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21 março 2014

nuno travanca / o silêncio desta terra



o silêncio desta terra
é inútil e resiste
nas viagens do meu menino
na pupila brilhante e demorada
atenta à raiz de uma lenta origem
que aguarda pela mudança da estação
o silêncio desta terra
é um obscuro e rigoroso exercício
daquele que sonha ainda a profecia
surge à flor da pele por acreditar
a casa inabitada desse ficcionado futuro
enquanto decora a sala de estar
o silêncio desta terra
é feita de homens que de tanto se conhece
os primitivos instintos e alguns conflitos
que impenetráveis acendem o mundo
na arte do desencontro

o silêncio desta terra
coincide com um tempo desacordado
de esquinas dispostas e encerradas em si
com a proibição das escadas
e a memória da impossibilidade
o silêncio desta terra
é sustentado por um vulgar vazio
de olhos escuros e já pouca saliva
cuida da separação dos ossos
e do sentido compreendido do branco
o silêncio desta terra
é translúcido e existe, cumpre-se
em delongadas conversas inócuas
traz com ele a perda e as faltas
sinistras e frágeis emoções
o silêncio desta terra
será cortado em todos os vértices
que na imensidão das vestes
ligam as vozes de semi-acordados esqueletos
e dessa maravilhosa discórdia do silêncio.

rejubilem ó senhoriais do mundo
que o vosso silêncio terá um fim célere
porque na posse do seu verdadeiro íntimo
o homem há-de acordar e vós
um a um cairão por terra, em estrondo.




nuno travanca




02 julho 2012

nuno travanca / os pássaros dissertam sobre o reflexo


  


os pássaros dissertam sobre o reflexo
esvoaçam noite afora

por cima do quarto
sobre corpos profusos

recordam todos os quartos
que submergiram

não se afastam das costas

e têm ondas a crescer no peito
que nunca foram senão cultivadas

onde se suspendem [no lago]
há peixes espectro
vários reflexos e luzes estudo

se atentos
ocupam-se de ninhos

e seguem sempre viagem
apesar de






02 fevereiro 2007

há um ruído



há um ruído que se silencia
no escorreito de tuas veias

é o silêncio amurado
que corre desencontrado
em direcção a rápidos

há um ruído que se silencia
forte de centelha

que envenena no teu choro
de menina
e arde como roma

ao nero olhar à pira

há um ruído que emudece
se te beijo o corpo
a alma

há um ruído que transparece
se me transcende
se te transcende

há um ruído que se silencia
só para não gritar






nuno travanca
31 julho 2006







30 março 2006

post it / nuno travanca

sem título


na extensão imanente dos teus púberes dedos
outra linguagem
centelha apertada no corpo
desfeita pela lonjura das sombras


a letra levada a extremos
holograma da pele
investido em ângulos mais fracos
cada vez mais fracos


um prelúdio de esquecimento
gestação fúnebre do instante


o semblante do lugar
em puro desfasamento
afastado da luxúria
ao encontro da rugosidade do papel


dedos púberes e incompletos
registo óbvio da gnose
da leviandade
do próximo raio de tinta


o corpo
conteúdo da brevidade escutada


a centelha a desabrochar
no toque.



nuno travanca

28 março 2005

quatro estações #crónicas de inverno

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19:40


o relógio da estação marcava
dezanove e quarenta

um alto e entroncado homem
sorria de um dos lados da linha

todos os dias

do outro sorria uma mulher
com os seus dezanove
e quarenta anos

a reter, os brincos da mulher
estridentes de silêncio

e as botas dele
invulgarmente mudas

a dilecção dela
eram homens pontuais

a dele mulheres
sorridentes ao silêncio

dia dezanove de um mês
invernoso
do ano de quarenta

de um lado da linha
não havia vislumbre
de mulher ou homem

e do outro
também não



nuno travanca

02 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno

frequente inverno mensurável


uma mulher equivocada media a palmo o inverno. meses sobre meses redondos lhe surgiam como o burburinho lúcido da viagem. fazia aqueles estalidos frágeis como se lhe coubesse no dedo a rotação do planeta devastado o ruído da morte da ausência. empilhava as mãos alternadamente em tom de súbita precipitação e depois sorria. sorria como se estivesse a sentir-nos alheios distantes cheios dela preenchidos até à raiz do cabelo quando ele caía. e agora a vida corria a todo o gás a saraiva atingia a máxima velocidade a mulher escondida num manto branco e o baton escarlate na seiva dos homens do inverno ao largo diluia-se. e a sinfonia da sua metamorfose do estalido dos seus dedos da morte equivocada regurgitava. as margens as correntes cavalgavam a ciranda até perder de vista a vista até perder o norte ao sul. este lugar de névoa o aparecimento do pequeno raio a têmpora a salgar durante a viagem petrificara as águas o odor limítrofe do frio as frieiras as gretas das mãos que a palmo encontravam o inverno. a marca deste inverno deste imenso manto desesperava nos reflexos breves das janelas inclusas. a reclusão desta mulher permitia-lhe dedilhar o medo lembrar profundamente a raiz do infinito. há um mistério de pureza na crença deste equívoco jaz inerte o almiscarado do inverno por esses dedos. apetece-me uma laranja de inverno um tomo dedilhado por uma mulher equivocada. apetece-lhe o inverno e a mim intuído o tempo renascida a manhã o inverno todo.



