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02 julho 2023

rosa alice branco / amor cão

  
 
                                       Num dia frio de Inverno,
                                             observei a seguinte cena
 
 

A pele renova-se tão pouco
longe dos centros urbanos. O vento
que vem do mar evapora-se nas ruas desertas
onde alguém escreveu o meu nome em sal e escamas,
um pedinte na boca do metro e o cão sentado
como se soubesse que os seus dias são ao desbarato
enquanto o vagabundo esboça umas notas
na garganta cheia de pigarro. Um chapéu com
algumas moedas. Ser dono requer alguma propriedade,
neste caso feita de moedas baratas. É visível
que ambos têm a boca escancarada de outras fomes.
Tudo depende da linha: amarelo, azul, malmequer.
Bem! Nem tudo pode ser azul, ninguém nos prometeu
nomes como «felicidade». Por isso prepara-te
para esta hora em que o metro regressa vazio
sem uma paragem que abrigue as bocas no amor.
 
 
 
rosa alice branco
amor cão
e outras palavras que não adestram
assírio & alvim
2022





26 agosto 2022

rosa alice branco / amor cão

 


 

 

                                         À medida que o crepúsculo se aproxima
                                               o pavor da noite começou a pesar
                                               intensamente em todos os espíritos.
 
 


3
O que amam sem reservas é o dia, o dia límpido.
Visível como uma clareira no seio do medo.
O medo é a antecipação do crepúsculo, da paixão
sofrida até ao amanhecer como uma prece infindável
e que venha o dia.
Que se ele viesse as notas seriam como o vento
na urze e a urze da montanha era do mar
cheia de cores salinas e cheiro quente a terra
e ela vestida de branco como quem espera
o vestido esvoaçando para o espanto do primeiro olhar.
Ela ia querer que todos os olhares fossem assim
mas nada se sabe do dia, tão escuro ainda
que só a morte espreita para lá da fogueira onde o frio
é um cisco que se imiscui na paisagem do medo.
O chegar do dia é um noivado. Mesmo que um predador
mate de revés uns quantos, podem olhá-lo no rosto
antes da rapina, das aves que cegam o buraco da noite.
 
 
 
rosa alice branco
amor cão
e outras palavras que não adestram
assírio & alvim
2022




16 setembro 2020

rosa alice branco / imunidade de grupo


mariana mizarela




À varanda trocavam sorrisos de dever cumprido.
Tiveram enfim tempo de arrumar a casa,
as estantes começaram a ter lógica
na vizinhança dos livros,
o chão da cozinha ficou mais brilhante
do que quando vinha a empregada
de autocarro e a casa era a paragem
durante várias horas de uma vida alheia
com as mãos indo e vindo da na cozinha,
as mesmas mãos que tinham abandonado o filho
horas antes e hão-de chegar horas depois
do sono. As roupas de varão falavam a meros
centímetros das de inverno, o vestuário ganhou
imunidade de grupo quase a 10 por cento
e as pessoas adoeceram aos poucos
com a casa limpa e arrumada para a morte.



rosa alice branco
nervo/9 setembro/dezembro 2020
nervo colectivo de poesia
2020







21 abril 2016

rosa alice branco / os escombros da poesia



Passos apressados estendem as sombras
pelas veredas que as mulheres percorrem
desde a criação. O oriente oferece-lhes
o fósforo iluminado que desenha na terra
a semelhança de caminhos
mas é a ti que a pele do gamo cobre os ombros
e o sacro tirso pende das garras adormecidas.

Sei que chegaste pelo rufar dos tambores
que se confunde com o ondular das pernas
quando invocas a terra, incitas os cães
e o velho poeta abandona os escombros
para vir juntar-se ao vinho da poesia.

Cavafis escreve que deus abandona antonio
nesse mesmo café. Tentas reter a intimidade
que fizeste tua por instantes e se esvai
pela janela orvalhada onde vislumbras a cidade
que te oferece apenas o abismo das ruas
e algum ódio que escorre docemente pelo copo.
Pergunto-me se saberás escolher o chão que te há-de
sulcar os pés, a madeira seca para o sacrifício?
A cabeça do velho é a tocha que te dá alento
quando as portas do café se fecham uma a uma
e o medo inventa o festim da morte
que repetimos tantas vezes
em noites de incompreensível beleza.
A vocação da poesia enrola-se-te nas pernas
como um animal e já nada o distingue de ti,
nem o gamo, a sua pele sacrificada
nos teus ombros onde o ouro que diz o teu nome
é limalha de sombra em voo rasante sobre nada.


rosa alice branco
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015



22 março 2015

rosa alice branco / o aroma da língua



Subimos a rua sob a floresta de plátanos,
o apito do comboio lembra o aroma das árvores
que julgamos sentir
como a tua mão lembra as minhas pernas
e assim todas as coisas acariciadas se parecem
mas não sei onde se passa tudo isto
que se passa connosco.
O próprio sentido de plátano perde-se em mim
pois és tu que soletras a palavra «árvore»
enquanto a rua sobe nos teus passos.

Que faço com as palavras «aqui» e «aí»
por onde vais enquanto a rua caminha?
Por que espaço sem espaço
em que língua impossível
chegamos à palavra «nós»?
Por que magia nos cruzamos no tempo
arrastados por um «aqui» que não pára de dançar,
que não pára. Como?



rosa alice branco
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998