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11 agosto 2022

charles simic / III

 
 
Sou o último soldado napoleónico. Quase duzentos anos passados, estou ainda em retirada de Moscovo. A estrada é ladeada por bétulas e a lama chega-me aos joelhos. A mulher com um só olho quer vender-me um frango e eu estou completamente nu.
Os alemães vão para um lado, eu para o outro. Os russos vão ainda para outro e dizem adeus. Comigo tenho um sabre de gala. Uso-o para cortar o cabelo, que está com um metro e vinte.
 
 
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




06 dezembro 2021

charles simic / livro de história

 
 
 
Um miúdo encontrou as suas páginas soltas
Numa rua movimentada
Deixou de jogar à bola
Para correr atrás delas.
 
Elas escaparam-se das suas mãos
Voando como borboletas.
Apenas pôde entrever
Alguns nomes, uma data.
 
Nos arredores o vento
Fê-las subir.
Foram arrastadas sobre o depósito de pneus usados
Em direcção ao rio cinzento,
 
Onde afogam os gatinhos –
E a barcaça desliza,
Aquela que crismaram Vitória
De onde um aleijado acena.
 
 
 
charles simic
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




07 setembro 2021

charles simic / luz de verão

 
 
Gosta de igrejas vazias
À hora azul do amanhecer.
 
As sombras a afastarem-se
Como cortinas de um espectáculo de feira.
 
Os olhos do crucificado
Postos para baixo fixamente
 
Como se visse os pés ensanguentados
Pela primeira vez.
 
 
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





11 fevereiro 2021

charles simic / o maluco

 
 
O mesmo floco de neve
Caiu continuamente do céu cinzento
A tarde toda,
Caía, caía
E levantava-se
Do chão,
Para voltar a cair.
Mas agora, quando a noite veio dar uma volta
Para ver o que se passa,
Mais disfarçada
E cuidadosamente.
 
  
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





31 outubro 2019

charles simic / janeiro



Dedadas de criança
Numa janela gelada
De uma pequena escola.

Um império, li algures,
Mantém-se a si próprio graças
À crueldade nas suas prisões.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










28 agosto 2019

charles simic / a execução



Foi o nascer do sol mais cedo
E o mais tranquilo.
Os pássaros, por razões deles,
Ficaram calados nas árvores
Cujas folhas permaneceram
Quietas o tempo todo
Um número pequeno apenas
Nos ramos mais altos
Salpicados com sangue recente.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







18 junho 2019

charles simic / esta cidade é aceitável




Um pequeno rio, depois uma ponte,
A seguir uma fila de casas brancas
Com relvados bem aparados
E um cão gordo, de pernas arqueadas,
A afastar-se lentamente do passeio
Com um jornal na boca.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







26 fevereiro 2019

charles simic / bar à beira da estrada




As notícias do mundo são sempre velhas.
Nunca nada de novo acontece,
Os inocentes são chacinados
Enquanto um tipo na televisão arranja desculpas

E o barman nos volta a encher os copos
A mão esquerda fechada atrás
Das costas arqueadas, mordida
Por um cão ou segurando um cassetete.

As nossas guerras, parece, não vão bem.
Um senador foi apanhado a tentar engatar
Numa casa de banho num aeroporto
E vêm aí neve e chuva.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018






26 novembro 2018

charles simic / sinbad, o marinheiro



Nas noites escuras de inverno no campo,
Os pobres e os velhos mantêm
Uma única luz acesa nas casas
Fraca e difícil de ver,
Como alguém que tivesse remado no seu barco
Para lá de onde se avista a terra
E baixado os remos
Para descansar e acender um cigarro
Com o mar calmo à volta –
Ou seriam campos na escuridão
Que a neve a cair tornara silenciosos?



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










30 julho 2015

charles simic / adensam-se as nuvens



Parecia o género de vida que queríamos.
Morangos silvestres com natas pela manhã.
Em todos os quartos a luz do sol.
Nós os dois a passear nus na praia.

