais, oblíquas… O nascimento de Nova Iorque. na luz que, pouco a pouco, aumenta, à medida que se avança na cidade... Nova Iorque, milhões de janelas luminosas... Quantas janelas? Quando aparecerá um alemão para fazer esta original estatística?
Espantoso país, onde as casas são mais altas do que as igrejas, onde os limpadores de janelas são milionários, onde se organizam desafios de futebol entre os prisioneiros e a Polícia!
A beleza de Nova Iorque à noite é feita de inumeráveis pontos luminosos e do jogo infinito da publicidade móvel.
O rigor ria arquitectura é quebrado pela fantasia sem limites das luzes coloridas. O grande espectáculo começa mal nos levantamos, e esta visão radiosa tem a particularidade de nenhum artista, de nenhum encenador ter contribuído para ela. Esta música comovente é tocada por casas em que habitam pessoas como vós eu. Estes milhares de fogos, que nos espantam, iluminam pessoas que trabalham modestamente na sua tarefa ingrata e quotidiana. Estas arquitecturas ciclópicas são estritamente úteis, racionais; o crescimento vertical é de ordem económica.
Elevou-se o número de andares, porque o terreno é pouco e caro, porque não é possível construir em extensão; construiu-se obrigatoriamente em altura. Não há nenhum sentimento romântico em tudo isto, a sombra de um orgulho deslocado. Toda esta orquestração surpreendente é estritamente útil. O mais belo espectáculo in the world não é criação de um artista.
Nova Iorque tem uma beleza natural, como os elementos da natureza, como as árvores, as montanhas, as flores. Está aí a sua força e a sua variedade. Pretender tirar partido artístico de semelhante tema é uma loucura. Admira-se modestamente, e é tudo.
No interior desta vida múltipla e organizada corre uma personagem indispensável a esta vida ilimitada: o telefone, actor principal. Faz parte da família. É o brinquedo da criança americana; pega-lhe como numa boneca, e essa boneca toca, fala, ri. É uma corda ininterrupta que liga, como aos alpinistas, toda esta gente rápida e apressada.
Se um dia morrer subitamente, não haverá ninguém no seu enterro, porque ninguém saberá o dia e a hora do funeral.
Nova Iorque e o telefone vieram ao mundo no mesmo dia, no mesmo barco, para conquistar o mundo.
Em Nova Iorque a vida mecânica está no apogeu. Tocou o limite, ultrapassou o fim… crise!
A vida americana é uma sucessão de aventuras, conduzidas com optimismo até ao fim.
Arriscou-se tudo, experimentou-se tudo; e há realizações definitivas. Naturalmente, o volume da arquitectura deveria tentá-los. Antes de mais, tudo quanto se vê. A arquitectura e a luz são os dois pólos da sua expressão plástica; no barroco, atingem o monstruoso.
Nova Iorque e Atlantic City têm cinemas que é difícil descrever a quem não os viu. Um amontoamento inverosímil de todos os estilos europeus e asiáticos; um caos colossal, para ferir a imaginação, fazer publicidade, fazer «mais que em frente»; a Enormidade no «mais rico do que tu».
Escadas inúteis, empregados em número incalculável, espantar, atrair e ganhar dinheiro. É o fim de toda esta vertigem que atinge a repugnância e a beleza.
Gosto tanto desta inundação de espectáculos, de toda esta força incontida, desta virulência, mesmo no erro... É muito novo. Engolir um sabre a sorrir, cortar um dedo, porque está sujo...
Até ao fim, é sempre a América. Naturalmente, se me detenho a reflectir, se fecho os olhos, entrevejo os dramas que pairam à roda deste dinamismo exagerado, mas eu vim para ver — e continuo.
As cartas lançadas do quinquagésimo andar pelo tubo pneumático, aquecem com o atrito e chegam a arder ao rés-do-chão. É necessário gelar os tubos — mas demasiado frios, as cartas chegarão no meio de neve.
Tudo fuma em Nova Iorque, «até as ruas». Ouvi raparigas dizer que fumar durante as refeições distrai e impede de engordar, uma inesperada relação entre o cigarro e a elegância.
