A história nega as coisas certas. Há períodos de
ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As
decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do
espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.
Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas
ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!
Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão
prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em
sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que
acreditaram neles. Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados,
deuses-bichos dos selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de
egípcios, claras divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol
e da emoção, Jesus senhor da consequência e da caridade, critérios vários do
mesmo Cristo, santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na
marcha fúnebre (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás
deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os
piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos
sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a
Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco
para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por
mendigos.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982
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