18 fevereiro 2015

john ashbery / manual de instruções



     Sentado à janela do edifício
     Quem me dera não ter de escrever o manual de instruções sobre o uso de um
     novo metal.
     Olho para a rua e vejo gente, todos caminhando numa paz interior,
     E invejo-os – estão tão longe de mim!
     nenhum deles tem de se preocupar em entregar a tempo este manual.
     E, como sempre, começo a sonhar, apoiando os cotovelos na secretária e
     debruçando-me um pouco da janela,

     Com a vaga Guadalajara! Cidade de flores da cor das rosas!
     Cidade que mais queria ver e menos vi, no México!
     Mas imagino ver, sob a pressão de ter de redigir o manual de instruções,
     A tua praça pública, cidade, com o pequeno coreto rendilhado!
     A banda toca a Xerazade de Rimsky-Korsakov.
     Em volta, raparigas distribuem flores cor de rosa e de limão,
     Todas atraentes nos seus vestidos de riscas cor-de-rosa e azuis (Oh, aqueles
     tons de rosa e azul!),
     E ali ao pé a pequena barraca branca onde mulheres de verde servem frutas
     verdes e amarelas.
     Os casais desfilam, todos com ar de festa.
     À frente, abrindo o desfile, um janota
     Vestido de azul escuro. Na cabeça pousa-lhe um chapéu branco
     E usa bigode, aparado para esta ocasião.
     A sua querida, a mulher, é jovem e bonita: traz um xaile malva, rosa e branco.
     As chinelas são de verniz, à maneira americana,
     E traz um leque, pois é modesta, e não quer que os outros lhe vejam muitas
     vezes a cara.
     Mas estando todos tão entretidos com as mulheres ou as namoradas
     Duvido que reparassem na mulher do homem de bigode.
     Aí vêm os rapazes! Vêm saltitando e atiram pequenas coisas para o passeio
     De ladrilho cinzento. Um deles, um pouco mais velho, tem um palito nos dentes.
     Está mais calado que os outros, e faz que não repara nas bonitas raparigas de
     branco.
     Mas os amigos reparam, e lançam chalaças às raparigas que riem.
     Em breve, porém, tudo isto acabará, com o aprofundar dos anos,
     E o amor os trará à parada por outras razões.
     Mas perdi de vista o rapazola do palito.
     Espera! Lá está ele, do outro lado do coreto,
     Afastado dos amigos, em conversa séria com uma rapariga
     De catorze ou quinze anos. Tento ouvir o que dizem,
     Mas parece que apenas murmuram qualquer coisa – tímidas palavras de amor,
     provavelmente.
     Ela é um pouco mais alta, e desce o olhar sereno para os seus olhos sinceros.
     Está vestida de branco. A brisa agita-lhe os cabelos pretos, finos e compridos
     contra a face morena.
     É claro que está apaixonada. O rapaz, o do palito, também ele está apaixonado;
     Vê-se-lhe nos olhos. Afasto-me deste par
     E vejo que há um intervalo no concerto.
     Os que desfilaram descansam e bebem por palhinhas
     (As bebidas são servidas dum grande jarro de vidro por uma senhora de azul
     escuro),
     E os músicos misturam-se com eles, nos seus uniformes de um branco-creme, e
     fala.
     Do tempo, talvez, ou de como os miúdos vão bem na escola.


     Aproveitemos esta oportunidade para entrar pé-ante-pé numa das ruas laterais.
     Cá está uma daquelas casas debruadas de verde,
     Tão populares aqui. Olha – eu não te dizia?
     Está fresco e escuro cá dentro, mas no pátio há sol.
     Uma velha, de cinzento, ali sentada, abana-se com um leque de folha de
     palmeira.
     Recebe-nos no pátio e oferece-nos um refresco.
     «O meu filho está na Cidade do México», diz ela. «Também os havia de receber
     bem,
     Se cá estivesse. Mas trabalha lá num banco.
     Olhe, uma fotografia dele.»
     E um rapaz de pele escura e dentes de pérola sorri para nós da moldura de
     couro gasto.
     Agradecemos-lhe a hospitalidade, porque se faz tarde
     E nós precisamos de encontrar um ponto alto para ver bem a cidade, antes de
     partir.
     A torre da igreja serve – aquela ali, de rosa desmaiado, recortada no azul
     violento do céu. Entramos devagar.
     O sacristão, um velho vestido de castanho e cinzento, pergunta-nos há quanto
     tempo estamos na cidade, e se gostamos dela.
     A filha está a esfregar os degraus – acena-nos ao passarmos para a torre.
     Em breve chegamos ao cimo e toda a malha da cidade se estende diante de
     nós.
     Lá está o bairro elegante, de casas pintadas de rosa e branco, com frondosos
     terraços decrépitos.
     Lá está o bairro popular, com casas de azul escuro.
     Lá está o mercado, onde os homens vendem chapéus e enxotam moscas,
     E a biblioteca pública, pintada em vários tons de verde pálido e beige.
     Olha! Lá está a praça onde há pouco estivemos, com os passeantes.
     Já são menos, agora que o dia aqueceu,
     Mas o rapaz e a rapariga continuam escondidos pela sombra do coreto.
     E lá está a casa da senhora velha –
     Continua sentada no pátio a abanar-se.
     Que limitada, e no entanto completa, foi a nossa experiência de Guadalajara!
     Vimos amor de jovens, amor de casados, e o amor de uma mãe idosa pelo filho.
     Provámos as bebidas, ouvimos música e vimos casas coloridas.
     Que mais há a fazer, senão ficar? E isso é que não é possível.
     E enquanto uma última brisa refresca o cimo da velha torre degradada, volto a
     olhar
     Para o manual de instruções que me fez sonhar com Guadalajara.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



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