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14 dezembro 2023

henri michaux / a estátua e eu

 
 
 
Nos meus tempos mortos, ensino uma estátua a andar. Dada a sua imobilidade exageradamente prolongada, não é nada fácil. Nem para ela. Nem para mim. Dou-me conta de que uma grande distância nos separa. Não sou tão imbecil que não me dê conta disso.
 
Mas não se pode ter todas as boas no nosso jogo. Ou então, adiante.
 
O que interessa é que o seu primeiro passo seja bom. Para ela, tudo reside nesse primeiro passo. Bem sei. Sei disso muito bem. Daí a minha angústia. Por conseguinte, aplico-me. Aplico-me como jamais o fiz.
 
Coloco-me junto dela de modo rigorosamente paralelo: o pé, como ela, levantado e rígido tal estaca enterrada na terra.
 
Porém nunca é exactamente igual. Ou o pé, ou a curva, ou o porte, ou o estilo, há sempre qualquer coisa que falha e o tão esperado arranque não pode ter lugar.
 
É por isso que cheguei a um estado em que eu próprio já quase não consigo andar, tomado de uma rigidez, todavia toda feita de impulso, e o meu corpo fascinado faz-me medo e já não me leva a parte nenhuma.
 
 
 
henri michaux
aparições (1946)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 


03 dezembro 2022

henri michaux / o capataz

 



 

 
«Enquanto eles sofrem o último suplício, eu equilibro-me no trapézio. Porquê? Não sei. Uma exuberância voltejante, uma exaltação, o júbilo que enfim me faz suportar o coração no meu peito, a sua carícia como um novo toque, enquanto ele bate em sístoles profundas, meditadas, que me mantêm alerta e arquejante sob a ameaça.»
 
«E giro, giro infatigavelmente à volta da barra, fingindo, como posso, com os meus pobres meios, ser o astro que gravita imperturbável na noite dos séculos.»
 
 
 
henri michaux
liberdade de acção (1945)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 




01 dezembro 2021

henri michaux / a simplicidade

 
 
O que sobretudo tem faltado à minha vida até agora é a simplicidade. Começo a mudar a pouco e pouco.
 
Por exemplo, actualmente saio sempre de casa com a minha cama e, quando uma mulher me apetece, agarro nela e deito-me com ela imediatamente.
 
Se tem as orelhas ou o nariz grandes e feios, tiro-lhos, justamente com as roupas e meto-os debaixo da cama, para ela os poder recuperar à saída; só conservo o que me apetece.
 
Se a sua roupa interior está a precisar de ser mudada, mudo-a imediatamente. Será a minha prenda. No entanto, se vejo uma outra mulher mais apetecível a passar, peço desculpas à primeira e suprimo-a imediatamente.
 
As pessoas que me conhecem garantem que eu não sou capaz de fazer o que estou a dizer, que não tenho temperamento para isso. Eu também achava que não, mas isso era porque eu não fazia tudo como me apetecia.
 
Agora, tenho sempre belas tardes. (De manhã, trabalho.)
 
 
 
henri michaux
as minhas propriedades (1929)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999




 

13 janeiro 2021

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

 
 
1
 
Nós aqui, diz ela, só temos um sol por mês, e por pouco tempo. Esfregamos os olhos com vários dias de antecedência. Mas em vão. Tempo inexorável. O sol só chega à sua hora.
 
Depois, temos uma data de coisas a fazer, enquanto dura a claridade, apesar de mal termos tempo para nos olharmos um pouco.
 
O que nos aborrece na noite é quando é preciso trabalhar, e é preciso: nascem anões constantemente.
 
