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01 julho 2024

john ashbery / a vida como um livro que se fechou

 



 

Apagámos todas as letras
E a afirmação mantém-se vagamente,
Como uma inscrição sobre a porta de um banco,
Com números romanos difíceis de decifrar,
E que, à sua maneira, talvez digam de mais.
 
Não estávamos a ser surrealistas? E porque é que
No bar estranhos observavam o teu cabelo
E as tuas unhas, como se o corpo
Não procurasse e encontrasse a posição mais confortável,
E a tua cabeça, essa coisa estranha,
Não ficasse cada vez mais problemática de cada vez que alguém fechava a porta?
 
Falámos um com o outro,
Levámos cada coisas só até onde podíamos,
Mas na ordem certa, e assim ela é música,
Ou qualquer coisa como música, falando da distância.
Temos apenas algum saber
E mais que a ambição necessária
Para o transformar num fruto feito de nuvem
Que nos protegerá até desaparecer.
 
Mas o seu sumo é amargo,
Não temos disso nos nossos jardins,
E tu devias subir até onde mora o saber
Com esse sarcasmo desprendido, para aí alguém
Te dizer de vez: não está aqui.
Só fica o fumo,
E o silêncio, e a velhice
Que fomos construindo como uma paisagem,
De alguma maneira, e a paz que bate todos os recordes,
E o cantar no campo, um prazer
Que há-de vir e não nos conhece.
 
 
 
john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992
 




06 outubro 2022

john ashbery / a outra tradição



 

Todos eles vieram, alguns traziam sentimentos
Gravados em t-shirts, anunciando o adiantado
Da hora, e de facto o sol inclinava os seus raios
Por entre ramos de araucária como se
Polidamente tossisse, e todas as ideias assentaram
Num veludo de pó debaixo de árvores quando chuvisca:
Os infindáveis jogos de Scrabble, os apoiantes,
A célebre omelette au Cantal, e no meio de tudo isso
A voragem do tempo mergulhando sem freio pelas comportas
Dos dias, arrastando todos os seus momentos sexuais
Frente às lentes: o fim de alguma coisa.
Só então ergueste os olhos do teu livro,
Incapaz de compreender o que estivera a passar-se ou de
Dizer o que estiveras a ler. Trouxeram-se
Mais cadeiras, e acenderam-se candeeiros, mas nada
Explica como tudo isto começou a materializar-se
À tua frente e as pessoas à espera lá fora e na rua
Seguinte, repetindo-lhe uma e outra vez o nome, até o silêncio
Ascender a meio dos troncos escurecidos,
E a reunião ser dada por iniciada.
                                                            Ainda me lembro
De como te encontraram, após um sonho, de chapéu-dedal,
Absorto como uma borboleta num parque de estacionamento.
O caminho para casa era na altura melhor. Afastando-se, cada um dos
Trovadores tinha algo a dizer sobre o modo como a caridade
Seguira o seu curso e vencera, deixando-te ex-presidente
Do acontecimento, e como, embora muitos dos presentes
Desejassem que isso levasse a alguma coisa, mesmo que a um longínquo
Fio de fumo, nenhum estava tão iludido que aspirasse
A essa fresca não-existência de alguns minutos antes,
Agora que a ideia de uma floresta se pregara
Sobre as minúcias da cena. Achaste isto
Encantador, mas viraste abertamente a cara à noite
Falando para dentro dela como um megafone, sem ouvires
Ou te preocupares, embora estes ainda vivam e sejam generosos
E de todas as maneiras contidos, autorizados a entrar e a sair
Indefinidamente para dentro e para fora da paliçada
Têm imensa dificuldade em lembrar-se, quando o teu esquecimento
Por fim os salva, como uma estrela absorve a noite.
 
