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11 julho 2024

josé miguel silva / o atalante – jean vigo (1934)



 

 
No dia em que fomos ver O Atalante
eu levava, por coincidência, um cubo de gelo
no bolso do casaco. Lembro-me de tremer
um pouco. Até aí, tudo bem. Pior,
foi quando te ouvi pronunciar, distintamente:
quem procura o seu amor debaixo de água,
acaba constipado.
Na altura, ri-me: pensei que galavas do filme.
Sou tão estúpido.
 
 
 
josé miguel silva
movimentos no escuro
relógio d’água
2005




 

18 dezembro 2023

josé miguel silva / nocturno

 




 

A arte já sabemos nasce
da imperfeição das coisas
que trazemos para casa
com o pó da rua
quando a tarde finda
e não temos água quente
para lavar a cabeça.
 
Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a note
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014



09 junho 2023

josé miguel silva / seis

 



 
As lágrimas trazem um cão para dentro de casa.
Numa casa compassiva dá-se valor ao choro,
aceita-se o repto de mais uma boca
para morder. Assim a criança já não vai sozinha
à mercearia. Se quiser bater na professora,
bate no cão, o cão foge
para debaixo de um táxi, a criança
deixa crescer as unhas, arranha
com paciente fúria a magreza dos seus braços e chora,
chora a sua infância morta.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003




22 agosto 2022

josé miguel silva / dois

 
 
Aos sete anos temos sorte, conhecemos a morte
no enterro do vizinho. Cresce o sentido
das responsabilidades. Assim se prepara
a primeira comunhão.
 
Temos agora que cuidar não apenas
dos cadernos e dos lápis mas também
da alma, essa remissa ostra
onde se aloja uma pequena culpa.
 
Torna-se mais longo o caminho para casa
(mas também, confessemos, mais estimulante).
Já não corremos tão depressa com a pesada pasta:
um tropeço qualquer, e lá vem a consciência.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003




26 junho 2022

josé miguel silva / a portuguesa

 
 
De criadores de cabras e de naus a bisonhos
fabricantes de badalos para sinos de betume,
caro Georges, anda ver o meu país de gazeteiros,
entre o pau que vai e vem, infelizes foliões,
de costas para o mar. Anda ver estes Manéis,
dobrados de avidez, os dedos dominados
por volantes suicidas, abolidos entre fados,
manivelas, promoções. À porrada que lhes dão
chamam-lhe futuro, receiam mais os livros
do que a morte dum irmão e é com gosto
que preparam a cabeça para o golpe do carrasco.
Das Marias só te conto a mania do verniz,
os derrames de perfume no altar da pequenez,
a vida cambiada pelo crédito de gritos.
Anda, caro Georges, anda ver e depois diz-me se
o pior da alma humana vem ou não à superfície,
como o lodo, quando séculos de pez e abulia
são bulidos por correntes de paixões bonificadas,
num caseiro leva-e-traz de catilinas ambições,
de paixões inoculadas pelo gosto de morrer
a cada dia um poucochinho.
 
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




24 junho 2021

josé miguel silva / má sorte que ela fosse mercenária

 
 
 
                                         It´s a miracle you’re not cynical.
                                                                                  Felt
 
 
Não era só a bela do bairro, era a lusa Marilyn
dos arrabaldes portuenses. Alta, toda loira,
só lhe faltava miar. De longe e de perto a segui
ao longo dos anos mais tolos. Uma tarde,
no acaso de uma rua: meu amor perdido,
ainda moras em Vilar do Paraíso?
Quando lhe telefonei dias depois
quis perguntar quanto é que eu ganhava.
Ao saber que era tudo lágrimas e livros,
ouvi – ai sim? – como arrefecia o paraíso
do outro lado da linha. Os meus 25 anos
aprenderam aí uma lição qualquer.
Mas já não me lembro muito bem
que aplicação ela teve, na gorada sequência
desses meses. A que só volto, agora,
porque já posso rir-me à vontade.
 
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003





09 fevereiro 2021

josé miguel silva / estela funerária

 
 
Era um rapaz sem vocação para o caminho,
um arco sem arqueiro.
Chamava-se Elpenor.
 
Mais do que a palavra preocupava-o a lama
na sandália do poeta,
a mancha no tapete.
 
Movia-o a coragem de estar só,
divisão dos que celebram
o massacre da esperança.
 
Caiu a sua casa, vendeu as suas veias,
partiu para o desastre,
 chegou à nossa frente.
 
