Mantém-te à distância, tu aí
à distância
à distância
sem poderes lançar até aqui a longa lança telefónica
à distância
neutralizado
paralisado
Que o meu nome se apague em ti
que as minhas feições se toldem em ti
que a minha pessoa se esquive em ti
em ti, chamando, desvairada
chamando quem não se vê
chamando números errados
números impossíveis
números que nunca respondem
que não respondem a nada
que já não existem
números em bairros abandonados
a chamar sem parança, louca
como a dor duma perna partida num descarrilamento
chama, chama debaixo do eixo que a esmaga
que lhe parou mesmo em cima
e tu também aí mesmo parada
longe de mim
longe de mim que respiro aqui um ar perfeito
um ar repleto de poeira
mas tão puro para os meus pulmões aliviados
fora de alcance
fora de alcance dos pregos dos teus dedos
dos pregos dos teus desígnios sobre mim
Que o mal entre em ti, massa idiota
chama avinhada
Que o mal entre em ti
agitada de fumo
espalhando clamores
derrubada por búfalos!
Brasa sobre a tua boca ávida
brasa sobre as tuas cartas tontas
de grandes hastes, grandes adeuses, enormes lenços!
Polvo sobre os teus seios excessivamente pesados
anfractuosidade sobre a tua face
rijo martelo sobre os teus dedos frios
rijo martelo sobre o teu caminhar horripilante
de cem faces, de cem ratoeiras, de cem pequenos
fragores!
Máquinas sobre ti
de devastar
de despedaçar
de esticar
de abater
de enlouquecer
máquinas incoercíveis, incansáveis
capazes de matar à pancada a mais enfadonha!
Tonéis rolantes sobre a tua fronte para deixares de dormir
desabamentos e obras debaixo da tua fronte para deixares de
dormir
formigas papa-léguas, desassossegos, desassossegos
carros de Lilipute sob a tua fronte para deixares de
dormir
funda que volteia, arco tenso aos teus ouvidos
para deixares de ouvir!
Uivos no teu pescoço
uivos sobre os sonhos que te aplaudem
sobre os alarves que tu espantas
sobre a tua memória a arruinar-se
sobre o regalo do teu eu amimado!
Que os estropiados te tomem por passeio
que os babuínos roedores de ramos te tomem por
coqueiro
que a tua interminável língua
que ficou ainda mais longa imensamente esticada
sirva de correia de transmissão nas fábricas
sirva nas gruas a içar contentores
sirva no porto para lingar cubas e pipas!
Traineira aloucada
mãe de anões
riso de marujos
à distância
à distância
à distância!
À distância sobes montes sem fim
cais numa floresta de cordas
és levada por um onagro
por um rebanho de bisontes
por um rinoceronte furioso
por seja o que for
seja lá o quê
seja lá quem for
passando do mundo da paixão para o mundo do horror
da infecção
da putrefacção
da dissociação
por viuvez
por obstrução
por glaciação
por tremor indefinidamente repetido
à distância
à distância
à distância
henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999
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