Mostrar mensagens com a etiqueta wallace stevens. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta wallace stevens. Mostrar todas as mensagens

27 setembro 2023

wallace stevens / mulheres vulgares



 

Então da pobreza delas se ergueram,
Dos catarros secos, e para as guitarras
Esvoaçaram
Através dos muros do palácio.
 
Atiraram para trás a monotonia,
Distraídas da sua penúria, e, indolentes,
Abarrotaram
Os átrios nocturnos.
 
Os camarotes envernizados repletos ali
Murmuravam zia-zia e a-zia, a-zia.
O luar
Defraudava os candelabros.
 
E os vestidos frios que usavam,
Na vápida neblina das janelas de sacada,
Ficavam sossegados
Enquanto inclinadas observavam
 
Dos peitoris das janelas os alfabetos
Beta b e gama g,
Estudando
Os arabescos oblíquos
 
Do céu e do celestial argumento.
E aí leram acerca do leito nupcial.
Ti-lili-oh!
E leram longamente.
 
Os magros guitarristas nas cordas
Arranhavam um-dia e um-dia, um-dia.
O luar
Ergueu-se no chão de areia.
 
Quão nítidos se fizeram os penteados,
A pedra de diamante, a pedra de safira,
As lantejoulas
Dos finos leques!
 
Insinuações de desejo,
Conversa pujante, idêntica em todas,
Quitação gritada
Aos átrios escuros.
 
Então da pobreza delas se ergueram,
Das guitarras secas, e para os catarros
Esvoaçaram
Através dos muros do palácio.
 
 
 
wallace stevens
harmónio
trad. Jorge fazenda Lourenço
relógio d´água
2006
 



 

30 janeiro 2021

wallace stevens / conversa de café

 
 
 
Claro, morremos para sempre.
A vida, então, é em grande parte uma coisa
De acontecer gostar-se, não de ter de.
 
E isso, também, claro, porque é que
Acontece eu gostar de arbustos vermelhos,
Relva cinzenta e céu cinzento-esverdeado?
 
Que mais resta? Mas vermelho,
Cinzento, verde, porquê essas de entre todas?
Isso não é o que eu disse:
 
Não essas de entre todas. Mas essas.
Gosta-se do que acontece gostar-se.
Gosta-se do modo como o vermelho cresce.
 
Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar-se é um
Dos modos como as coisas acontecem calhar.
 
 
 
wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991

 




04 julho 2020

wallace stevens / domingo de manhã



3
Nas nuvens Júpiter teve o seu inumano nascimento.
Mãe nenhuma o amamentou, nenhuma doce terra deu
Movimentos magnânimos à sua mente mítica
Movimentou-se entre nós, como um rei rabugento,
Magnifico, se movimentaria entre as suas corças,
Até que o nosso sangue, misturando-se, virginal,
Som o céu, trouxe tal satisfação ao desejo
Que as próprias corças o discerniram, numa estrela.
O nosso sangue falhará? Ou virá a ser
O sangue do paraíso? E será que a terra
Aparenta tudo o que do paraíso conheceremos?
O céu será então muito mais afável do que agora,
Uma parte de trabalho e uma parte de dor,
E em glória a seguir ao amor constante,
Não este azul divisório e indiferente.

(…)



wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991








15 julho 2019

wallace stevens / teoria



Sou o que me rodeia.

As mulheres compreendem isto.
Não se é duquesa
A cem metros de uma carruagem.
Estes, então, são retratos:
Uma antecâmara preta;
Uma cama alta protegida por cortinas.

