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18 outubro 2024

josé carlos barros / vilar de perdizes

  
 
Vinhas do outro lado da fronteira com a navalha de cortar o pão de centeio atada a uma corrente de prata, um lenço de algodão com cheiro a raparigas
 
e urzes,
  
meia-onça de tabaco, uma guitarra, dois embrulhos com rebuçados para quatro namoradas, um livro de poemas com as folhas por abrir, apenas
  
contrabando de luz e de mundo, como dizias.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020



25 março 2024

josé carlos barros / tantas vezes

 
 
 
Tantas vezes me esperaste em vão
no fundo dos cafés ou numa esquina
da cidade, tantas vezes tantos anos,
que por esses anos eu não entendia
o que esperavas quando me esperavas
quase certa de que nunca chegaria.
Hoje, que já não esperas, sei apenas
que bastava uma promessa tua
igual às minhas doutros dias
para te buscar onde dissesses, mesmo
quase certo de que nunca lá estarias.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020
 



22 dezembro 2023

josé carlos barros / longe de casa

 




 

A Princesa
lava tachos e descasca batatas
das dez e meia às
quatro da tarde
e das seis às onze da noite.
Nos intervalos
varre o chão
e limpa as bancadas
da cozinha. Chega
a nem ter tempo
de usar a coroa.
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018
 



18 agosto 2023

josé carlos barros / poema

 
 
Até à praia vinham do mar alto, às
vezes. Traziam cordas e cigarros, lenços
e perfumes, óculos e usos
tão diferentes. Misturavam tudo nos copos,
dançavam em cima das mesas, partiam
vidros, pediam em voz alta
mais cerveja, música, vinho, tiravam
droga dos bolsos fundos. Tinham sempre
dinheiro para trocar por um corpo, e
depois um corpo para trocar por
dinheiro. Faziam tatuagens nos
braços, atavam os pulsos que
cortavam, contavam segredos até
de manhã. Nunca se cansavam.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020
 



28 janeiro 2023

josé carlos barros / as páginas dos romances

 




 

Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:
 
as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados
 
à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios
 
do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.
 
 
 
josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010






21 agosto 2022

josé carlos barros / como trazer sementes

 
 
Como trazer sementes nos bolsos, olhar
da janela os pássaros nos freixos, adormecer
à tarde. Recordas o corredor quase
escuro, as tábuas da sala, o escano,
o comércio do porto dos desenhos do armário.
No verão, a meio do verão caiavas
a casa. Tantas vezes a memória te preparava ciladas,
escondias as fotografias antigas, deitavas-te
tão cedo. E acordavas cedo, a luz no peitoril,
no quadrado de cal da parede velha.
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018
 



30 maio 2022

josé carlos barros / lídia

 
 
 
Melhor do que o amor é estar aqui sentado
de coração leve, e não ter segredo nenhum
para contar,
e não recordar da vida
mais do que a diluída imagem
de alguns pássaros
voando à procura do outro lado do rio.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020



01 fevereiro 2022

josé carlos barros / os anos

 
 
À janela verás um rosto
de criança
e nem um sorriso terás
no fundo do bolso
para caiar a sua infância
pequena
e sem cuidados.
 
Talvez um pássaro te poise então
no fundo dos cabelos.
 
Mas quando estenderes a mão
 
não haverá um brilho na tarde
e a criança há-de ser
um esqueleto de sombras
a rilhar o riso
com quatro dentes castanhos
sobre uma tábua
onde caíram os anos
fartos de voar.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020




 

21 setembro 2021

josé carlos barros / em segredo

 
 
Mas temos o vinho
e temos as cartas:
essas que uma vez marcámos
em segredo
para que ambos perdêssemos
quando jogássemos
um
contra o
outro.
 
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018

 





06 agosto 2021

josé carlos barros / o vaso de plástico

 


 

trago para dentro de casa o vaso de plástico não
vá passar adriano entre as sombras da noite e
roubá-lo com a erva da fortuna para os
jardins da sua vila em
tivoli
 
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020





 


20 junho 2012

josé carlos barros / os monstros



  

Nos pesadelos
os monstros às vezes temem que os olhemos de frente
que possamos apagar-lhes a sombra
ou acordá-los a meio da tarde
abrindo as portada dos seus refúgios
deixando a luz avassaladora a cobrir-lhes o corpo
a queimar-lhes as pupilas remanescentes
como se fôssemos nós
os monstros
deles.




josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



19 janeiro 2012

josé carlos barros / do que a vida poderia ter sido






Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do inverno em que choveu semanas a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de Abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta de vida que foi.




josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010