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05 abril 2023

sharon olds / a mãe

 
 
No alheado silêncio que se segue ao banho,
quente na toalha branca de leite, o meu filho
anuncia que eu não o hei-de amar quando morta
porque as pessoas não são capazes de pensar quando mortas. Começo
por não ser capaz de pensar – não o amar? O ar de fora
da janela é todo preto, a velha espigueta
começou já a perder as folhas…
aperto-o contra mim, branco como uma bóia
e a minha morte como água negra emerge
velozmente no quarto. Digo-lhe que o amava
antes de ele ter nascido. Não lhe digo
ai de mim se o não amar depois de
morta, sendo afinal a necessidade
a mãe do engenho.
 
 
 
sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004
 



17 setembro 2022

sharon olds / monarcas



 
Toda a manhã, eu sentada a pensar em ti,
as Monarcas têm passado. Sete andares acima,
à esquerda do rio, dirigem-se para
sul, as suas asas vermelho-escuras como
as tuas mãos de talhante, as veias
estampadas das suas asas como as tuas cicatrizes.
Mal conseguia sentir as tuas palmas rudes enormes
sobre mim, tão leve era o teu toque,
algo delicado, gretado, que arranhava tal pata de insecto
sobre o meu peito. Nunca ninguém
me tocara antes. Nem sequer sabia
abrir as pernas, mas senti as tuas coxas,
com uma penugem de ouro rubro,
                                                              abrindo-se
entre as minhas pernas como um
par de asas.
A impressão do meu sangue em cavilha sobre as tuas coxas –
uma criatura alada presa ali por alfinetes –
e depois partiste, como havias de partir
uma e outra vez, as borboletas deslocando-se
imensas pela minha janela, flutuando
para sul para se transformarem, atravessando
fronteiras pela noite, a sua nuvem difusa
vermelhas de sangue, o meu corpo sob o teu,
a beleza e o silêncio das grandes migrações.
 
 
 
sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




 


 

08 dezembro 2021

sharon olds / domingo à noite na cidade

 
 
De mãos dadas, estendemo-nos na cama,
as nossas pernas compridas cruzadas como asas
dobradas, os nossos pés compridos tocando aos pés
da cama na sombra, o alçado gravado como
lápide com uvas. O teu cabelo em desalinho, escuro
como uma avelã negra, frisado como rebentos
de videiras. A tua mão direita na minha mão
direita. A minha mão esquerda na tua esquerda.
Braços entrelaçados como patinadores, estendemo-nos
sob a pintura de uma paisagem de campo: as silvas
negras e difusas como fumo, as árvores
erguendo os cinzentos esqueletos de peixe,
e ao centro, sobre nós,
o calmo lago
mudo como se fora eterno.
 
 
 
sharon olds
satanás diz
trad. margarida vale de gato
antígona
2004




01 setembro 2016

sharon olds / de volta a casa depois das férias



O carro rodou para a entrada ao ocaso e parou.
A mulher saiu sob as enormes árvores pretas
e desceu ao jardim e sentiu que havia lá alguém,
alguém com raiva. As árvores estavam encorpadas de negrume
e os botões desembainhavam as facas.

Deixou-se ficar de fora do seu jardim
e viu como os caules retorciam os músculos
e todo aquele terreno parecia uma campa
de onde alguém lutava por sair.

                                                        De repente
pressentiu uma grande sombra erguendo-se,
lançando-se a correr – ela levou a mão ao pescoço
branca como uma raiz.

                                        Estava, portanto, em casa.
Aquele era o seu lugar, o único de entre todos
onde tinha medo de andar, onde alguém chegara
sempre primeiro, e, contra ela, manteria o posto
a todo o custo.


sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




12 julho 2013

sharon olds / a linguagem da bazófia



Desejei ser a primeira a fazer pontaria com a faca,
desejei usar os meus braços extraordinariamente robustos e certeiros
e a minha postura erecta e os músculos ágeis e eléctricos
para alcançar algo no centro da multidão,
o fio da navalha perfurando profundamente o casco,
o punho vibrando lento e pesado como o caralho.