Isto são meros exemplos.



wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991



10 novembro 2016

wallace stevens / o vento muda



É assim que muda o vento:
Como os pensamentos de um velho humano,
Que pensa ainda ardentemente,
Desesperadamente.
O vento muda assim:
Como uma humana sem ilusões,
Que sente ainda coisas irracionais dentro de si.
O vento muda assim:
Como humanos chegando irritadamente.
É assim que muda o vento:
Como um humano, pesado, pesado,
Que quer lá saber.


wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006



23 julho 2015

wallace stevens / chá



Quando a orelha-de-elefante do parque
Se engelhava de frio,
E as folhas nas veredas
Corriam como ratos,
O teu candeeiro tombava
Em almofadas cintilantes,
De tons de mar e tons de céu,
Como sombrinhas em Java.



wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006



07 janeiro 2014

wallace stevens / as cortinas na casa do metafísico


Acontece que a ondulação destas cortinas
Está cheia de largos movimentos; como o lento
Esvaziar da distância; ou como nuvens
Inseparáveis das suas tardes;
Ou a mudança da luz, o gotejar
Do silêncio; o sono largo e a solidão
Da noite, em que todo o movimento
Está para alem de nós, à medida que o firmamento,
Subindo e descendo, desvela
A imensidão final, ousada visão.


wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006



23 setembro 2013

wallace stevens / da poesia moderna



O poema da mente no acto de chegar
Ao que é bastante. Nem sempre lá teve
De chegar: a cena estava montada; dizia uma vez mais
O que estava no papel.
                                 Depois o teatro mudou,
Fez-se outra coisa. O passado ficou como uma lembrança.
Tem de estar vivo, de aprender a linguagem do lugar.
Tem de encarar os homens presentes e encarar
As mulheres presentes. Tem de pensar acerca da guerra
E tem de chegar ao que é bastante. Tem
De construir um novo palco. Tem de instalar nele
E, como actor insaciável, lenta e
Meditadamente, proferir palavras que entram no ouvido,
No delicadíssimo ouvido da mente, exactamente
Com o que ele quer ouvir, palavras cujos sons,
Escutados por um público invisível
Atento não à peça mas a si mesmo,
Se manifestam como uma emoção de duas pessoas, como
Em duas emoções que se tornam uma. O actor é
Um metafísico nas trevas, dedilhando a corda
Dum instrumento, a metálica corda que produz
Sons que atravessam súbitos alinhamentos perfeitos,
Todos contendo em si a mente, abaixo dos quais
Ela não pode descer, além dos quais não quer subir.
                                                                         Tem de
Ser esse chegar a uma satisfação, seja a de
Um homem patinando, uma mulher dançando, uma mulher
Penteando-se. O poema do acto da mente




wallace stevens
trad. de alberto pimenta e
maria irene ramalho de sousa santos
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




20 agosto 2013

wallace stevens / o lugar dos solitários



Que o lugar dos solitários
Seja um lugar de ondulação perpétua.

Quer seja em pleno mar
Na negra e verde nora
Ou nas praias.
Que nunca cesse
O movimento, ou o ruído do movimento,
O renovar do ruído
E múltiplos prolongamentos;

E, sobretudo, do movimento das ideias
E da sua incansável iteração.

No lugar dos solitários,
Que há-de ser um lugar de ondulação perpétua.



wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006



09 julho 2013

wallace stevens / o domínio do negro



À noite, ao lume,
As cores das sebes
E as folhas caídas
Repetindo-se
Volteavam na sala
Tal como essas folhas
Volteando no vento.
Sim: mas a cor dos graves teixos
Avançava a passos largos
E eu lembrei-me do grito dos pavões.

As cores dos seus leques
Eram como essas folhas
Volteando no vento,
No vento do poente.
Giravam pela sala
Como ao soltar-se dos ramos dos teixos
A caminho do chão.
Ouvia-os gritar: os pavões.
Um grito contra o poente?
Ou contra essas folhas
Volteando no vento,
Volteando como as chamas
Volteavam no lume,
Volteando como os leques dos pavões
Volteavam no lume que se ouvia,
Que se ouvia como os teixos
Cheios dos gritos dos pavões?
Ou um grito contra os teixos?