O dia, em Nova Iorque, é muito severo; falta-lhe cor e, se o tempo está enevoado, Nova Iorque é uma cidade de chumbo.
Porque não se hão-de colorir as casas? Porquê esta lacuna, na terra de todas as invenções?
Fifth Avenue, vermelha — Madison, azul - Park Avenue, amarela. Porque não? E a falta de verdura? Nova Iorque não tem árvores. A medicina decretou há muito que o verde, em particular, é uma cor indispensável à vida; deve viver-se no meio da cor: é necessário como a água e o fogo.
Poder-se-ia obrigar os vendedores de modas a lançar em série vestidos verdes, fatos verdes...
Periodicamente, um ditador da cor decretaria as cores mensais ou trimestrais; o trimestre azul, a quinzena rosa! Para aqueles que não podem ir ao campo, passear-se-iam árvores pelas ruas. Paisagens móveis com flores tropicais, passeadas lentamente por cavalos de penacho.
Duas da manhã, ao acaso das ruas… bairro popular... Avenue «A» ou «B»... Uma imensa garagem de camiões, todos parecidos, em filas de seis, reluzentes como para um desfile, como elefantes, uma luz fixa. Nada se move: entro e olho.., um ridículo barulho de guizos... ao fundo, à esquerda, descubro um cavalo arreado. A única coisa viva, neste silêncio de ferro... O prazer de lhe tocar, de o ver mexer, de o sentir quente. O animal ganhava um tal valor, pelo contraste, que eu teria podido registar todos os barulhos que pode fazer um cavalo em repouso; barulhos minúsculos, sempre os mesmos; ouvia-lhe a respiração… movimentos delicados… as orelhas... os olhos pretos... uma estrela branca na cabeça... o casco polido e o joelho que, de tempos a tempos, se move lentamente.
O último cavalo de carga, à espera de reforma. Depois, aos domingos, será exposto numa vitrina e as crianças ficarão espantadas por Napoleão ter conquistado o mundo montado nele.
Em casa do arquitecto Corbett, juntamente com Kiessler. Ë um dos maiores construtores do edifício americano. Um homenzarrão simples... conseguir meter 20.000 pessoas num edifício, diz-me ele, eis o meu trabalho actual. Não julgue que se trata apenas de uma questão de número de andares! Não, é mais complicado, é uma questão de elevador, O problema é o de manobrar verticalmente este exército! Fazê-lo descer todos os dias para as quatro salas de jantar que se encontram a vinte metros debaixo da terra... Dar vazão a tudo isto, nas horas requeridas.
Depois, a saída de toda esta gente, sem engarrafar o trânsito... Seis meses de trabalho. Dez engenheiros especializados, e a solução ainda não foi encontrada.
Problema específico dos americanos, imbatíveis na racionalização, na série, nos números. Partir do total, para dar conforto à unidade... Novo mundo!
Dão a impressão de nada os deter; vida sucessiva e rápida. Destruí Nova Iorque, contruí-la-ão de outro modo. Aliás, que alvos admiráveis estas arquitecturas. Demolir Nova Iorque! Não é possível que o marechal Pétain não tenha tido, por um segundo, por meio segundo, a tentação. Que magnífico trabalho para um artilheiro! Militarmente não seria problema, pois não, meu general? Estive em Verdun sob as suas ordens, é suficiente, mas por desporto, por amor do ofício! Os americanos seriam os primeiros a aplaudir e, então, que veríamos nós? Pouco tempo depois, uma nova cidade estaria construída. Adivinhai como: aposto um contra mil: de vidro, de vidro!
Esta é a sua última invenção. Alguns engenheiros encontraram meio de fabricar vidro com leite coalhado, mais barato do que o betão. Imaginai: todas as vacas americanas a trabalhar na reconstrução da capital!
Nova Iorque transparente, translúcida, os andares azuis, vermelhos, amarelos! Uma fantasmagoria inédita, a luz desencadeada por Edison trespassando tudo isto e pulverizando as arquitecturas.
Os bairros populares são belos a qualquer hora. Há uma tal crueza, uma tal variedade de matérias-primas! Bairros russos, judeus, italianos, chineses. A Third Avenue, ao sábado à noite e ao domingo, é Marselha!