nuno travanca


23 outubro 2004

polaróide mínima #002



Tiziano Fratus


Tiziano Fratus (Bergamo, 1975) dirige «ManifatturAE», é poeta, artista, critico. Em 2001 participou com os seus quadros-poesia em Versus VII (Velan, Torino). Em 2002 leva à cena o monólogo-performance l’autunno per eleni, de que dirige o vídeo homónimo. Participou em vários festivais de teatro e poesia. Em 2003, publica lumina (Editoria & Spettacolo, Roma). O poema la barba da vecchio che segue tracciati sfumature d'asfalto usurato (Dubsters, Torino) participa no projecto Fioriture organizado por Isabella Bordoni para a Giornata Mondiale della Poesia, difundida pela KunstRadio de Vienna. Compôs o longo poema l’inquisizione (2000-2004), que está para ser publicado pela Editoria & Spettacolo. Dirigiu o videopoema anatómico nell’uomo (Dubsters, Torino, 2004), que terá estreia no X Festival Internazionale di Poesia di Genova. É critico no semanário «Il Domenicale» e no «Dramma.it», consultor do festival de dramaturgia Quartieri dell’Arte (Viterbo), Tramedautore (Milano), Incontrosensi (Pescara). Ensina história da dramaturgia do século XX em Moncalieri. Publicou os seguintes ensaios, conversas e volumes sobre o teatro contemporâneo: Lo spazio aperto. Il teatro ad uso delle giovani generazioni (Editoria & Spettacolo, 2003); L’architettura dei fari: 1990-2003, la nuova drammaturgia italiana (Edizioni Atelier, 2003). Trabalha na antologia Un albero in scena. L’arte dei versi nella drammaturgia contemporânea italiana.


A inquisição é um poema composto por 33 quadros. Na Turim dos nossos dias, simultaneamente reconhecível e transfigurada, um homem duplica–se algures na periferia norte da cidade: pensamentos, recordações, personagens selvagens, como selvagem é a mancha negra que, partindo do cérebro e do fundo da alma, se expande, infiltrando-se nas paredes, perturbando o silêncio, lacerando os tecidos e ocultando a lenta combustão dos corpos.



PICTA / n o i n t e r i o r d e h o m e m
poema de tiziano fratus
tradução de letizia russo e pedro marques


{ de poema a inquisição, Artistas Unidos / Editoria & Spettacolo, Lisboa / Roma, 2004 }

