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04 maio 2023

jorge de sousa braga / montanhas

 
 
1.
Quando uma montanha se apaixona tudo pode acontecer… Começar aos saltos ou então ficar para ali deitada a olhar as nuvens. Convém por isso não a escalar nesses dias e sobretudo não beber da água das suas nascentes.
 
2.
As montanhas apaixonam-se com frequência. Vestem-se de branco. De verde ou azul. Por vezes abrem as pálpebras. E a lava da sua paixão corre-lhe pelas faldas.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



17 janeiro 2023

jorge de sousa braga / plano para salvar veneza

 



 
O meu século não chegou a andar de gatas. Com oito anos já se arrastava pelas minas de carvão, pouco tempo depois combatia nas trincheiras. E as únicas lágrimas que lhe vi chorar foram as dos gases lacrimogéneos.
 
Picasso morreu antes que pudesse levar a cabo o seu sonho, um único fresco que ocupasse não a abóbada da Capela Sixtina mas a abóbada celeste.
 
Fernando Pessoa morrera muitos anos antes numa clínica lisboeta completamente ignorado, depois de ter colocado um padrão com a cruz das quinas num dos areais de areia mais fina do universo.
 
Talvez o meu século seja uma comédia banal, embora filmada por homens de talento, onde algumas estrelas se passeiam com tanto à vontade como se fosse na Via Láctea e de que a generalidade dos participantes desconhece o argumento.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



23 agosto 2022

jorge de sousa braga / memória de luís vaz de camões

 
 
Na autoestrada do norte, de jeans coçadas e óculos escuros, uma longa trança sobre os ombros, rumo às florestas de abetos, a mochila cheia de coisas esquisitas, pássaros mortos, malmequeres de plástico.
 
Na autoestrada do norte, a camisa ainda molhada do naufrágio, a pequena empregada da boutique desaparecendo para sempre nas águas do Índico.
 
Na autoestrada do norte completamente pedrado.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991




14 julho 2021

jorge de sousa braga / grande porto: flashes

  
O arco-íris que ontem se desenhava sobre o rio apresentava uma cor a menos: o verde. Após uma rápida investigação resolveu-se o mistério. Uma vaca fora surpreendida a pastar no arco-íris.
 
De manhã um som aterrador acordou a cidade. Era um Boeing que ensaiava com a cria – um biplano implume – as primeiras acrobacias aéreas.
 
Um homem passeara-se nu pela cidade com uma rosa na mão. Inquiridas pelo juiz as testemunhas revelaram-se incapazes de identificar a cor da rosa.
 
Funcionários públicos começaram à hora do almoço a invadir os jardins da cidade. As primeiras vítimas da sua voracidade foram as rosas. Pequenas escaramuças têm-se sucedido agora na disputa de um simples amor perfeito. Reunido de emergência o executivo camarário decidiu aumentar substancialmente as verbas destinadas aos jardins.
 
Na reunião da comissão de moradores de um dos bairros da zona oriental da cidade foi votada por unanimidade a substituição dos candeeiros de iluminação pública por pirilampos.
 
 
 
 
 
jorge de sousa braga
hífen 7 abril, 1992
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992




 

27 junho 2021

jorge de sousa braga / a ferida aberta

 
 
Há uma ferida aberta que
Sangra ciclicamente  um
 
Cíclame que floresce às
Horas mais inapropriadas
 
Quem me dera poder guardar
Todos esses milhões de flores
 
Que acabam diariamente em
Pensos higiénicos nos contentores
 
 
jorge de sousa braga
a ferida aberta
assírio & alvim
2001





11 abril 2020

jorge de sousa braga / ao relento



Para encherem a noite, os grilos não precisam mais que
De uma lura. Mesmo no cativeiro continuam a cantar.

Para o homem, momentos há – e é doloroso reconhe-
cê-lo – em que até o universo é uma prisão.


  

jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991










29 maio 2017

jorge de sousa braga / poema de amor




Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
                    te coubesse no dedo.





jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991





15 agosto 2016

jorge de sousa braga / esse verão



Vinha meio nu
Trazia uma cesta de vime cheia de amoras
que colhera nas margens do rio
Passara a tarde toda de silvado em silvado
Na sua mão direita um pequeno arranhão
 – Tão quente tão quente
esse verão

  

jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991




12 maio 2015

jorge de sousa braga / na corrente



Há quem diga que a noite é um rio - subterrâneo - que
nasce e desagua em pleno dia. Ou será o dia um rio  que
nasce e desagua em plena noite? Ou talvez a noite e o
dia sejam o mesmo rio que não nasce nem desagua.
Corre apenas. Através de nós.



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991







26 janeiro 2015

jorge de sousa braga / portugal



    Portugal
    Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
    oitocentos
    Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
    África
    só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
    e nunca mais voltasse
    Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
    que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
    e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
    Portugal
    Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
    (que os meus egrégios avós me perdoem)
    Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
    Anda na consulta externa do Júlio de Matos
    Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
    aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
    rosas
    Portugal
    Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
    Império
    mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
    Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
    das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
    Portugal
    Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
    Sabes
    Estou loucamente apaixonado por ti
    Pergunto a mim mesmo
    Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
    mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentugal
    e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
    Portugal estás a ouvir-me?
    Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
    de ressentimentos
    um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
    Portugal
    Sabes de que cor são os meus olhos?
    São castanhos como os da minha mãe
    Portugal
    gostava de te beijar muito apaixonadamente
    na boca



    jorge de sousa braga






23 outubro 2014

jorge de sousa braga / o frigorífico branco



O frigorífico estava vazio
Apesar desse aspecto desolador
foi ao mercado
e com todo o dinheiro que lhe restava
comprou um enorme ramos de junquilhos



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991





01 julho 2013

jorge de sousa braga / passara quarenta anos


  
Passara quarenta anos de binóculos assestados, a seguir
as migrações das aves  e a tomar  estranhos apontamen-
tos num caderno.  A  última vez  que  foi  visto  voava  a
meia altura em direcção ao sul.



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991



02 abril 2013

jorge de sousa braga / morte em veneza




De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste

ou de beleza



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991


24 agosto 2012

jorge de sousa braga / hidrologia


  


Nem em todas as montanhas nasce um rio
nem todos os rios vão desaguar
ao coração enorme e sedento
dum poeta




jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991