 
 
john ashbery
auto-retrato num espelho convexo e outros poemas
tradução antónio m. feijó
relógio d’ água
1995

 


 

09 agosto 2021

john ashbery / algumas árvores

 
 
Estas são notáveis: cada uma
Ligando-se à seguinte, como se a fala
Fosse uma representação imóvel.
Combinando por acaso
 
Encontrar-nos tão distantes esta manhã
Do mundo como concordes
Com ele, tu e eu
Somos de repente o que as árvores tentam
 
Dizer-nos que somos:
Que só o aí estar delas
Significa algo: que em breve
Poderemos tocar-nos, amar, explicar.
 
E contentes por não termos inventado
Um tal decoro, estamos cercados:
Um silêncio já cheio de ruídos,
Uma tela em que emerge
 
Um coro de sorrisos, uma manhã de Inverno.
Postos sob uma luz enigmática, e movendo-se,
Os nossos dias adoptam uma tal reticência
Que estas inflexões parecem a sua própria defesa.
 
 
 
 
john ashbery
auto-retrato num espelho convexo e outros poemas
tradução antónio m. feijó
relógio d’ água
1995

 





11 junho 2015

john ashbery / na quinta do norte



Algures alguém viaja furiosamente ao teu encontro,
A uma velocidade incrível, viajando dia e noite
Por entre nevões e calores do deserto, transpondo torrentes, atravessando desfiladeiros.
Mas saberá ele onde te encontrar?
Reconhecer-te-à quando te vir?
Dar-te-à coisa que tem para ti?

Aqui quase nada cresce,
E contudo os celeiros estão a abarrotar,
As sacas de grão empilhadas até às trevas do tecto.
Os ribeiros correm docemente, engordando o peixe;
Pássaros escurecem o céu. Será que basta
Deixar a malga do leite lá fora à noite,
Pensar nele às vezes,
Às vezes e sempre, com sentimentos confusos?


john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992




18 fevereiro 2015

john ashbery / manual de instruções



     Sentado à janela do edifício
     Quem me dera não ter de escrever o manual de instruções sobre o uso de um
     novo metal.
     Olho para a rua e vejo gente, todos caminhando numa paz interior,
     E invejo-os – estão tão longe de mim!
     nenhum deles tem de se preocupar em entregar a tempo este manual.
     E, como sempre, começo a sonhar, apoiando os cotovelos na secretária e
     debruçando-me um pouco da janela,

     Com a vaga Guadalajara! Cidade de flores da cor das rosas!
     Cidade que mais queria ver e menos vi, no México!
     Mas imagino ver, sob a pressão de ter de redigir o manual de instruções,
     A tua praça pública, cidade, com o pequeno coreto rendilhado!
     A banda toca a Xerazade de Rimsky-Korsakov.
     Em volta, raparigas distribuem flores cor de rosa e de limão,
     Todas atraentes nos seus vestidos de riscas cor-de-rosa e azuis (Oh, aqueles
     tons de rosa e azul!),
     E ali ao pé a pequena barraca branca onde mulheres de verde servem frutas
     verdes e amarelas.
     Os casais desfilam, todos com ar de festa.
     À frente, abrindo o desfile, um janota
     Vestido de azul escuro. Na cabeça pousa-lhe um chapéu branco
     E usa bigode, aparado para esta ocasião.
     A sua querida, a mulher, é jovem e bonita: traz um xaile malva, rosa e branco.
     As chinelas são de verniz, à maneira americana,
     E traz um leque, pois é modesta, e não quer que os outros lhe vejam muitas
     vezes a cara.
     Mas estando todos tão entretidos com as mulheres ou as namoradas
     Duvido que reparassem na mulher do homem de bigode.
     Aí vêm os rapazes! Vêm saltitando e atiram pequenas coisas para o passeio
     De ladrilho cinzento. Um deles, um pouco mais velho, tem um palito nos dentes.
     Está mais calado que os outros, e faz que não repara nas bonitas raparigas de
     branco.
     Mas os amigos reparam, e lançam chalaças às raparigas que riem.
     Em breve, porém, tudo isto acabará, com o aprofundar dos anos,
     E o amor os trará à parada por outras razões.
     Mas perdi de vista o rapazola do palito.
     Espera! Lá está ele, do outro lado do coreto,
     Afastado dos amigos, em conversa séria com uma rapariga
     De catorze ou quinze anos. Tento ouvir o que dizem,
     Mas parece que apenas murmuram qualquer coisa – tímidas palavras de amor,
     provavelmente.
     Ela é um pouco mais alta, e desce o olhar sereno para os seus olhos sinceros.
     Está vestida de branco. A brisa agita-lhe os cabelos pretos, finos e compridos
     contra a face morena.
     É claro que está apaixonada. O rapaz, o do palito, também ele está apaixonado;
     Vê-se-lhe nos olhos. Afasto-me deste par
     E vejo que há um intervalo no concerto.
     Os que desfilaram descansam e bebem por palhinhas
     (As bebidas são servidas dum grande jarro de vidro por uma senhora de azul
     escuro),
     E os músicos misturam-se com eles, nos seus uniformes de um branco-creme, e
     fala.
     Do tempo, talvez, ou de como os miúdos vão bem na escola.


