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15 junho 2022

pedro gil-pedro / rodam devagar as pás do silêncio

 
 
Rodam devagar as pás do silêncio
como delas manasse um abismo suado.
 
mas sobre a matriz da neve pendem os bordões do fogo.
 
de longe veio o declínio da esteva – um círculo fechado
por enigmas.
 
em breve
 
haverá um halo de geminação nos açudes e
exausta a poda um arado de novo em desvario.
 
diante do inverno.
 
movem-te ainda as pás da agonia
apesar dos setenta selos pregados ao sono.
 
 
 
pedro gil-pedro
animais cheios de movimento no inverno
quasi
2002




02 março 2018

pedro gil-pedro / para que ninguém sobreviva ao perdão





Num surto
alastram das várzeas – recidiva
traslação de gárgulas

a desarmar o fogo

no meio
do hangar o homem dirimindo os alçados

o jorro percutivo que o sustém pelas ilhargas.

só ele imagina como desabasse
nas traves de uma cria


pedro gil-pedro
para que ninguém sobreviva ao perdão
cosmorama
2008







25 maio 2009

pedro gil-pedro / para que ninguém sobreviva ao perdão






O modo exemplar
da lapidação – irrepreensível
a executar

a infligir por cima
e por baixo as alvenarias

e a conformidade do sangue.

exímio e constante
nos pormenores do fogo

anterior aos incidentes
da predição e às funções
do alabastro.





















pedro gil-pedro
para que ninguém sobreviva ao perdão
cosmorama
2008






08 dezembro 2006

pedro gil-pedro




Desciam
às estâncias do frio

o metal pesado nas mãos

e resplandeciam –

tolhidas pelo silvo vertical das
nascentes.

às vezes
eram badalos de tristeza –

as manadas abertas do cio.

vinhas com elas.







pedro gil-pedro
“animais cheios de movimento no inverno”
quasi
2002



14 novembro 2004

quatro estações #crónicas de outono




Livros que deitam folhas


A um livro, por vezes, crescem-lhe raízes para dentro do próprio leitor. É, então, possível vê-lo assentar a estacaria minuciosa, encenar-se, senão mesmo deitar lume. Dê-se-lhe voltas, e não se lhe compreende a fonte, a subtil força que o anima, nos perturba.
Por vezes, há ocasionais, discretos versos suspensos da página, que maturam sombriamente por fora, que se anicham entre os parietais. Como que redivivos. Quando falamos de livros, não chegamos, sequer a falar de livros. Falamos dos versos que se pegam ao corpo – que ofuscam. Por que há versos que trazemos ignorados como um nome. Outros: já lá estão, desde sempre, ao fundo, à nossa espera.

Eu amo assim: com as mãos, os intestinos. Onde ver deita folhas. Luís Miguel Nava.

J. P. Francisco

09 outubro 2004

quatro estações #crónicas de outono

a sedução de hildebrando


naquele tempo, media a infância pelo porte regular das
cumeadas, pela passada ostensiva do avô por entre o
tojo. falava-se baixo, muito devagar, o necessário.
então, o avô estacava. como se perscrutasse as razões
íntimas de deus ante o fulgor animal da paisagem, como
se decifrasse. passava-se dias nessa lentidão de
batedor, pelos sopés. mas nas noites quentes de
setembro, assentava uma manta vermelha sob a latada
breve e discreta para olharmos de frente o universo. o
avô era generoso, dava a ler o céu e a terra. enquanto
os carros desciam por el carmen como luzeiros
infligindo a noite. naquele tempo, subia-se pela
serra, às contracurvas, para ver o mar. eu nem sequer
sabia que todo aquele que reparte dá, quando rente ao
estio se galgava a umbria. então, o avô pagava por uma
aiola para abordarmos a pedra grande. a avó esperava
sobre uma manta vermelha, na praia, e passaram anos. o
avô andava já cansado. eu deixara de fazer contas
pelas cumeadas e as máquinas impuseram, a um e outro
flancos do dorso macio, uma lenta, obstinada voragem.
porque as máquinas são poços de força, são coisas
estranhas aos utensílios de deus. mas onde quer que
esteja, o avô ainda sabe, como ninguém, ler o céu, a
terra e o mar, a circunspecção rudimentar do universo.
e deixar tudo como estava.

j.p. francisco