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18 março 2023

luís vaz de camões / julga-me a gente toda por perdido

 
 
 
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.
 
Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.
 
Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;
 
Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro n’alma.
 
 
 
luís vaz de camões
sonetos




15 maio 2022

luís vaz de camões / odes

 
 
[VI]
 
Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e à viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.
 
Que a flama que se acende
alto tanto alumia
que, se o nobre desejo ao bem se estende
que nunca viu, a sente claro dia;
e lá vê do que busca o natural,
a graça, a viva cor,
noutra espécie milhor que a corporal.
 
Pois vós, ó ciaro exemplo
de viva fermosura,
que de tão longe cá noto e contemplo
n'alma, que este desejo sobe e apura:
não creais que não vejo aquela imagem
que as gentes nunca vêm,
se de humanos não têm muita ventagem.
 
Que, se os olhos ausentes
não vêm a compassada
proporção, que das cores excelentes
de pureza e vergonha é variada;
da quai a Poesia, que cantou
até 'qui só pinturas,
com mortais fermosuras igualou;
 
se não vêm os cabelos
que o vulgo chama de ouro,
e se não vêm os claros olhos belos,
de quem cantam que são do Sol tesouro,
e se não vêm do rosto as excelências,
a quem dirão que deve
rosa, cristal e neve as aparências;
 
vêm logo a graça pura,
a luz alta e severa,
que é raio da divina fermosura
que n'alma imprime e fora reverbera,
assi como cristal do Sol ferido,
que por fora derrama
a recebida flama, esclarecido.
 
E vêm a gravidade
com a viva alegria,
que misturada tem, de qualidade
que ua da outra nunca se desvia;
nem deixa ua de ser arreceada
por leda e por suave,
nem outra, por ser grave, muito amada.
 
E vêm do honesto siso
os altos resplandores,
temperados co doce e ledo riso,
a cujo abrir abrem no campo as flores;
as palavras discretas e suaves,
das quais o movimento
fará deter o vento e as altas aves;
 
dos olhos o virar,
que torna tudo raso,
do quai não sabe o engenho divisar
se foi por artificio, ou feito acaso;
da presença os meneios e a postura,
o andar e o mover-se,
donde pode aprender-se fermosura.
Aquele não sei quê,
que aspira não sei como,
que, invisível saindo, a vista o vê,
mas para o compreender não acha tomo;
o qual toda a Toscana poesia,
que mais Febo restaura,
em Beatriz nem em Laura nunca via;
 
em vós a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
se engenho e ciência e habilidade
igual à fermosura vossa der,
como eu vi no meu longo apartamento,
qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!
 
Pois se o desejo afina
ua alma acesa tanto
que por vós use as partes da divina,
por vós levantarei não visto canto
que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;
que o nosso claro Tejo
envolto um pouco vejo e dissonante.
 
O campo não o esmaltam
flores, mas só abrolhos
o fazem feio; e cuido que lhe faltam
ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
que o sol, que em vós está,
na escuridão dará mais claro lume.
 
 
 
luís de camões
poesia lírica
ulisseia
1988



10 janeiro 2021

luís vaz de camões / eu cantarei de amor tão docemente

 
 
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
 
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
 
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
 
Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.
 
 
luís vaz de camões
sonetos




15 março 2020

luís vaz de camões / com que voz



Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?

Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.

Assi a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima o pé que o sofre e sente!

De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mi tenho ausente
por quem a vida, e bens dela, aventuro.


luís vaz de camões
sonetos






10 junho 2018

luís vaz de camões / lembranças, que lembrais meu bem passado

Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Pera que sinta mais o mal presente,
Deixai-me, se quereis, viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
Viver, como se vê, tão descontente,
Venha, se vier, o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito melhor é perder a vida,
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória,
Se esta vida há-de ser sempre em tormento.



luís vaz de camões
sonetos











13 maio 2018

luís vaz de camões / quem pode livre ser, gentil senhora,




Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juízo sossegado,
Se o Menino que de olhos é privado
Nas meninas de vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens são nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas
Que fios crespos de ouro vão cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,

Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito trespassando
Assim como um cristal o Sol trespassa.



luís vaz de camões
sonetos





22 abril 2018

luís vaz de camões / verdes são os campos




Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.



luís vaz de Camões








13 agosto 2017

luís vaz de camões / elegia




A D. António de Noronha, estando
                                         o autor em Ceuta

[II]
   Aquela que de amor descomedido
pelo fermoso moço se perdeu
que só por si de amores foi perdido,
despois que a deusa em pedra a converteu
de seu humano gesto verdadeiro,
a última vez só lhe concedeu;
assi meu mal do próprio ser primeiro
outra cousa nenhüa me consente
que este canto que escrevo derradeiro.
   E se algüa pouca vida, estando ausente,
me deixa Amor, é porque o pensamento
sinta a perda do bem de estar presente.
Senhor, se vos espanta o sentimento
que tenho em tanto mal, para escrevê-lo
furto este breve tempo a meu tormento.
   Porque quem tem poder para sofrê-lo,
sem se acabar a vida co cuidado,
também terá poder para dizê-lo.
   Nem eu escrevo mal tão costumado,
mas n'alma minha, triste e saudosa,
a saudade escreve, e eu traslado.
   Ando gastando a vida trabalhosa,
espalhando a continua saudade
ao longo de ua praia saudosa.
   Vejo do mar a instabilidade,
como com seu ruído impetuoso
retumba na maior concavidade.
   E com sua branca escuma, furioso,
na terra, a seu pesar, lhe está tomando
lugar onde se estenda, cavernoso.
   Ela, como mais fraca, lhe está dando
as côncavas entranhas, onde esteja
suas salgadas ondas espalhando.
   A todas estas cousas tenho enveja
tamanha, que não sei determinar-me,
por mais determinado que me veja.
   Se quero em tanto mal desesperar-me,
não posso, porque Amor e Saudade,
nem licença me dão para matar-me.
   Às vezes cuido em mim a novidade
e estranheza das cousas, co a mudança
se poderão mudar üa vontade.
   E com isto afiguro na lembrança
a nova terra, o novo trato humano,
a estrangeira gente e estranha usança.
   Subo-me ao monte que Hércules tebano
do altíssimo Calpe dividiu,
dando caminho ao mar Mediterrano.
   Dali estou tenteando aonde viu
o pomar das Hespéridas, matando
a serpe que a seu passo resistiu.
   Em outra parte estou afigurando
o poderoso Anteu que, derrubado,
mais força se lhe estava acrescentando;
mas do hercúleo braço sojugado,
no ar deixou a vida, não podendo
da madre terra já ser ajudado.
   Nem com isto, enfim, que estou dizendo,
nem com as armas tão continuadas,
de lembranças passadas me defendo.
   Todas as cousas vejo remudadas,
porque o tempo ligeiro não consente
que estejam de firmeza acompanhadas.
   Vi já que a Primavera, de contente,
de mil cores alegres revestia
o monte, o rio, o campo alegremente.
   Vi já das altas aves a harmonia,
que até aos montes duros convidava
a um modo suave de alegria.
   Vi já que tudo, enfim, me contentava,
e que, de muito cheio de firmeza,
um mal por mil prazeres não trocava.
   Tal me tem a mudança e estranheza
que, se vou pelos campos, a verdura,
parece que se seca, de tristeza.
   Mas isto é já costume da ventura;
que os olhos que vivem descontentes,
descontente o prazer se lhe afigura.
   Ó graves e insofríveis acidentes
de Fortuna e de Amor que penitência
tão grave dais aos peitos inocentes!
   Não basta exprimentar-me a paciência,
com temores e falsas esperanças,
sem que também me atente o mel de ausência?
   Trazeis um brando animo em mudanças,
para que nunca possa ser mudado
de lágrimas, suspiros e lembranças.
   E se estiver ao mal acostumado,
também no mal não consentis firmeza,
para que nunca viva descansado.
   Vivia eu sossegado na tristeza,
e ali não me faltava um brando engano,
que tirasse os desejos da fraqueza.
   E vendo-me enganado estar ufano,
deu à roda Fortuna, e deu comigo
onde de novo choro o novo dano.
   Já deve de bastar o que aqui digo
para dar a entender o mais que calo,
a quem já viu tão áspero perigo.
   E se nos bravos peitos faz abalo
um peito magoado e descontente,
que obriga a quem o ouve a consolá-lo;
não quero mais senso que largamente,
Senhor, me mandeis novas dessa terra:
ao menos poderei viver contente.
   Porque se o duro Fado me desterra,
tanto tempo do bem que o fraco esprito
desampare a prisão onde se encerra,
ao som das negras águas de Cocito,
ao pé dos carregados arvoredos
cantarei o que na alma tenho escrito.
   E, por entre esses hórridos penedos,
a quem negou Natura o claro dia,
entre tormentos ásperos e medos,
com a trémula voz, cansada e fria,
celebrarei o gesto claro e puro
que nunca perderei da fantasia.
   E o músico de Trácia, já seguro
de perder sua Eurídice, tangendo
me ajudará, ferindo o ar escuro.
   As namoradas sombras, revolvendo
memórias do passado, me ouvirão;
e com seu choro, o rio irá crescendo.
   Em Salmoneu as penas faltarão,
e das filhas de Belo, juntamente,
de lágrimas os vasos se encherão.
   Que se o amor não se perde em vida ausente,
menos se perderá por morte escura;
porque, enfim, a alma vive eternamente,
e amor é afeito d'alma, e sempre dura.