Certas noites, porém, descobríamo-nos
Incertos do que viria a seguir.
Como actores de um drama num teatro em chamas,
As aves volteando por cima de nós.
Os pinheiros escuros estranhamente quietos,
Todas as pedras em que tropeçávamos
Ensanguentadas pelo sol poente.

E voltávamos para o terraço a beber vinho.
De onde nos vinha este pressentimento de um final infeliz?
Nuvens de aparência quase humana
Adensavam-se no horizonte, mas tudo o resto tão lindo
O ar tão brando e o mar tão manso.

A noite caía subitamente sobre nós, uma noite sem estrelas.
Acendias uma vela, levava-la nua
Para o nosso quarto e apagáva-la depressa com um sopro.
Os pinheiros escuros e os arbustos estranhamente quietos.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2





13 julho 2015

charles simic / história verdadeira



Que não se pode contar em palavras
Como uma mosca no mapa do mundo
Na montra da agência de viagens.

Aquela rua no calor da tarde
Sem ninguém a não ser meu idoso pai
De cabeça encostada ao vidro
Para a ver melhor
Enquanto ela arrasta a sua sombra filiforme
De Nova Iorque até Xangai.

Nem sabe se há-de acordar o amigo,
O barbeiro, que dormita ali ao lado
Com um lenço a tapar-lhe a cara.

  

charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2




21 novembro 2014

charles simic / hotel insónia




Gostava da minha pequena toca,
A janela face a um muro de tijolo
Ao lado havia um piano.
Todos os meses havia umas quantas noites
Em que um velho inválido
Vinha tocar "Meu Paraíso Azul".

Em geral, porém, reinava o silêncio.
Cada quarto com sua aranha de pesado sobretudo
Caçando sua mosca com uma teia
De fumo de cigarro e devaneio
Tão escuro,
Que nem a minha cara via no espelho da barba.

Às cinco da manhã o rumor de pés descalças na escada.
É o "Cigano", que lê a sina
Na loja da esquina, e vai mijar depois de uma noite de amor.
Certa vez, também o soluçar de uma criança.
Tão perto, que por momentos pensei ser eu próprio a soluçar.


  

charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2






28 setembro 2014

charles simic / a cadeira



Em tempos esta cadeira estudou Euclides.

No assento estava o livro dele.
As janelas da escola abertas!
De modo que o vento ia passando as páginas
Sussurrando as gloriosas demonstrações.

O sol pôs-se por trás dos telhados dourados.
Por toda a parte as sombras iam-se alongando.
Mas sobre isso Euclides não disse nada.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2




08 abril 2013

charles simic / primavera




Foi isto que vi - restos de neve no chão,
Três melros a espanejar-se,
E a minha vizinha que sai de casa em combinação
A pôr as camisas do marido a secar.

A aragem da manhã torna-lhe difícil pendurá-las.
Levanta-lhe a roupa bem acima dos joelhos,
Ela teve de parar o que estava a fazer
E deu uma bela gargalhada, enquanto se tapava.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2



22 julho 2012

charles simic / ponta de lápis vermelho


  


Afiaram-te bem aguçado
Com uma lâmina ferrugenta.
Depois uma mão desconhecida
Varreu as aparas Para a palma húmida
E desapareceu de vista.

Repousas agora na secretária
Junto desse documento de ar oficial
Com uma longa lista de nomes.
Cabia-nos a nos imaginar o resto:
O tecto alto com rachas
E manchas de humidade irregulares:
A janela de onde se avistam
Os telhados cobertos de neve.

Um mundo vário e inconcebível
Rodeando de todos os lados
A tua severa presença!
Ponta de lápis vermelho




charles simic
traduzido por josé lima
in diversos nr. 2



24 julho 2006

reflexões





Guerra





O dedo tremente de uma mulher
Vai percorrendo a lista das baixas
No entardecer do primeiro dia de neve.

A casa é fria e a lista longa.

Todos os nossos nomes lá estão.







Charles Simic
Traduzido por José Lima
in Diversos nr. 2