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11 julho 2023

claudio rodríguez / alta jorna

 



 

Feliz quem um bom dia sai humilde
e segue pelas ruas, como em tantos
dias da sua vida, e não o espera
e, súbito, o que é isto?, olha para cima
e vê, encosta o ouvido ao mundo e ouve,
caramba, e sente içar-se entre os seus passos
o amor da terra, e continua, e abre
a sua oficina real, e nas suas mãos
luz limpo o seu ofício, e no-lo entrega
com o coração porque ama, vai ao trabalho
a tremer como um rapaz que comunga,
mas sem caber na própria pele, e quando
se apercebe finalmente do simples
que foi tudo, e já com a jorna ganha,
volta para casa alegre e sente alguém
a segurar-lhe a aldrava, e tem razão.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019




04 junho 2021

claudio rodríguez / ao ruído do douro

 
 
E como eu reparava
que era tão popular pelas ruas
passei a ponte e, adeus, para trás tudo.
Mas até aqui me chega, apaguem-no, estou sempre
a ouvir aquele ruído e subo e subo,
ando de vila em vila, encosto o ouvido
ao voo do pardal, ao sol, ao ar,
eu sei lá, ao céu, ao peito das moças,
e sempre o mesmo som, igual mudança.
Que sítio é este sem trégua? Que hostes, que altas lides
me saqueiam a alma a toda a hora,
rendem a torre da divisa branca,
abrem aquele portilho, o silencioso,
o nunca falso? E és
tu, músico do rio, meu fundo fôlego,
lhaneza e voz e pulsar dos meus homens.
Seria tão melhor
Esperar! Hoje não posso, hoje estou duro
de ouvido, após tantos anos passados
com os de ruim terra. Mas eu voltei.
Campo da verdade, qual a traição?
Vejam como tanto tempo, tanta empresa
Fazem o mesmo ruído!
Vejam só como temos tido sempre
tanta pureza ao nosso lado, em casa,
e continuamos surdos!
Já nem mais uma tarde! Sê bem-vinda,
manhã. Estou pronto: que testemunhem
por mim os que ainda ouvem. Oh, rio,
fundador de cidades,
soando em tudo menos no teu leito,
faz com que o teu ruído seja canto,
seja o nosso trabalho vida afora.
Se um dia a solidão, o ver o homem
na venda, o vinho, o desamor ou o desânimo
assaltam o que bem fizeste teu,
põe-te como hoje em pé de guerra e guarda
todas as minhas portas e janelas
como sempre fizeste,
tu, que oiço agora como ouvia outrora,
tu, rio da minha terra, Duradouro.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019




15 fevereiro 2021

claudio rodríguez / nunca será meu amigo

 
 
Nunca será meu amigo quem na Primavera
vai para o campo e esquece entre os azuis festejos
os homens que ama, e não vê o couro velho
por sob a nova pelagem, mas tu, verdadeira
 
amizade, pão celeste, tu, que no Inverno
na clara alvorada sais de casa e começas
a andar, e no nosso frio achas refúgio eterno
e na nossa seca profunda a voz das safras.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

02 dezembro 2020

claudio rodríguez / céu

 
 
Agora sim preciso mais que nunca
de olhar o céu. Já sem fé, sem ninguém,
findo este seco meio-dia, levanto
os olhos. E é a mesma verdade de antes,
embora a testemunha seja outra.
Riscos de uma aventura já sem lendas
nem anjos, e nem sequer esse azul
da minha pátria. Pagaria para
sorver o ar, erguer os olhos, ver
sem recompensa, aceitar uma graça
que não cabendo nos sentidos dá
saúde nova, alívio, ocupação.
Troco pelo amor o dom, esta beleza
que não mereço nem ninguém merece.
Preciso hoje do céu mais que nunca.
Não para me salvar, para não estar só.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

29 maio 2020

claudio rodríguez / pardal


Não esquece. Não se afasta
este vadio astuto
da nossa vida. Sempre
por empréstimo, errante,
como um qualquer, aqui
anda, teimoso, lava-se
entre os nossos sapatos.
Que procura na escura
vida nossa? Que amor
no nosso pão tão duro?
Já deu ao ar os mortos,
o pardal que podia
ter voado, mas insiste
em ficar aqui, firme,
enfiando no peito
o pó todo do mundo.



claudio rodríguez
sem epitáfio
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2019






15 janeiro 2020

claudio rodríguez / adeus



Trocaria a vida por qualquer coisa
esta tarde. Qualquer coisa pequena,
se alguma há. Martírio é o sereno
rumor sem escrúpulos dos teus sapatos
rasos, que já não voltam. Que vitórias
quer quem ama? Porque são tão direitas
as ruas? Não olho para trás, mas
já não te sei perder de vista. Esta
é a terra do escárnio: os amigos dão
informações falsas. A minha boca
beija o que morre, e aceita-o e até a pele
do lábio é a do vento. Adeus. É útil,
normal este facto, dizem. Aceita
as nossas coisas, tu que podes tê-las.
Eu vou para onde me levar a noite.



claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019