Desejei uma função épica para o meu excelente corpo,
um qualquer heroísmo, uma qualquer proeza americana
para além do ordinário para a minha pessoa extraordinária,
magnética e tênsil, junto ao campo de terra batida
vi os rapazes jogarem.

Desejei bravura, pensei em fogo,
em atravessar cataratas, arrastei por toda a parte

a barriga cheia de cobardia e segurança,
a minha bosta negra com as ampolas de ferro,
as minhas grandes mamas exudando muco,
as minhas pernas inchando, as minhas mãos inchando,
a minha cara inchando enegrecida, o meu cabelo
caindo, o forro do meu sexo
esfaqueado vezes sem conta por uma dor terrível como um punhal.
Jazi estendida.

Jazi estendida e suei e tremi
e expeli sangue e fezes e água e
devagar sozinha no centro de um círculo
expeli a nova pessoa
e eles ergueram a nova pessoa já livre do acto
e limparam a nova pessoa já livre
dessa linguagem de sangue tal louvor sobre todo o corpo.

Fiz aquilo que quisestes fazer, Walt Whitman,
Allen Ginsberg, fiz isto,
eu e as outras mulheres este acto
excepcional com o corpo excepcional e heróico,
este dar à luz, este verbo brilhante,
e deponho aqui a minha jactante bazófia americana
em pé de igualdade com outras.


sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




08 julho 2011

sharon olds / primeira noite

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Eu dormia debaixo de ti,
quieta e escura, tão deserta
como uma paisagem de campos, o meu sangue lentamente
secando entre nós, a brecha na minha carne
começando a sarar, aberta, uma fronteira
irreversivelmente abolida.
Os habitantes do meu corpo começaram a
erguer-se no escuro, a fazer as malas, a mudar-se.


Toda a noite, hordas de gente
em roupas pesadas mudaram-se para sul dentro de mim,
com as casas às costas, sacas de
grão, crianças pela mão, debaixo
de um céu como fumo. Os pastos
deslocaram-se centenas de milhas. Alguns animais,
de repente, quase se extinguiram,
uma ou duas formas singulares,
nodosas, nas partes opostas da terra.
Outras formas se multiplicaram,
Massas de asas de um vermelho escuro
Jorrando de parte nenhuma. Os rios mudaram de curso,
a linguagem deu uma volta
completa sobre si
e encaminhou-se na direcção oposta.
Ao amanhecer, as migrações tinham terminado. Secou
a derradeira orla do laço de sangue,
e como um animal recém-nascido prestes a ser ferrado
abri os olhos e vi o teu rosto.


 



sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004
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27 setembro 2007

primitivos




Ouvi falar de gente civilizada,
os matrimónios temperados por conversas, elegantes e
honestos, racionais. Mas tu e eu somos
selvagens. Tu chegas com um saco,
entregas-mo em silêncio.
Sei logo que é Porco Moo Shu pelo cheiro
e percebo a mensagem: dei-te imenso
prazer ontem à noite. Sentamo-nos
tranquilamente, lado a lado, para comer,
os crepes compridos suspensos a entornar,
o molho fragrante a escorrer,
e de esguelha olhamos um para o outro, sem palavras,
os cantos dos olhos limpos como pontas de lança
pousadas no parapeito para mostrar
que aqui um amigo se senta com um amigo.




sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




09 janeiro 2005

um poema de: Sharon Olds



Teoria dos tremores


Quando dois estratos terrestres se esfregam um no outro
como uma mãe e uma filha
chama-se uma falha.

Há falhas que deslizam suaves uma pela outra
uma polegada por ano, tão-só de raspão
como um homem que passa a mão pelo queixo,
esse homem entre nós,

e há falhas que embicam numa curva durante vinte anos.
A crista dilata-se como a testa sarcástica de um pai
e tudo estaca no mesmo sítio, o homem entre nós.

Quando isso acontecer, haverá graves danos
nas zonas industriais e estâncias de veraneio
quando os fundos estratos
finalmente desencalharem
da terrível pressão do contacto.

A terra estala
e os inocentes submergem gentilmente nela como nadadores.



Sharon Olds
“Satanás Diz”
Trad, Margarida Vale de Gato
Antígona, Lisboa 2004