20 julho 2016

diogo vaz pinto / que espécie de anjo


A carne é triste, e eu
já li todos os livros.

Mallarmé


Para o Jorge e o Manuel


Neste vazio, simples, directo, ficamos
como possuídos, amaldiçoando o mundo
em voz baixa, nestes apartamentos minúsculos.
Lâmpadas fundidas, lençóis sujos,
esse colchão cansado e a janela segurando
um copo de chuva.

Recebemos estranhos. Tenho um ali
com a cabeça metida na penumbra,
extraindo a claridade de alguma veia.
(Não sei que espécie de anjo desce
tão baixo.) Os infelizes que se enforcam
neste meu quarto de que a cabra da lua
tanto gosta, e vem vê-los baloiçar.

A minha voz muda a noite inteira,
rindo nuns tropeções de choro,
amargo deslize entre música e sono
derramado. Ando de punhos cerrados
e boca aberta que vai
ler nos lábios de um reflexo
uma descrição absurda. Olha para ti:
de roupão, saco de plástico, lembras
um vagabundo, para cá e para lá,
dentro de casa. Escuta,

o sol já se deixa ouvir nos fundos,
mas perdeste a nitidez. Objectos, imagens.
A luz, por aqui, mal pousa nas coisas.
Não reconheço o céu, não entendo
onde nos levam as distâncias
lá fora, como se fossem caminhos.
Nem banho, nem pente, só o cachecol
e um rumor de sementes nos bolsos.
Sigo-o, embalado pelo vento
até jardins incertos onde engrossa a raiz
dos pássaros. Nas traseiras do mundo,
os quintais do abandono. Um inventário
difícil, a inútil perfeição que regressa
de certas imagens. Um quadro
de bicicleta e um sofá esventrado, telhas
quebradas, flores das que cantam
à beira de precipícios e uma gaiola
envolvida na recordação de qualquer
coisa que nos fugiu. A tarde ali
de gatas, lavada de uma luz magra,
luz de desterro onde a chuva cai num
tom respeitoso e estende a sua rima
subtil entre estas ruínas d´eco.

Não deixes que anoiteça tão cedo.
Sem dares por isso, as mães chamam
os miúdos, os cães perdem os donos,
as ruas precipitam-se como rios
arrastados pelo bulício, e, enfim,
lá está aquilo a que não querias voltar.
Enfiados nas noites uns dos outros,
bares, carrosséis medonhos onde
cada um de nós vai sendo, à vez,
o eixo fixo da mais triste e precária
constelação.

O monstruoso esgar de uns, o frágil
sorriso de outros e a tua cara,
esse olhar de imbecil curiosidade
pactuando com esta fé terrível,
culto de uma raça sem profundidade
a que assistes, desviando o coração.

Horas em que o mundo faz demasiado
sentido e se torna simplesmente
cruel. Mesmo se tudo em nós
pede pátria, continuamos sozinhos.
Seduzimo-nos, fodemos maravilhosamente
como só os desesperados, mas acordamos
a meio da noite com a ansiedade
da lua, à espera denos ver baloiçar.



diogo vaz pinto
ladrador
averno
2012



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