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30 abril 2024

natália correia / verdadeira litania para os tempos da revolução





 

                               Burgueses somos nós todos
                               ó literatos
                               burgueses somos nós todos
                               ratos e gatos
 
                               Mário Cesariny

 
 
Mário nós não somos todos burgueses
os gatos e os ratos se quiseres,
os literatos esses são franceses
e todos soletramos malmequeres.
 
Da vida o verbo intransitivo
não é burguês é ruim;
e eu que nas nuvens vivo
nuvens! o que direi de mim?
 
Burguês é esse menino extraordinário
que nasce todos os anos em Belém
e a poesia se não diz isto Mário
é burguesa também.
 
Burguês é o carro funerário.
Os mortos são naturalmente comunistas.
Nós não somos burgueses Mário
o que nós somos todos é sebastianistas.
 
 
 
natália correia
inéditos (1959/61)
antologia poética
dom quixote
2018



 

13 junho 2020

natália correia / marcelo é bom bailarino



É entrar, venham ver a maravilha
das variedades na feira marcelina!
e entre atracções à escolha a que mais brilha
é de Marcelo a fúria bailarina.

Do tango ao rock do chá-chá-chá ao samba,
dançando a valsa como quem flores pisa,
baila Marcelo até na corda bamba
e os alunos de Apolo inferioriza.

Topa, enfim, de cavaco o mafarrico
no dernier cri da dança uma golpada:
rebolar-se no novo sassarico
para no partido acabar tudo à lambada.



natália correia
cancioneiro joco-marcelino
antologia poética
dom quixote
2018






26 abril 2020

natália correia / au petit riche



Não morrerei em paris numa quinta-feira cadente
Deixo a hiena de zinco que vem sobre os telhados
aos que no último andaime da chuva executam o número
do suicídio que se incuba nos corações molhados

cedo a nossa senhora dos espasmos ao corcunda
o sena à açucena insolúvel na máscara da afogada
a mona lisa ao vitríolo dos olhos roubadores
que até agradeço que seja para sempre roubada

Cedo a ópera ao degas das bailarinas póstumas
o accordéon à valsa dos desaparecidos canalhas
e napoleão que era cornudo cedo à córnea
que só deixa passar o infravermelho das batalhas

Cedo o sagrado coração à sacarina
Cedo o sorriso ao cheque e o cheque ao mate
a taquicardia aos directores o zola às usinas
a métrica ao metrô trianon ao esmalte

Cedo a Dada as tampas das retretes
públicas pálpebras da república francesa
e a Toulouse-lautrec cedo o cancã pintado
por um gesto obsceno debaixo de uma mesa

Cedo aos cais uns restos de sonho embutidos na noite
jean cocteau ao croissant versalhes ao bibelô
e seja sartre em molho de manteiga
o peixe mais comido no bistrô

O que eu não cedo num nicho deste itinerário
varrido por um simum de telexes e ascensores
está numa tapeçaria: é a dama do licorne
cada vez mais remota pronunciando flores


natália correia
o anjo do ocidente à entrada do ferro
antologia poética
dom quixote
2018






04 janeiro 2020

natália correia / uma laranja para alberto caeiro


Venho simplesmente dizer
que uma laranja é uma laranja
e comove saber que não é ave
se o fosse não seriam ambas
uma só coisa volátil e doce
de que a ave é o impulso de partir
e a laranja o instinto de ficar.

Não sei de nada mais eterno
do que haver sempre uma só coisa
e ela ser muitas diferentes
e cada coisa ternamente ocupar
só o espaço que pode rodeada
pelo espaço que a pode rodear.

Sei que depois da laranja
a laranja poderá ser até
mesmo laranja se necessária
mas cada vez que o for
sê-lo-á rigorosamente
como se de laranja fosse
a exacta fome inadiável.

De ser laranja gomo a gomo
o íntimo pomo se enternece
e não cabe em si de amor
embriagada de saber
que a sua morte nos será doce.


natália correia
o vinho e a lira
1967





07 novembro 2019

natália correia / o livro dos amantes



IV
Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.



natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018











28 abril 2019

natália correia / o livro dos amantes




III
Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e se apagou.



natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







25 janeiro 2019

natália correia / o livro dos amantes



II
Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor.
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.




natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







24 novembro 2018

natália correia / o livro dos amantes



I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.




natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







02 setembro 2018

natália correia / marcelo e as tágides





Marcelo, em cupidez municipal
de coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se valoroso – ó bacanal! –
ao leito húmido das Tágides daninhas

Para conquistar as Musas de Camões
lança a este, Marcelo, um desafio:
jogou-se ao verso o épico? Ilusões!...
Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

E em eleitorais estrofes destemidas,
do autárquico sonho, o nadador
diz que curara as ninfas poluías
com o milagre do seu corpo em flor.

Outros prodígios – dizem – congemina:
ir aos bairros da lata e ali, sem medo,
dormir para os limpar da vil vérmina
e triunfal ficar cheio de pulguedo.

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão
de asa delta a fazer de passarola,
sobrevoa Lisboa o passarão
e perde a pena que é de galinhola.



natália correia
cancioneiro joco-marcelino
antologia poética
dom quixote
2018







23 fevereiro 2017

natália correia / a recusa das imagens evidentes




Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.


natália correia
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




21 novembro 2013

natália correia / a defesa do poeta



Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
 de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.



natália correia
as maçãs de orestes
1970



14 janeiro 2012

natália correia / queixa das almas jovens censuradas





Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.






natália correia
poesia completa
publicações dom quixote
1999




17 junho 2011

natália correia / autogénese

.
.
.

Nascitura estava
sem faca nos dentes
cómoda e impura
de não ter vontade
de bater nas gentes.

Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim
eu sou do açores
(relativamente
naquilo que tenho
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores.

Pragas e castigos
foram-me gerando
por trás dos postigos
e fórceps de raiva
me arrancaram toda
em sangue de mim.

Nascitura estava
sorria e jantava
e um beijo me deste
tu Pedro ou Silvestre
turvo namorado
do verão ou de outono
hibernal afecto
casca azul do sono
sem unhas do feto.
 
Eu nasci das balas
eu cresci das setas
que em prendas de sala
me foram jogando
os mulheres poetas
eu nasci dos seios
dores que me cresceram
pomos do ciúme
dos que os não morderam
 
nasci de me verem
sempre de soslaio
de eu dizer em junho
e eles em maio
de ser como eles
as vezes por fora
mas nunca por dentro
perfil de uma estátua
que não sou de frente.
 
Nascitura estava
e mais que imperfeita
de ser sorte ou dado
que qualquer mão deita.
 
Eu nasci de haver
os bairros da lata
do dedo que escapa
dos sapatos rotos
da fome que mata
o que quer nascer
e que o sábio guarda
em frascos de abortos
 
eu nasci de ver
cheirar e ouvir
dum odor a mortos
(judeus enlatados
para caberem mais
mas desinfectados)
pelas chaminés
nazis a sair
de te ver passar
de me despedir
de teus olhos tristes
como se existisses.
 
Nascitura estava
tom de rosa pulcra
eu me declinava
vésper em latim
impura de todos
gostarem de mim.
 




natália correia
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985
.
.
.
.
 

18 janeiro 2011

natália correia / o sol nas noites e o luar nos dias







De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem







natália correia
poesia completa
publicações dom quixote
1999