luís vaz de camões
elegias






10 junho 2017

luís vaz de camões / se as penas com que amor tão mal me trata




Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permitirem que eu tanto viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;

E se o tempo, que tudo desbarata
Secar as frescas rosas sem colhê-las,
Mostrando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em bela prata;

Vereis, Senhora, então também mudado
O pensamento e aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,
Em tempo quando executar-se possa
Em vosso arrepender minha vingança.



luís vaz de camões
sonetos






20 maio 2017

luís vaz de camões / o tempo acaba o ano, o mês e a hora




O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.



luís vaz de camões
sonetos





19 fevereiro 2017

luís vaz de camões / todo animal da calma repousava,



Todo animal da calma repousava,
Hilário o ardor dela não sentia,
que o repouso do fogo em que ele ardia
consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava
o doce som das mágoas que dizia;
mas nada o duro peito comovia,
que na vontade d''outrem posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,
no tronco de uma faia, por lembrança,
escreve estas palavras de tristeza:

«Nunca ponha ninguém sua esperança
em peito feminil, que de Natura
somente em ser mudável tem firmeza».


luís vaz de camões
sonetos


23 junho 2016

luís vaz de camões / lá na leal cidade …



Lá na leal cidade donde teve
Origem (como é fama) o nome eterno
De Portugal, armar madeiro leve
Manda o que tem o leme do governo.
Apercebem-se os doze, em tempo breve,
De armas e roupas de uso mais moderno,
De elmos, cimeiras, letras e primores,
Cavalos, e concertos de mil cores.

Já do seu Rei tomado têm licença,
Para partir do Douro celebrado,
Aqueles que escolhidos por sentença
Foram do Duque inglês experimentado.
Não há na companhia diferença
De cavaleiro, destro ou esforçado;
Mas um só, que Magriço se dizia,
Dest’arte fala à forte companhia:

Fortíssimos consórcios, eu desejo
Há muito já de andar terras estranhas,
Por ver mais águas que as do Douro e Tejo,
Várias gentes e leis e várias manhas.
Agora que aparelho certo vejo,
Pois que do mundo as cousas são tamanhas,
Quero, se me deixais, ir só por terra,
Porque eu serei convosco em Inglaterra.