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014





23 junho 2020

josé miguel silva / não sei se são os trinta anos



Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco,
figurava o paraíso como um quarto vazio,
onde o silêncio de um livro ressoava
pela noite dentro. Protegia dos amigos
minhas horas, dos irmãos, dos apelos
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado
de trincheiras, distante de pracetas,
acenos, convites pra jantar.
O lamento era o meu hobby preferido.

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.



josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014





27 março 2019

josé miguel silva / mudar de casa



Para a Renata Botelho



É bom mudar de casa, de janela,
arrumar de outra maneira as ilusões,
tratar de coisas parvas como tintas
e sofás, pôr ordem entre os livros
e a vida, simular a liberdade.

Parece-nos possível voltar a acreditar
na mão que nos estende um pé de salsa,
na pechincha da beleza quando passa
no poente da razão.

Apetece cometer uma loucura,
comprar um telescópio, decorar
o canto nono dos Lusíadas,
subir uma escada do avesso,
pensar que nunca mais teremos frio.


josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014






16 novembro 2016

josé miguel silva / queixas dum utente




Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo, ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.


josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014



23 outubro 2015

josé miguel silva / homem do lixo



O último a chegar à festa tem
como castigo varrer o lixo,
o subproduto da embriaguez
organizada. Não é justo nem
injusto, é a lei dos retardatários.

A essa hora já os gastos foliões
mergulham no sono que se segue
a toda a felicidade, cientes
de que irão acordar ressacados
mas contentes por terem feito tudo
o que era humanamente possível
para se divertirem uma última vez.

Sozinho no recinto, o retardatário
dança com a sua vassoura,
recolhe sobriamente os detritos
da exaltação – preservativos,
cartazes, garrafas vazias –  
e consola-se com a mentira
de ter sido poupado à desilusão.

Findo o trabalho, tem ainda tempo
para se apiedar dos vindouros,
que da festa não terão sequer notícia,
que nunca poderão participar
sequer remotamente em algo
tão aparentado com a esperança.



josé miguel silva
ladrador
averno
2012




19 agosto 2014

josé miguel silva / ítaca



A salsa, o lúcio não têm pressa
e o fio de azeite aprende a esperar.
Cada dia que passa, não sei como é
- jantamos mais tarde. Precisa uma casa
de ter quem a viva, quem reze por ela,
por isso te espero de roupa no chão,
sem nada vestido debaixo da pele.


Abrimos a água, enxugo-te o rosto
podemos agora deixar de mentir.
Só com o corpo, relógio parado,
deixámos o mundo a rugir no escuro.
Urtiga nenhuma nos vai separar.
Ouvimos o sulco da garra na porta
e rimo-nos baixo. Não sei como é
- cada dia que passa jantamos mais tarde.



josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




09 julho 2014

josé miguel silva / passagem



Em Segóvia há uma praça,
na praça uma varanda, na varanda
o rasto de ninguém.

Mas tens uma cadeira no café,
abundante chá de tília,
a certeza de que dentro duma hora
vai abrir-se para ti
a livraria da esquina.

É pouco mas sossega,
sob o bolso da camisa,
o motim do coração.




josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




07 maio 2014

josé miguel silva / too big to fail



Como pode um investimento tão fiável
garantir este rendimento crescente, numa
diária distribuição de beijos e outras mais-
-valias, ainda por cima livres de impostos?

Embora confiasse na tua competência
para criar valor, confesso que não esperava
tanto quando decidi aplicar nos teus títulos
sensíveis os meus parcos activos emocionais.

O mais estranho, no mundo actual, é ser este
um negócio sem perdedores, aparentemente
imune ao nervosismo das tuas acções
ou às flutuações do meu comércio libidinal.

O meu único receio é que despertemos
a inveja dos deuses, no Olimpo de Bruxelas,
e que Mercado, o monstruoso titã, decida
baixar para lixo o rating da nossa relação,

deixando-nos sem crédito na praça romanesca
e em default o coração. Mas não sejamos
pessimistas. Aliás, ambos sabemos que Cupido
nos ampara com sua mão invisível. E mesmo

que entrássemos ambos em depressão, tenho
a certeza de que o Estado português nos daria
todo o apoio, concordando que um amor como
este é simplesmente demasiado grande para falir.



josé miguel silva
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012




17 abril 2014

josé miguel silva / esconde-esconde




A nossa vida, libertada, pode agora
começar, dissemos, com o optimismo
de quem inaugura um abrigo decente
e se pretende a salvo das cargas
do mundo. A salvo? Lá mais para
diante se verá que não é bem assim.
Mas por enquanto não pensemos nisso.
Apreciemos a herança de cada tarde,
quando o oiro do crepúsculo acumula
sentimento sobre muros tão perfeitos
que podiam estar no British Museum
e nenhuma convulsão nos prende a vista.

