A miséria da minha condição não é estorvada por
estas palavras conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e
meditado. Sobrevivo nulo no fundo de toda a expressão, como um pó indissolúvel
no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha literatura como
escrevo os meus lançamentos — com cuidado e indiferença. Ante o vasto céu
estrelado e o enigma de muitas almas, a noite do abismo incógnito e o choro de
nada se compreender — ante tudo isto ó que escrevo no caixa auxiliar e o que
escrevo neste papel da alma são coisas igualmente restritas à Rua dos
Douradores, muito pouco aos grandes espaços milionários do universo.
Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que
o sonho seja lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com
princesas mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo o que
sabemos é uma impressão nossa, e tudo o que somos e uma impressão alheia,
melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nossos próprios
espectadores activos, nossos deuses por licença da Câmara.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982
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