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999




 

08 novembro 2018

henri michaux / nós dois ainda




Música do fogo, tu não soubeste tocar.
Lançaste sobre a minha casa um pano negro. O que é este opaco em toda a parte? É o opaco que tapou o meu céu. O que é este silêncio em toda a parte? É o silêncio que calou o meu canto.



henri michaux 
moriturus e outros textos
tradução de rui caeiro
língua morta
2018












26 junho 2018

henri michaux / morte de um pássaro




Tinha cores magníficas: era um carpinteiro.
Alvejei-o.
Ele pareceu hesitar, depois tombou sobre uma grande
                                                     folha de palmeira.
Agarrei-o. Era assim: ouro, negro, vermelho.
Apalpei-o, estendi-lhe as asa, examinei-o longa e minu-
                                          ciosamente. Estava intacto.
Deve ter morrido de comoção.



henri michaux
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997


11 maio 2017

henri michaux / à distância




Mantém-te à distância, tu aí
à distância
à distância

sem poderes lançar até aqui a longa lança telefónica

à distância

neutralizado
paralisado

Que o meu nome se apague em ti
que as minhas feições se toldem em ti
que a minha pessoa se esquive em ti

em ti, chamando, desvairada
chamando quem não se vê
chamando números errados
números impossíveis
números que nunca respondem
que não respondem a nada
que já não existem
números em bairros abandonados
a chamar sem parança, louca
como a dor duma perna partida num descarrilamento
chama, chama debaixo do eixo que a esmaga
que lhe parou mesmo em cima
e tu também aí mesmo parada

longe de mim

longe de mim que respiro aqui um ar perfeito
um ar repleto de poeira
mas tão puro para os meus pulmões aliviados
fora de alcance
fora de alcance dos pregos dos teus dedos
dos pregos dos teus desígnios sobre mim

Que o mal entre em ti, massa idiota
chama avinhada

Que o mal entre em ti
agitada de fumo
espalhando clamores
derrubada por búfalos!

Brasa sobre a tua boca ávida
brasa sobre as tuas cartas tontas
de grandes hastes, grandes adeuses, enormes lenços!

Polvo sobre os teus seios excessivamente pesados
anfractuosidade sobre a tua face
rijo martelo sobre os teus dedos frios
rijo martelo sobre o teu caminhar horripilante
de cem faces, de cem ratoeiras, de cem pequenos
                                                                         fragores!

Máquinas sobre ti
de devastar
de despedaçar
de esticar
de abater
de enlouquecer


máquinas incoercíveis, incansáveis
capazes de matar à pancada a mais enfadonha!

Tonéis rolantes sobre a tua fronte para deixares de dormir
desabamentos e obras debaixo da tua fronte para deixares de
                                                                                        dormir
formigas papa-léguas, desassossegos, desassossegos
carros de Lilipute sob a tua fronte para deixares de
                                                                                         dormir
funda que volteia, arco tenso aos teus ouvidos
para deixares de ouvir!

Uivos no teu pescoço
uivos sobre os sonhos que te aplaudem
sobre os alarves que tu espantas
sobre a tua memória a arruinar-se
sobre o regalo do teu eu amimado!

Que os estropiados te tomem por passeio
que os babuínos roedores de ramos te tomem por
                                                                coqueiro
que a tua interminável língua
que ficou ainda mais longa imensamente esticada
sirva de correia de transmissão nas fábricas
sirva nas gruas a içar contentores
sirva no porto para lingar cubas e pipas!

Traineira aloucada
mãe de anões
riso de marujos

à distância
à distância
à distância!

À distância sobes montes sem fim
cais numa floresta de cordas
és levada por um onagro
por um rebanho de bisontes
por um rinoceronte furioso
por seja o que for
seja lá o quê
seja lá quem for

passando do mundo da paixão para o mundo do horror
da infecção
da putrefacção
da dissociação

por viuvez
por obstrução
por glaciação

por tremor indefinidamente repetido

à distância
à distância
à distância





henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999







29 dezembro 2016

henri michaux / palhaço



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999





17 fevereiro 2016

henri michaux / levai-me



Levai-me numa caravela,
Numa antiga e amena caravela,
Na proa, ou se quiserem, na espuma,
E abandonai-me, lá longe, longe.