  

josé miguel silva
serém, 24 de março
averno
2011




04 outubro 2013

josé miguel silva / a caminho do fogão



Adoro essa paixão absurda que tens por Hitchcock,
o ar despenteado com que chegas a casa e me dizes:
outra vez sopa de nabos; adoro a impaciência com
que me arrancas aos diálogos com o nada, quando
me contas os teus feitos na república do frio; adoro
a tua insónia, os teus escrúpulos morais, a tua esponja
de banho, o teu espírito lavado por agudos desenganos;
outrossim acompanhar-te nas perguntas sublinhadas
pelo tempo, e o teu corpo possuído pela mágica
da música amorosa, quando dança seminu à minha
frente e eu só penso: que bem feito está o mundo.



josé miguel silva
serém, 24 de março
averno
2011




21 maio 2013

josé miguel silva / catorze


  
A alma dum rapaz é naturalmente
fascista. Não se deixa levar
pelo brado da justiça. Conhece bem
as pedras e a força que as anima.
Sabe a que distância um insulto fere bem.
Não precisa de estudar o ADN, a lei
do mais feroz. Esmurra quem lhe foge,
conjuga sempre os verbos no presente,
acende numa sarça o cigarro inicial.




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003


07 março 2013

josé miguel silva / memórias escolhidas




Se houvesse um campeonato regional
de solidão, eu teria conquistado,
nesse biénio, a medalha de bronze.
Se não acreditam, perguntem aos meus versos.

Enfrentava com graça, nesse tempo,
as temperaturas mais baixas, desde que
 tivesse à mão as páginas de um livro
a cujo discurso arrancava palavras

para aquecer os dedos. Lia toda a noite
com os olhos acesos e quanto mais lia
menos percebia o que havia de querer.
Quem tinha razão era a minha alma: ler muito alto

dá conta da vida, deixamos de saber
apertar os cordões ou o que fazer com as mãos
quando vemos os minutos a cerrar fileiras
e ninguém para cobrir a nossa retirada.




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003


09 outubro 2012

josé miguel silva / para agradar a uma sombra


  

                              Isn ‘t it just like love?
                                        The Psychedelic Furs



Agora que já chorei o meu papel de solitário
posso virar a folha e declarar que, na verdade,
eu nunca estive sozinho. Tive sempre a boa companhia
da minha sombra. E não posso dizer
que nos déssemos mal: uns dias pior, outros pior.
Como todos os casais. Tínhamos (e temos)
a mesma idade, os mesmos gostos musicais,
um amor paralelo por fogo de lenha,
líamos os livros a meias, quase não gastávamos
nenhum oxigénio.

Dos dois era ela quem insistia, às vezes,
para irmos dançar. Mas eu, é claro, detestava
o tremedal das discotecas; amava mais depressa
o movimento descritivo dos romances
do que a Iuz hipotecada de um corpo distante.
Com o tempo, no entanto, foi crescendo esse litígio.
As nossas relações foram perdendo vulto
à medida que ela convidava mais gente
para a nossa cama. Até que um dia chegou a casa
e apresentou-me “o amor da nossa vida; agora
somos três”. E assim a minha sombra,
a minha ingrata começou a dizer coisas Iacerantes.
Por exemplo: “Vai tu ao cinema. Nós ficamos.”
Ou então: “Bem podemos, de vez em quando,
caminhar separados, ou não achas?” E fecha-se
no quarto com a outra, em colóquios ofegantes.
Altura em que, de raiva, saio porta fora.

Uma vida a três é talvez menos longa do que uma vida
a dois. Há um milímetro agora de distância entre mim
e a sombra. O espaço bastante para um raio de luz.
Não ficamos, realmente, pior do que estávamos.
Mas chega a ser enjoativo ver o trevo cor-de-rosa
que semeiam no quintal, felizes como duas estrelinhas
de cinema. Nem sei o que diga. Parecem crianças.




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003



21 junho 2012

josé miguel silva / vista para um pátio doze





E de repente era São João, era um bom sinal.
Caíam-nos na testa as primeiras ameixas.
Nem as mães interrompiam os mais vivos
desafios nas areias do Douro.
(Que raiva me dava não poder atravessá-lo
com os braços num raminho,
juntar aos mais audazes a minha timidez,
cuspir para o céu quando passávamos todos
à minha porta.)




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003