19 janeiro 2022
marguerite yourcenar / a paisagem dos meus dias…
24 março 2021
marguerite yourcenar / poderias mergulhar…
27 fevereiro 2017
marguerite yourcenar / utilidade do amor
10 maio 2016
marguerite yourcenar / os trinta e três nomes de deus
06 junho 2015
marguerite yourcenar / recordamo-nos dos nossos sonhos:
15 dezembro 2014
marguerite yourcenar / tenho sessenta anos. não te iludas:
04 junho 2014
marguerite yourcenar / disciplina augusta
27 janeiro 2013
marguerite yourcenar / e tu, vais-te embora?
06 agosto 2012
marguerite yourcenar / nunca serei vencida
02 fevereiro 2012
marguerite yourcenar / solidão
12 março 2010
marguerite yourcenar / essas mãos
marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995
23 dezembro 2008
marguerite yourcenar / estações alciónicas...
Estações alciónias,
solstício dos meus dias ...
Longe de embelezar, à distância,
a minha felicidade,
devo lutar para lhe não turvar a imagem;
a sua própria recordação
é hoje demasiado forte para mim.
Mais sincero que a maioria dos homens,
confesso sem rodeios
as causas secretas dessa felicidade:
aquela calma tão propícia aos trabalhos
e às disciplinas
parece-me um dos mais belos efeitos
do amor.
E espanto-me
de que estas alegrias tão precárias,
tão raramente perfeitas no decorrer de uma vida humana,
sob qualquer aspecto
além de que nós os tenhamos procurado
e recebido,
sejam consideradas com tanta desconfiança
por pretendidos sábios,
que eles receiem o seu hábito e excesso
em vez de temer a sua falta e perda,
que passem a tiranizar os sentidos
um tempo que seria mais bem empregado
a ordenar ou a embelezar a alma.
Naquela época
punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la,
e também em julgá-la,
a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores
dos meus actos;
e que é a própria voluptuosidade
senão um momento de atenção apaixonada do corpo?
Toda a felicidade é uma obra-prima:
o menor erro falseia-a,
a menor hesitação altera-a,
a menor deselegância desfeia-a,
a menor estupidez embrutece-a.
A minha
não é responsável em coisa alguma por aquelas
das minhas imprudências
que mais tarde a quebraram.
Julgo ainda
que teria sido possível a um homem mais hábil que eu
ser feliz até à morte.
marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974
07 agosto 2008
marguerite yourcenar / safo ou o suicídio
(…)
desce a correr
as ruas cheias de despojos e de lixo
que conduzem até ao mar,
mergulha na vaga dos corpos.
sabe que nenhum encontro
lhe trará salvação,
pois não poderá,
para onde quer que vá,
voltar senão a encontrar Átis.
aquele rosto desmesurado
tapa-lhe todas as saídas
que não dão para a morte.
a noite cai
semelhante a uma fadiga
que lhe baralhasse a memória;
um pouco de sangue
persiste do lado do poente.
repentinamente
ressoam tímbalos, como se a febre
os fizesse chocar
dentro do seu coração:
contra sua vontade,
um longo hábito levou-a de volta ao circo,
à hora onde todas as noites ela luta
contra o anjo da vertigem.
uma última vez
enche-se daquele cheiro de animal selvagem
que foi o da sua vida,
daquela música enorme e desafinada
como é a do amor.
(…)
marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995
07 outubro 2007
das memórias de adriano
que principiei a sentir-me deus.
Não faças confusão: era sempre, era mais que nunca
aquele mesmo homem alimentado de frutos
e de animais da terra,
restituindo ao solo os resíduos dos seus alimentos,
sacrificando ao sono a cada revolução dos astros,
inquieto até à loucura
quando lhe faltava por demasiado tempo
a cálida presença do amor.
A minha força,
a minha agilidade física ou mental
eram cuidadosamente mantidas por uma ginástica
toda humana.
Mas que dizer senão que tudo isso era divinamente
vivido?
As ousadas experiências da juventude
tinham acabado,
assim como a sofreguidão de gozar o tempo que passa.
Aos quarenta e quatro anos
sentia-me sem impaciência,
seguro de mim,
tão perfeito
quanto a minha natureza me permitia,
eterno.