Na união a um outro tempo.
No veludo ilusório da neve.
No bafo de alguns cães à volta.
Na extenuada turba das folhas mortas.

Levai-me sem me quebrar, nos beijos,
Nos peitos que se solevam e respiram,
Nos tapetes das palmas das mãos, no sorriso,
Nos renques das articulações e dos ossos longos.

Levai-me, ou antes: ocultai-me, ocultai-me.


henri michaux
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



17 agosto 2015

henri michaux / palhaço



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...


  

henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999




16 abril 2015

henri michaux / imensa voz



Imensa voz
que bebe
que bebe

Imensas vozes que bebem
que bebem
que bebem

Rio-me, rio-me sozinho nas outras
nas outras
nas outras barbas
Rio-me, tenho o canhão que ri
o corpo em forma de canhão
eu, eu tenho, eu sou

noutro lado!
noutro lado!
noutro lado!

Uma brecha, que importa?
uma ratazana, que importa?
uma aranha?

Por ser mau agricultor perdi o meu pai
não, não tragam luz
perdi-o portanto

O comando extinguiu-se
apagou-se a voz. Pelo menos mais abafada
Vinte anos depois, novamente, que ouço eu?

Imensa voz que bebe as nossas vozes
Imenso pai reconstruído gigante
pelo cuidado, pela incúria dos acontecimentos

Imenso Tecto que nos cobre os bosques
as alegrias
que cobre gatos e ratos

Imensa cruz que nos amaldiçoa as jangadas
que nos verga os espíritos
que nos prepara os túmulos

Imensa voz para nada
para o sudário
para nos desabar as colunas

Imenso «deve» «dever»
dever dever dever
Imensa imperiosa rigidez.

Com uma grandeza fingida
imenso acontecimento
que nos gela

Será que nascemos para sermos a ganga?
Será que nascemos, de dedos partidos, para dar
toda uma vida a um falso problema?

a não sei quê para não sei quem
a um não sei quem para um não sei quê
sempre em direcção a mais frio?

Basta! Aqui não se canta
Não terás a minha voz, grande voz
Não terás a minha voz, grande voz

Passarás sem ela, grande voz
Também tu passarás
Tu passarás, grande voz.



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999




05 dezembro 2014

henri michaux / na noite



Na noite
Na noite
Eu uni-me à noite
À noite sem limites
À noite.

Minha, bela, minha.

Noite
Noite de nascimento
Que me enche do meu grito
Das minhas espigas.
Tu que me invades
Que marulhas, marulhas
Que marulhas a toda a volta
E fumegas, és tão densa
E muges
És a noite.
Noite que jaz, noite implacável.
E a sua fanfarra, e a sua praia
A sua praia ao alto, a sua praia em toda a parte
A sua praia bebe, a sua lei é rei, e tudo se enleia sob ela
Sob ela, sob mais fino que um fio
Sob a noite
A Noite.


henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999





02 novembro 2014

henri michaux / mãos eleitas


                              Para Micheline Phan-Kim


Após meditação
nasceria uma mão
serena
aliviando o oprimido
reforçando o sábio
desprendendo o prostrado
portadora
reparadora
uma grande mão de LUZ
. . .

Numa outra vida
numa outra vista
num outro vazio
sem idade, sem rugas
calma, indulgente, afastando o mal, as peregrinações
as recriminações
. . .

Uma mão solta
surgiria
que teria vivido à parte
numa fonte
numa água lustral
cravada no Ser

extirpando todo o estigma

Uma mão imaculada mostraria a Via
pura como é azul o céu azul
azul sem angústia
não o azul onde a cor preta começa
sem deixar lugar a dúvida nenhuma
eliminando, anulando o charco dos espectros
saído das entranhas
que põe a oscilar a base . . .

Mão de Azul que anula a mão tântrica



henri michaux
o retiro pelo risco
chemins cherchés chemins perdus transgressions.
tradução júlio henriques
fenda
1999