O ANJO SEM SORTE. Atrás dele o passado dá à costa,
acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores
enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos,
fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em
mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se
ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à
frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado
movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o
instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte
encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do
sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas
através da pedra e anuncia o seu voo.
heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997
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