E compreende bem que se trata,
neste caso,
de uma concepção do intelecto:
os delírios, se este nome se lhes pode dar,
vieram mais tarde.
Era deus
simplesmente porque era homem.
marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974
05 julho 2007
febo del poggio
Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã, reconstróis o mundo; integral nos braços nus que conténs o universo; juventude, aurora do homem. Que importa o que outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo del Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do coração…
Acordo. Tenho diante de mim, atrás de mim, a noite eterna. Eu dormi milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir… Só tenho uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas? Estendo-me ao sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que não voltará mais.
marguerite yourcenar
o tempo esse grande escultor
trad. helena vaz da silva
difel
2001
03 abril 2007
ausente
Ausente,
a tua figura aumenta
a ponto de encher
o universo.
Passas
ao estado fluido
que é o dos fantasmas.
Presente,
ela condensa-se;
atinges as concentrações
dos metais
mais pesados,
do irídio,
do mercúrio.
Morro
com esse peso
quando ele me cai
no coração.
marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995
25 outubro 2006
um poema de: marguerite yourcenar
Gherardo Perini
«Não irei mais longe, Gherardo.
Não te acompanho mais porque o trabalho urge
e eu sou um homem velho. Sou um homem velho, Gherardo.
Às vezes, quando te entregas mais à ternura,
chegas a chamar-me teu pai. Mas eu não tenho filhos.
Nunca encontrei mulher tão bela como as minhas figuras de pedra,
mulher que ficasse horas imóvel sem falar,
como coisa necessária que não precisa de agir para ser,
e nos faz esquecer que o tempo passa porque está sempre presente.
Mulher que se deixe olhar sem sorrir nem corar
porque compreendeu que a beleza é qualquer coisa de grave.
As mulheres de pedra são mais castas que as outras,
e mais fiéis, porém, são estéreis.
Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer,
a morte, ou a semente de uma criança,
e por isso elas são menos frágeis.
Por vezes quebram-se e em cada pedaço de mármore
fica contida a sua beleza inteira, como Deus
que está em todas as coisas,
mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração.
Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem,
mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana.
Gherardo, não tenho filhos.
Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho:
têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria.
Se eu tivesse um filho,
ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formara
antes de existir. Assim também as estátuas que faço
são diferentes daquelas que comecei por sonhar.
Mas Deus permite-se ser conscientemente criador.
Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais,
mas não teria que perguntar-me porquê.
Toda a minha vida procurei respostas a perguntas
que talvez não tenham resposta e perscrutei o mármore
como se a verdade se encontrasse no coração das pedras,
e espalhei as cores para pintar muralhas
como se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio.
Tudo se cala, sabes, até a nossa alma —
ou então somos nós que não ouvimos.
Assim, tu partes.
Na minha idade já não se dá importância a uma separação,
mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam mais
se vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa.
É também deste modo que se vão separando de si próprios.
Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí,
mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida,
e a tua ausência já começou. É certo que compreendo
que tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe.
Os homens que inventaram o tempo,
inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempo
é tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuro
mas apenas uma série de presentes sucessivos,
um caminho perpetuamente destruído e continuado
onde todos vamos avançando.
Estás sentado, Gherardo,
mas os teus pés estão assentes no solo
com a inquietação de quem experimenta o caminho.
Estás vestido com trajes do nosso século,
que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século
tiver passado pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo.
Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo,
que é como os santos vêem as almas, segundo penso.
É um suplício quando são feios,
mas é um outro suplício quando são belos,
dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os lados
e acabarão por tomar-te,
mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igreja
onde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia
o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado
onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio
o reflexo imóvel de ti.
E desse modo imobilizarei a tua alma também.
Tu já não me amas.
Se consentes em ouvir-me durante uma hora
é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar.
Ligaste-me e agora desligas-me.
Não te censuro, Gherardo.
O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido
que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo.
Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces,
ao encontro de quem vais e que porventura te esperam:
aquele que eles vão conhecer será diferente daquele
que eu julguei conhecer e creio amar.
Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e,
sendo a arte a única forma de posse verdadeira,
o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.
Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas:
vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.
Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,
enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.
Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,
assim tu também não és mais para mim
do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.
Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.
Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»
Marguerite Yourcenar
“O tempo esse grande escultor”
trad. helena vaz da silva
difel 2001
15 junho 2006
estações
“Duas horas da manhã. Os ratos procuram nos caixotes os restos do dia morto: a cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos sonâmbulos. Onde estás tu, em que leito, em que sonho? Se te encontrasse, tu passarias sem me ver pois não somos vistos pelos nossos sonhos. Não tenho fome: esta noite não consigo digerir a minha vida. Estou cansada: caminhei toda a noite para semear a tua recordação. Não tenho sono: nem sequer tenho apetite da morte. Sentada num banco, embrutecida apesar de tudo pela aproximação da manhã, deixo de me lembrar que te procuro esquecer. Fecho os olhos... os ladrões não querem senão os nossos anéis, os amantes a carne, os pregadores as nossas almas, os assassinos a vida. Podem tirar-me a minha: desafio-os a nada lhe mudar. Inclino a cabeça para ouvir por cima de mim o remexer das folhas... Estou num bosque, num campo... É a hora em que o Tempo se disfarça de varredor e Deus talvez em trapeiro. Ele avarento, ele teimoso, ele que não consente que se perca uma pérola nos montes de cascas de ostras às portas das tabernas. Pai nosso que estais no céu... Verei alguma vez vir sentar-se a meu lado um velho de sobretudo castanho, com os pés enlameados por ter tido, para me alcançar, de atravessar sabe Deus que rio? Ele deixar-se-ia cair no banco, tendo na mão fechada um presente muito precioso que seria o bastante para tudo mudar. Abriria os dedos lentamente, um após outro, muito prudentemente, por que aquilo foge... Que seguraria ele? Uma ave, um germe, uma faca, uma chave para abrir a lata de conserva do coração?”
Marguerite Yourcenar, fogos, trad. Maria da Graça Morais Sarmento, Difel, 1995
14 outubro 2004
book zapping #001 marguerite yourcenar
Nos pântanos cheios de água, um pato mergulha, um cisne que toma balanço para voltar ao céu faz o seu enorme barulho de asas desdobradas; as cobras deslizam silenciosamente sobre o musgo ou fazem estalar as folhas secas; ervas fortes tremem no alto das dunas ao vento de um mar ainda não poluído pelo fumo de nenhuma caldeira, o óleo de nenhum carburante, e sobre que nenhuma nave se aventurou ainda. Às vezes, ao largo, o jacto poderoso de uma baleia; o salto contente dos marsuínos como eu os vi, à frente de um barco carregado de mulheres, crianças, utensílios domésticos e cobertores apanhados ao acaso onde eu seguia com os meus em Setembro de 1914, de regresso à França não invadida, via Inglaterra; e a criança de onze anos sentia já confusamente que essa alegria animal pertencia a um mundo mais puro e mais divino do que aquele em que os homens fazem sofrer os homens.
Estamos a cair de novo na anedota humana; dominemo-nos; giremos com a Terra que anda como sempre inconsciente de si própria, belo planeta no céu. O Sol aquece a ténue crosta viva, faz sair os rebentos e fermentar os cadáveres, puxa do solo um vapor que a seguir dissipa. Depois, grandes bancos de bruma velam as cores, abafam os ruídos, recobrem as planuras da terra e as ondulações do mar com uma única e espessa toalha cinzenta. A chuva sucede-lhe, ressoando sobre biliões de folhas, bebida pela terra, sugada pelas raízes; o vento dobra as árvores novas, abate os troncos, varre tudo com um imenso rumor. Enfim, voltando de novo, o silêncio, a neve imóvel sem outra marca na sua superfície que não seja a dos cascos, das patas ou das garras, ou as estrelas que os pássaros gravam quando nela poisam. Nas noites de lua, movem-se claridades sem que seja preciso um poeta ou um pintor para as contemplar, sem que lá esteja um profeta para saber que um dia espécies de insectos com carapaças grosseiras se aventurarão lá no alto sobre a poeira dessa bola morta. E quando a luz da Lua não as oculta, as estrelas brilham, mais ou menos colocadas como estão hoje, mas não ainda ligadas entre elas por nós em quadrados, em polígonos, em triângulos imaginários, ainda não baptizadas com nomes de deuses e de monstros que não lhes dizem respeito.”
Marguerite Yourcenar
“Arquivos do Norte”
trad. De Helena Vaz da Silva e Alberto Vaz da Silva
Difel
Lisboa 1989