E quando caso for que eu, impedido
Por Quem das cousas é última linha,
Não for convosco ao prazo instituído,
Pouca falta vos faz a falta minha:
Todos por mim fareis o que é devido.
Mas, se a verdade e o espírito me adivinha,
Rios, montes, Fortuna ou sua enveja
Não farão que eu convosco lá não seja.



luís vaz de camões
daqui houve nome portugal
eugénio de andrade
editorial inova
1968



10 junho 2016

luís vaz de camões / super flumina




Sôbolos rios que vão
por Babilónia, m´ achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião,
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado;
e tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali lembranças contentes
n'alma se representaram;
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes,
como se nunca passaram.
Ali, despois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças,
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem;
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val
Que então se entende milhor
quando mais perdido for;
vi o bem suceder mal,
e o mal, muito pior.
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, qu'espalho
tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas
com que banho este papel;
bem parece ser cruel
variedade de mágoas,
e confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou:

Assi, despois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo:  – Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.

Frauta minha, que tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo;
e as águas, que iam descendo,
tornavam logo a subir:
jamais vos não ouvirão
os tigres, que se amansavam,
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartarão
que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florecente;
nem poreis freio à corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudestes mover
desconcertos da ventura.

Ficareis oferecida
à Fama, que sempre vela,
frauta de mi tão querida;
porque mudando-se a vida,
se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
prazeres acomodados,
e logo a maior idade
já sente por pouquidade
aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança,
amanhã já o não vejo:
assi nos traz a mudança
de esperança em esperança,
e de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
que, quanto da vida passa
está recitando a morte!

Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade,
não cuide a gente futura
que será obra da idade
o que é força da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
de ver quão ligeiro passe,
nunca em mim puderam tanto
que, posto que deixo o canto,
a causa dele deixasse.

Mas, em tristezas e nojos
em gosto e contentamento,
por sol, por neve, por vento,
tendré presente á los ojos
por quien muero tan contento.
Órgãos e frauta deixava,
despojo meu tão querido,
no salgueiro que ali estava
que para troféu ficava
de quem me tinha vencido.

Mas lembranças da afeição
que ali cativo me tinha,
me perguntaram então:
que era da música minha,
qu´ eu cantava em Sião?
Que foi daquele cantar
das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar,
pois sempre ajuda a passar
qualquer trabalho passado?

Canta o caminhante ledo
no caminho trabalhoso,
por antr´o espesso arvoredo;
e, de noite, o temeroso
cantando, refreia o medo.
Canta o preso docemente,
os duros grilhões tocando;
canta o segador contente;
e o trabalhador, cantando,
o trabalho menos sente.

Eu qu'estas cousas senti
n'alma, de mágoas tão cheia,
 – Como dirá, respondi,
quem tão alheio está de si
doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
quem em choro banha´o peito?
Porque se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu só descansos enjeito.

Que não parece razão,
nem seria cousa idónea,
por abrandar a paixão
que cantasse em Babilónia
as cantigas de Sião.
Que quando a muita graveza
de saudade quebrante
esta vital fortaleza,
antes moura de tristeza,
que, por abrandá-la cante.

Que se o fino pensamento
só na tristeza consiste,
não tenho medo ao tormento:
que morrer de puro triste,
que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
o que passo, e passei já,
nem menos o escreverei
porque a pena cansará,
e eu não descansarei.

Que se vida tão pequena
se acrescenta em terra estranha,
e se amor assi o ordena,
razão é que canse a pena
de escrever pena tamanha.
Porém se, para assentar
o que sente o coração,
a pena já me cansar,
não canse para voar
a memória em Sião.

Terra bem-aventurada,
se por algum movimento,
d'alma me fores tirada,
minha pena seja dada
a perpétuo esquecimento.
A pena deste desterro,
que eu mais desejo esculpida
em pedra, ou em duro ferro,
essa nunca seja ouvida,
em castigo de meu erro.

E se eu cantar quiser
em Babilónia sujeito,
Hierusalém, sem te ver,
a voz, quando a mover,
se me congele no peito.
A  minha língua se apegue
às fauces, pois te perdi,
se enquanto viver assi
houver tempo em que te negue,
ou que me esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de Glória,
se eu nunca vi tua essência,
como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa,
que, com a escrita doutrina
celeste, tanto imagina,
que voa da própria casa
e sobe à pátria divina.