Pela janela
Vi como os planetas se reuniam
Tal como essas folhas
Volteavam no vento.
Vi como a noite chegava,
Avançando a passos largos como a cor dos graves teixos
E tive medo.
E lembrei-me do grito dos pavões.



wallace stevens
trad. de alberto pimenta e
maria irene ramalho de sousa santos
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



23 abril 2013

wallace stevens / domingo de manhã


  
1
Complacências do roupão e café
Tardio e laranjas numa cadeira soalheira
E a verde liberdade de uma catatua
Sobre um tapete misturam-se para dissipar
A quietude sagrada de sacrifício antigo.
Ela sonha um pouco e sente a escura
Insinuação daquela velha catástrofe,
Enquanto uma calma escurece entre luzes de água.
As laranjas pungentes e asas verdes brilhantes
Parecem coisas em um cortejo dos mortos,
Serpenteando através de água imensa, sem som.
O dia está qual água imensa, sem som.
Acalmado para a passagem de seus pés sonhadores
Por cima dos mares, até à Palestina silenciosa,
Domínio do sangue e sepulcro.

2
Porque havia ela de entregar a sua riqueza aos mortos?
O que é a divindade se pode vir
Apenas em sombras silenciosas e em sonhos?
Não encontrará ela em confortos do sol,
Em fruta pungente e asas verdes brilhantes, ou então
Em qualquer bálsamo ou beleza da terra,
Coisas a serem acarinhadas como a ideia de céu?
A divindade tem de viver dentro dela:
Paixões da chuva, ou melancolias ao cair da neve;
Mágoas na solidão, ou exultações
Insubmissas quando o bosque floresce; emoções
Tempestuosas nas estradas molhadas em noites de outono;
Todos os prazeres e todas as dores, lembrando
O ramo do verão e o galho do inverno.
Estas são as medidas destinadas à sua alma.

(…)




wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991

11 junho 2012

wallace stevens / hibiscos nos litorais adormecidos






Agora eu digo, Fernando, que naquele dia
O espírito vadiava como vadia uma traça,
Entre as flores para lá do areal imenso;

E que o mínimo rumor do vaivém das ondas
Nas algas marinhas e nas pedras submersas
Não incomodava nem o mais ocioso ouvido.

Foi então que aquela monstruosa traça
Que ficara imóvel pregada no azul
E no púrpura colorido do mar preguiçoso,

E dormitara ao longo de litorais ossudos,
Surda para a conversa que as águas fiavam,
Se ergueu perlada e buscou o rubro ardente

Salpicada de pólen amarelo ─  tão rubro
Como a bandeira no cimo do velho café ─
E por ali vadiou toda a estúpida tarde.





wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006




22 janeiro 2012

wallace stevens / o boneco de neve





Há que ter um espírito de Inverno
Para olhar a geada e os ramos
Dos pinheiros encrostados de neve;

E ter tido frio muito tempo
Para ver os zimbros encrespados com gelo,
Os abetos eriçados ao brilho distante

Do sol de Janeiro; e não pensar
Em qualquer desgraça no som do vento,
No som de algumas folhas,

Que é o som da terra
Cheia do mesmo vento
Que sopra no mesmo lugar deserto

Para o ouvinte, que ouve na neve,
E, ele mesmo nada, não vê
Nada que lá não está e sim o nada que vê.





wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991




28 julho 2010

wallace stevens / a casa estava silenciosa e o mundo estava calmo








A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão

Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página,

A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem

A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.

O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito:
Era a perfeição no seu acesso à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo
No qual não há outro sentido, a própria verdade

Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.








wallace stevens
the house was quiet and the world was calm, transport to summer (1947)
vozes da poesia europeia III

traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






30 dezembro 2009

wallace stevens / seis paisagens significativas








III


Meço-me
Contra uma árvore alta.
Acho que sou muito mais alto,
Pois chego mesmo até ao sol,
Com os meus olhos;
E chego à praia do mar
Com os meus ouvidos.
Todavia não gosto
Do modo como as formigas rastejam
Para dentro e para fora da minha sombra.






wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991