olho para o rosto do meu pai
um pai como todos os pais que recorda e traz gravados os sinais da vida
os seus erros e culpas e diferenças revivem em mim reflorescem para serem às vezes repetidos
queria abraçá-lo apertar-lhe os ossos e as fibras musculares
escancarar a boca ranger a segunda fileira de dentes e depois devorá-lo
engoli-lo digeri-lo no escuro do estômago durante muito tempo e deixá-lo decantar nas entranhas
para o queimar depois fragmentado em todos os seus pormenores a posição dos pés e a maneira de segurar no cigarro
e o sulco que os anos cinzelam nas bochechas de norte a sul
mas agora fui raptado pelos amores e pelos leitos da paixão por um outro tipo de carne
as estações andam de mão em mão e acumulam-se atrás do olhar que se faz mais prudente
a tua mão é uma recordação embora o aperto dela na minha ainda arda
uma epígrafe jaz na nossa sepultura o mármore frio
epitáfio de um amor que morre mais uma vez
tentámos mudar o mundo mas o mundo mudou-nos a nós
é mais fácil levar a cabo um holocausto nos nossos dias
agarrados aos sobretudos elegantes e sepultados debaixo de corredores de livros e mapas do mundo
as fotografias dos campos de concentração espalhadas pela velha europa amareleceram demasiado depressa
oxidaram e precipitaram-se no fundo dos rios
nem os pescadores nem os remadores que treinam os corpos no tibre no pó ou no arno
nem eles podem distingui-las debaixo dos sedimentos de lodo e dos resíduos industriais
um espectro com a varinha de hipócrates canta uma cantilena
não adormeçamos uma nova confusão em cima de sedimentos de uma outra confusão
este correr atrás este cansar-se para contribuir pessoalmente para a evolução do pensamento
já há demasiada vida incompleta a rebocar as paredes das salas de aula e as igrejas
somos homens pequenos que tentam fazer a história com um balde de areia
mas não suportamos a areia nas sandálias a máquina de lavar que encrava a massa empapada
a humanidade está avariada estragou-se logo depois da criação
indivíduos de sexo incerto andam às voltas com máscaras no rosto
únicos concorrentes para o mesmo farrapo de poder
apinham as rampas do metro e fazem mais compridas as filas nas escadas de vidro transparente (agora embaciado)
nos apartamentos cada vez mais lúcidos cada vez mais vagos habitam animais silenciosos
mas a recordação foge como fumo esvanece por cima das cabeças é vapor
a celebração da memória camufla as verdades históricas
será verdade que aqueles soldados os primeiros a saltar por cima dos portões de auschwitz não podiam olhar para os corpos filiformes os cadáveres empilhados que não paravam de nascer para além dos limites do olhar para além do vocabulário para além dos gestos das mãos
envolvia-os um sobretudo de frio que não obedecia às leis da física e da química
lá ao fundo uma fábrica desagregava um povo inteiro
era a morte que apertava a mão da europa que tinha apostado nos fascismos
meio século mais tarde gostava de te ver de piquete numa marcha nazi
mas no fundo é melhor deixarmos de nos chatear por qualquer coisa
o homem perecerá de certeza no momento de máximo fulgor
enquanto os poetas e os artistas sem bengala se queixam como sempre despenteados e maltrapilhos à frente de um copo de gin vazio
os jovens (já poucos) reproduzem no papel as ilações mas sem confiar nos pais e nos primos
com dor e compreensão por todos os mortos sem funeral e todos os corpos desfigurados privados do nome
os macacos e os papagaios monocromáticos peneirados por trás das grades do jardim zoológico de periferia
delira o pó levantado pelos touros durante um dia de corrida
enquanto as mãos juntas de uma mãe seguram debilmente as contas do rosário
ao alto seguras no queixo escultural e na altivez do perfil
as objectivas dilaceram o ar numa chuva de pontos de exclamação
e finalmente a lâmina que se espeta para cortar a artéria jugular e separar a cabeça do resto do corpo (já cadáver)
terá de fazer gotejar ainda o último derramamento de sangue enquanto o coração ainda pulsa
o jogo o medo a raiva o instinto a sobrevivência
tensos os músculos e os tendões nos membros ao longo da espinha dorsal
as flores e os beijos cercam o campo de batalha enchem as margens
transbordam e enfiam-se no corpete do toreador até iniciar o seu colapso
nenhuma clínica funciona para o comparsa sacrificado
ainda há guerra e as causas justas de novo excitam a imprensa
grandes discursos escritos nas mesas dos parlamentos
ser obstinadamente inconsoláveis é doença que encurta a vida
o luto é um bordado fino tecido na penumbra






Um poema da vertigem e dos limites físicos e mentais.
«La Repubblica»




por Nuno Travanca

10 outubro 2004

quatro estações #crónicas de outono

exhibitions



pela hora da consulta, a mesma hora a bater nas outras horas. se me perguntam as horas, não sei. sei no entanto que nos consultamos em horários precisos, dizem que biológicos. e todos sabemos que inevitavelmente umas horas batem nas outras. eu não digo que se digam vergonhas umas às outras, digo antes que não sendo violentas vão matando, a torto e a direito. chegou a hora dele, disseram-me o outro dia. eu ainda acordado, perguntava-me por quem seria, e se seria. ele era portanto o morto. e ao morto diz-se que lhe chegou a hora. outros então perguntam-se as horas uns aos outros. compreendem... é normal que as horas batam umas nas outras e que a hora da consulta seja essa mesma hora em que a porta se abre. depois da porta, semicerrada, tal é a dor, vem a bata branca e os senhores musculados com vestuário algo rústico e absolutamente romântico, cheio de fivelas, de amor, de força. pela hora da consulta, já o tempo se tinha ido. permanecia uma cama, muitos géneros multi-raciais e instáveis, que entre barulhos estranhos e acessos de fúria lá me iam dizendo as horas, quando eu não perguntava. um dia visitaram-me homens distintos. sabem, depois de algumas muitas horas paradas com rotinas que se resguardavam a músculo e a grades, tendemos a pensar que realmente estamos no sítio certo e tudo o que nos apareceria naturalmente, como as gravatas esculpidas em pescoços pós-modernos, seguidos de fato, nada mais era do que gente distinta à hora da visita. foram dizendo que apreciavam bastante o meu trabalho e que pretendiam expôr-me a olhares entendidos ou até mesmo desentendidos, mas com bolsos recheados. fizeram-me também acreditar que assinando um papel, tudo iria mudar. assinei, não sei bem se o meu nome ou se uma hora que chegara, mas qualquer uma das duas não me deu de volta a percepção ou a liberdade de movimentos. diz quem sabe, e quem sabe são os senhores musculados, que era hora da minha injecção. nunca tinha levado nenhuma letal. ainda perguntei entredentes que horas eram aquelas, mas deve ter-se passado qualquer coisa com os meus ouvidos porque deixei de ouvir. aliás, não foi a única coisa que deixei de fazer.

nuno travanca