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02 janeiro 2024

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
CCLXXXIX
 
Não procures o encontro com a verdade
porque cercá-la é já nega-la um pouco.
A verdade é vivê-la, não pensá-la
como se te soubesses já de fora.
Se a verdade procuras como gamo
a caçar, com as armas que o costume
te deu, sabe que voltarás sem caça.
Que sabes tu dos usos da verdade?
É fêmea? É macho? Em que fojo dorme?
Onde bebe? Onde pasce? Onde procria?
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021





 

08 novembro 2023

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
I
 
De altos senhores sou escravo. Ordenavam eles
que antes da partida inevitável,
a última, a sem rota ou aventura,
vase, no debuxo perene da palavra,
para os meus, o que na vida fiz
para merecê-la. Eis porque estando o sol
no último compasso e já passada
a casa do escaravelho, o azul estaca
como um potro assustado, e a cerviz dobro
em mais este trabalho e obrigação.
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 


03 julho 2023

joão pedro grabato dias / a arca

  
XII
 
Poderemos então ser simples como
as leis do universo, simples como
o nascer e viver e o morrer
simples como sempre o desejamos
simples como um esperma derramado
dentro ainda da órbita do desejo
simples como um fruto consumido
no perímetro da sede, ou denso mosto
ingurgitado num tempo de riso
logo após o desejo e aquém do tédio.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021





05 dezembro 2022

joão pedro grabato dias / dai ao morto o espaço que merece

 
 
Dai ao morto o espaço que merece, na memória.
Nunca no coração porque ele toma-o todo.
(… as flores de plástico não são talvez as mais belas
mas são por certo mais inocentes e duráveis…)
Dai ao morto o espaço que pretende.
Ele flanca os marcos na nossa estima
e é conveniente não desapontá-lo.
Qualquer pequeno gesto é já o ritual esperado.
Toca a embarcar o rebanho das memórias
a emparelhar toda a emoção diversa
a acasalar as antigas intenções nunca expressas
na grande arca, que, salva ao dilúvio das lágrimas
há-de pairar; parar, poisar, logo, amanhã, depois
quando o luto real começar.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
o morto, ode didátctica 1971
tinta da china
2021





 

31 agosto 2022

joão pedro grabato dias / quero explicar-lhes

 



 
Quero explicar-lhes, Venho a explicar-lhes
a técnica minuciosa de não chorar certas lágrimas
o código das mil pequeninas astúcias serenas
os concretos maneirismos viúvos que resultam nesta
petrificada imobilidade, nesta insónia alheada
de fazer medo aos amigos, a decompor-lhes os mil modos
correctos de hibernar em estátua passante,
desmontar-lhes, preciso, o sangrento teor das rodas
dentadas no indizível terror de aqui estar
de não ver o fim, de temer qualquer fim que seja
dar-vos o controlo total pleno do pânico
mergulhar convosco, amigos, inimigos, ó queridos indiferentes
na engrenagem particularmente ambígua da mágoa
no furor coalhado, represado, nos humores vítreos
deste mecanismo de névoa doce e parada
neste extensíssimo vale de ecos contraditórios
neste punho fechado sobre o grito inevitável
nesta preciosa pérola irisada de nunca mais nunca mais
neste gérmen pequeníssimo, neste átomo, neste
nada de nenhures, nesta ausência de tantos futuros possíveis.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
o morto, ode didátctica 1971
tinta da china
2021