     Aproveitemos esta oportunidade para entrar pé-ante-pé numa das ruas laterais.
     Cá está uma daquelas casas debruadas de verde,
     Tão populares aqui. Olha – eu não te dizia?
     Está fresco e escuro cá dentro, mas no pátio há sol.
     Uma velha, de cinzento, ali sentada, abana-se com um leque de folha de
     palmeira.
     Recebe-nos no pátio e oferece-nos um refresco.
     «O meu filho está na Cidade do México», diz ela. «Também os havia de receber
     bem,
     Se cá estivesse. Mas trabalha lá num banco.
     Olhe, uma fotografia dele.»
     E um rapaz de pele escura e dentes de pérola sorri para nós da moldura de
     couro gasto.
     Agradecemos-lhe a hospitalidade, porque se faz tarde
     E nós precisamos de encontrar um ponto alto para ver bem a cidade, antes de
     partir.
     A torre da igreja serve – aquela ali, de rosa desmaiado, recortada no azul
     violento do céu. Entramos devagar.
     O sacristão, um velho vestido de castanho e cinzento, pergunta-nos há quanto
     tempo estamos na cidade, e se gostamos dela.
     A filha está a esfregar os degraus – acena-nos ao passarmos para a torre.
     Em breve chegamos ao cimo e toda a malha da cidade se estende diante de
     nós.
     Lá está o bairro elegante, de casas pintadas de rosa e branco, com frondosos
     terraços decrépitos.
     Lá está o bairro popular, com casas de azul escuro.
     Lá está o mercado, onde os homens vendem chapéus e enxotam moscas,
     E a biblioteca pública, pintada em vários tons de verde pálido e beige.
     Olha! Lá está a praça onde há pouco estivemos, com os passeantes.
     Já são menos, agora que o dia aqueceu,
     Mas o rapaz e a rapariga continuam escondidos pela sombra do coreto.
     E lá está a casa da senhora velha –
     Continua sentada no pátio a abanar-se.
     Que limitada, e no entanto completa, foi a nossa experiência de Guadalajara!
     Vimos amor de jovens, amor de casados, e o amor de uma mãe idosa pelo filho.
     Provámos as bebidas, ouvimos música e vimos casas coloridas.
     Que mais há a fazer, senão ficar? E isso é que não é possível.
     E enquanto uma última brisa refresca o cimo da velha torre degradada, volto a
     olhar
     Para o manual de instruções que me fez sonhar com Guadalajara.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