Chapéus cor-de-rosa para os negros. Vitrinas onde se encontra uma bicicleta pendurada por cima duma dúzia de ovos, alinhados sobre areia verde...
Frangos depenados, suspensos, em contraluz, sobre fundo negro... dança macabra!
Uma vida decorativa intensa valoriza infinitamente o objecto à venda.
O ar dos desempregados: nada os distingue, se não que andam mais devagar do que os outros. Apinhados nas praças, uns contra os outros, não conversam. Estas multidões são silenciosas: o indivíduo permanece isolado, não comunica; lê ou dorme!
Wall Street de dia: milhentas vezes descrita, mas ide lá ver!
Wall Street à noite, Wall Street às duas da manhã. Sob o luar seco e brilhante. O silêncio é absoluto. Ninguém, nestas ruas estreitas e estranguladas pela projecção violenta de linhas cortantes e perspectivas multiplicadas ao infinito, em direcção ao céu. Que espectáculo! Onde estamos? Um sentimento de solidão oprime-nos, como uma imensa necrópole. Os passos ressoam no pavimento. Nada se move. No meio desta floresta de granito, um pequeno cemitério de pequeninos túmulos, humildes, modestos: é a morte que se faz pequena, ao pé da exuberância da vida que a rodeia. O terreno deste pequeno cemitério é, certamente, o mais caro do mundo. Mas os businesssmen não lhe tocaram. Permanece como uma pausa, uma paragem na corrente vital… Solucionar a morte, último problema!
Wall Street dorme. Continuemos o passeio… Oiço um fraco murmúrio regular. Wa]l Street ressona? Não, é uma perfuradora que, harmoniosamente, começa o seu trabalho, como um trabalho de térmita. Nenhum barulho! É a única parte de Nova Iorque que verdadeiramente dorme. É preciso digerir os números do dia, as somas, as multiplicações, a álgebra financeira e abstracta destes milhares de indivíduos virados para o grande problema do ouro. Wall Street dorme profundamente. Deixemo-la dormir. A trinta metros debaixo da terra, na rocha, as caves de aço do Irving Bank. No centro, os cofres-fortes de fechaduras magníficas e brilhantes, complexas como a própria vida, um posto de polícia onde alguns homens velam. Microfones ultra-sensíveis trazem-lhes os menores ruídos da rua, e os barulhos que se notam sob as abóbadas de aço do banco moderno. Uma mosca a voar… Ouvem voar a mosca... Um velho negro deambula pelas ruas, canta baixinho uma velha melodia do Sul. A canção sobe, perde-se nas arquitecturas, mas desce também aos microfones que, debaixo da terra, registam discretamente a velha canção do Sul.
Wall Street não dorme... Wall Street está morta. Volto a passar ao pé do pequeno cemitério. Não são, agora, os maiores bancos do mundo! Não, são os mais orgulhosos túmulos de família dos grandes milionários. Aí, repousam os Morgan, os Rockfeller, os Carnegie. Como novos faraós, edificaram as suas pirâmides. Serão enterrados de pé como semideuses; e como estes gigantes modernos se tornam legendários e imortais, abriram-lhes mil janelas para que o povo saiba que talvez não estejam mortos, que respiram, que voltarão ainda uma vez para espantar o mundo com novas concepções ciclópicas.
Wall Street é a imagem da América audaciosa, deste povo que está sempre a agir e que nunca olha para trás de si.
Nova Iorque... Moscovo...
Os dois pólos da actividade moderna... A vida actual concentra-se aí...
Somente aí se ousa a experiência perigosa de que os outros aproveitarão.
Nova Iorque .. Moscovo!
Moscovo... Nova Iorque!
Paris, posto de observação!
Georges Duhamel veio à América. Dentro da mala, trouxe as suas concepções de francês médio e as pantufas. Talvez não tenha podido servir-se delas, das pantufas, o que o deixou, manifestamente, de mau humor. Por aqui, ainda não se usa disso. Pelo que as americanas são rainhas e têm pés bonitos. Ë preciso não ficar a querer mal à locomotiva que, ao passar a cem à hora, nos faz voar o chapéu.
fernand léger
funções da pintura
trad. tomás de figueiredo
livraria bertrand
1965