Não é, logo, a saudade
das terras onde nasceu
a carne, mas é do Céu,
daquela santa cidade,
donde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
que cá me pôde alterar,
não é quem se há- de buscar;
é raio da formosura,
que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz que ateia
o fogo que cá sujeita,
não do sol, mas da candeia,
é sombra daquela Ideia
qu'em Deus está mais perfeita.
E os que cá me cativaram
são poderosos afeitos
que os corações têm sujeitos;
sofistas, que me ensinaram
maus caminhos por direitos.

Destes o mando tirano
me obriga com desatino,
a cantar ao som do dano
cantares d'amor profano
por versos d'amor divino.
Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
de confusão e d'espanto,
como hei-de cantar o canto,
que só se deve ao Senhor?

Tanto pode o beneficio
da Graça que dá saúde,
que ordena que a vida mude:
e o que eu tomei por vício
me faz grau para a virtude;
e faz que este natural
amor, que tanto se preza,
suba da sombra ao Real,
da particular beleza
para a Beleza geral.

Fique logo pendurada
a frauta com que tangi,
ó Hierusalém sagrada,
e tome a lira dourada
para só cantar de ti!
Não cativo e ferrolhado
na Babilónia infernal,
mas dos vícios desatado,
e cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz
a mundanos acidentes,
duros, tiranos e urgentes,
risque-se quanto já fiz
do grão livro dos viventes.
E tomando já na mão
a lira santa e capaz
doutra mais alta invenção,
cale-se esta confusão,
cante-se a visão de paz.

Ouça-me o pastor e o Rei,
retumbe este acento santo,
mova-se no mundo espanto,
que do que já mal cantei
a palinódia já canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
da alta torre de Sião,
à qual não posso subir,
se me vós não dais a mão.

No grão dia singular
que na lira em douto som
Hierusalém celebrar,
lembrai-vos de castigar
os ruins filhos de Edom.
Aqueles que tintos vão
no pobre sangue inocente,
soberbos co poder vão,
arrasai-os igualmente,
conheçam que humanos são.

E aquele poder tão duro
dos afeitos com que venho,
que encendem alma e engenho,
que já me entraram o muro
do livro alvídrio que tenho;
estes, que tão furiosos
gritando vêm a escalar-me,
maus espíritos danosos,
que querem como forçosos
do alicerce derrubar-me;

Derrubai-os, fiquem sós,
de forças fracos, imbeles,
porque não podemos nós
nem com eles ir a Vós,
nem sem Vós tirar-nos deles.
Não basta minha fraqueza
para me dar defensão,
se vós, santo Capitão,
nesta minha fortaleza
não puserdes guarnição.

E tu, ó carne, que encantas,
filha de Babel tão feia,
toda de miséria cheia,
que mil vezes te levantas
contra quem te senhoreia:
beato só pode ser
quem co a ajuda celeste
contra ti prevalecer,
e te vier a fazer
o mal que lhe tu fizeste:

Quem com disciplina crua
se fere mais que  huma vez,
cuja alma, de vícios nua,
faz nódoas na carne sua,
que já a carne n'alma fez.
E beato quem tomar
seus pensamentos recentes,
e em nascendo os afogar,
por não virem a parar
em vícios graves e urgentes:

Quem com eles logo der
na pedra do furor santo,
e, batendo, os desfizer
na Pedra, que veio a ser
enfim cabeça do Ccanto.
Quem logo, quando imagina
nos vícios da carne má,
os pensamentos declina
àquela Carne divina,
que na Cruz esteve já.

Quem do vil contentamento
cá deste mundo visível,
quanto ao homem for possível,
passar logo entendimento
para o mundo inteligível:
ali achará alegria
em tudo perfeita e cheia,
de tão suave harmonia,
que nem por pouca recreia,
nem por sobeja enfastia.

Ali verá tão profundo
mistério na suma alteza
que, vencida a natureza,
os mores faustos do mundo
julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
minha pátria singular!
Se só com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir
para ti, terra excelente,
tão justo e tão penitente,
que despois de a ti subir,
lá descanse eternamente!



luís vaz de camões
poesia lírica