08 outubro 2014

john ashbery / e o seu nome é ut pictura poesis




Já não se pode dizer isso assim.
Preocupado com a beleza, tens de
Te expor, sair para uma clareira
E descansar. Tudo o que te acontece de insólito com certeza
Está bem. Pedir mais do que isto seria estranho
Da tua parte, tu que tens tantos amantes,
Pessoas que te admiram e estão dispostas
A fazer coisas por ti, mas tu achas
Que não está certo, que se elas realmente te conhecessem...
Basta de auto-análise. Agora
Quanto ao que vais pôr no teu poema-pintura:
Flores ficam sempre bem, especialmente as esporas.
Nomes de rapazes que um dia conheceste, e os seus trenós,
Foguetes são bons - será que ainda existem?
Há muitas outras coisas, do género
Das que referi. Agora é preciso
Encontrar duas ou três palavras importantes, e muitas outras banais,
Apagadas. Ela propôs-me
Comprar-lhe a secretária. Subitamente a rua era
Uma barafunda e o clangor de instrumentos japoneses.
Havia papelada dispersa pelo chão. A cabeça dele
Enlaçada na minha. Éramos um baloiço sobe-e-desce. Devia
Escrever-se alguma coisa sobre o modo como isto nos
Afecta quando escrevemos poesia:
A extrema austeridade da mente quase vazia
Colidindo com a folhagem densa, à maneira de Rosseau, do seu desejo de comunicar
Qualquer coisa entre duas respirações, nem que se seja só pelos
Outros e pelo seu desejo de te compreender e deixar
Por outros centros de comunicação, para que a compreensão
Possas começar, e ao fazê-lo se desfaça.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992





04 setembro 2014

john ashbery / mas afinal foi a nossa escolha…



4.

Mas afinal foi a nossa escolha que nos incitou aos efeitos da imaginação.
Agora, silenciosamente como quem sobe uma escada, emergimos para a luz
e, ao fazê-lo, privamos o tempo de mais reféns,
Para acabar com a hostilidade que a história há muito tempo iniciou.

Agora, silenciosamente, como quem sobe uma escada, emergimos para a luz,
Mas ela está amortalhada, velada: devemos ter cometido um erro pavoroso.
Para acabar com a hostilidade que a história há muito tempo iniciou
teremos que confiar eternamente, até à perversidade?

Mas ela está amortalhada, velada: devemos ter cometido um erro pavoroso.
Esfregas a testa com uma rosa, recomendando os seus espinhos.
Teremos que confiar eternamente, até à perversidade?
Ao certo, só a noite o sabe; com ela, o segredo está seguro.

Esfregas a testa com uma rosa, recomendando os seus espinhos.
A investigação mostra que as baladas eram produzidas por toda uma sociedade;
ao certo, só a noite o sabe. Com ela, o segredo está seguro:
As pessoas então sabiam o que queriam e como o obter.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992




15 março 2013

john ashbery / andando por aí




Que nome tenho eu para ti?
Decerto não há nome para ti
No sentido em que as estrelas não têm nomes
Que de algum modo lhes servem. Andando por aí,

Um motivo de curiosidade para alguns,
Mas tu estás demasiado preocupado
Com a nódoa secreta do outro lado da tua alma
Para falar muito, e vagueias por aí,

Sorrindo para ti e para os outros.
Chega a ser um tanto solitário,
Mas ao mesmo tempo desanimador,
Contraproducente, quando percebes uma vez mais

Que o caminho mais longo é o mais eficaz,
Aquele que serpenteava por entre as ilhas, e
Parecia que andavas sempre em círculo.
E agora que o fim está perto

Os gomos da viagem abrem-se como um laranja.
Lá dentro há luz, e mistério e sustento.
Anda ver. Vem, não por mim, mas por isso.
Mas se eu ainda lá estiver, concede que nos possamos encontrar.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



07 setembro 2008

john ashbery / eco tardio







sós com a nossa loucura e a flor preferida,
vemos que não há mais nada sobre que escrever.
ou antes, é preciso escrever sobre as mesmas coisas de sempre,
do mesmo modo, repetindo vezes sem conta as mesmas coisas,
para que o amor continue e a pouco e pouco vá mudando.

colmeias e formigas têm de ser eternamente reexaminadas
e a cor do dia aplicada
centenas de vezes e variada do verão para o inverno
para que o seu ritmo desça ao de uma autêntica
sarabanda e ela aí se feche sobre si mesma, viva e em paz.

só nessa altura a crónica desatenção
das nossas vidas nos poderá envolver, conciliadora
e com um olho posto naquelas longas opulentas sombras amareladas
que falam tão fundo para o nosso mal preparado conhecimento
de nós próprios, máquinas falantes dos nossos dias.








john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992.