21 março 2011

vinícius de moraes / a rosa de hiroxima




Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada





vinícius de moraes
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





19 março 2011

william carlos williams / estas



--------ESTAS

são as semanas desoladas, sombrias
em que na sua aridez a natureza
rivaliza com a estupidez humana.

O ano despenha-se na noite
e o coração é um abismo
mais fundo que a noite

nesse vazio varrido pelo vento
sem sol, sem lua nem estrelas
apenas uma estranha luz do pensamento

que lança um tenebroso fogo -
rodando sobre si mesma até
no frio incendiar-se

e revelar ao homem algo que ele
desconhece, não a solidão
em si - não um espectro

ainda que o pudesse abraçar - vazio,
desespero - (gemendo
soluçando) entre

as chamas e os estrondos da guerra;
casas em cujos aposentos
o frio ultrapassa o imaginável,

aqueles que se foram e que amávamos
vazias as camas, húmidos os
sofás, as cadeiras sem uso -

Oculta-os algures
longe do pensamento, deixa-os criar
raízes e crescer, salvo de olhos e ouvidos

ciosos - por si somente.
A esta mina chegam para escavar - todos.
Será isto o contraponto da música mais

suave? A fonte da poesia que
ao ver o relógio parado, diz:
Parou o relógio

que ontem trabalhava tão bem?
e ouve o som das águas do lago
salpicando - agora petrificadas.







william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993

fotografia urs stooss





14 março 2011

walt whitman /a um estranho







Estranho que por mim passas! não sabes com que
anseio meus olhos te fitam.

Porque és aquele que eu procuro, aquela que eu
procuro (como se fora um sonho),
Tenho a certeza que, nalguma parte, alegremente
vivi contigo,
Recordo, ao nos cruzarmos, tudo, fluido, afectuoso,
casto, calmo,
Cresceste comigo, foste comigo um rapaz, comigo
foste rapariga,
Comi contigo, dormi contigo, o teu corpo não ficou só
teu, nem o meu corpo só meu,
Deste-me o prazer dos teus olhos, do rosto, da carne,
ao nos cruzarmos levas da minha
barba, peito, mãos, em troca.

Não me cumpre falar-te, eu sou quem existe para
pensar em ti, quando fico sozinho
ou de noite acordo,
Eu sou quem deve esperar, seguro de voltar a
encontrar-te,
Eu sou quem deve cuidar de te não perder para
sempre.





walt whitman
poesia de 26 séculos
vol. II de bashô a nietzche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972





09 março 2011

léon-paul fargue / fases






O garoto arrisca-se a morrer
Pois muito se cansa a correr
Por entre os objectos amados

Nessa demanda sentimos
Ir o pobre em correria
No grande silêncio do dia

E o barulho do dia freme.
E como que em oração rara
A hora passa lenta e clara
Sobre o largo sonolento
Sob o céu do Inverno que treme

E a vida é como um lamento.
Ah como ela faz sofrer!
Sem censura, voz calada

Por um prazer, por um nada...








léon-paul fargue
"tancrède" (revista "pan",1895)
trad. de nicolau saião










07 março 2011

flor campino / dias há de doçura insuportável






Dias há de doçura insuportável

As páginas do livro
volvem os dedos água.
O sopro das palavras
gasta os vasos

por onde, insuportável, a doçura
consuma o espaço.






flor campino
(a aresta das folhas, afrontamento, porto 2000)
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
instituto camões
2001







05 março 2011

gil t. sousa / esse dom de cegar




32


quisera tão só esse dom de cegar,
de luz trespassar as noites
e no ventre do mundo correr mansamente

como se os navios chamassem
e um oceano morresse no vazio dos passos,
como se fosse a hora de me transformar numa ilha
onde só tu naufragasses





gil t. sousa
falso lugar
2004





03 março 2011

jean cocteau / par lui-même






Aproveitei-me, confesso, de certos acidentes
Do mistério e de erros de cálculos celestes.
Aí está toda a minha poesia: eu decalco
O invisível (o que para vós é invisível).
Ao crime disfarçado em trajo desumano,
«Mãos ao ar!», gritei eu, «É inútil reagir»;
A encantos informes tratei de dar contorno;
Das astúcias da morte a traição informou-me;
Com tinta azul fiz aparecer, de súbito,
Fantasmas transformados em árvores azuis.


Será louco dizer que é simples ou sem perigo
Empresa semelhante. Incomodar os anjos!
Descobrir o acaso em flagrante delito
De batota, e as estátuas a tentarem andar!
Por cima de cidades que pareciam desertas,
Nos mirantes aonde somente chega a voz
Dos galos, das escolas, buzinas de automóveis
(Os únicos ruídos que das cidades sobem),
Surpreendi, provindos dos subúrbios do céu,
Assombrosos rumores, gritos de outra Marselha.

«Par lui-même», vv 1-20, Opera (1927)









jean cocteau
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003



02 março 2011

marcel proust / a última reserva do passado




Ora as lembranças de amor não constituem excepção às leis gerais da memória, também elas regidas pelas leis mais gerais do hábito. Como este enfraquece tudo, o que melhor nos recorda um ser é justamente o que esquecemos (porque era insignificante e lhe deixámos assim toda a sua força). Por isso é que a melhor parte da nossa memória está fora de nós, numa aragem pluviosa, no cheiro de um quarto fechado ou no cheiro de uma primeira labareda, em toda a parte onde encontramos de nós mesmos o que a nossa inteligência, por não o utilizar, pusera de lado, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem esgotadas, nos sabe ainda fazer chorar.







marcel proust
em busca do tempo perdido
à sombra das raparigas em flor
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003





28 fevereiro 2011

brian patten / é sempre a mesma imagem





é sempre a mesma imagem;
a tua, saindo nua dos rios do Outono,
o corpo envolto em vapor, coberto de chuva,
gotas azuis e cinzentas desprendem-se de ti,
quando falas
folhas caem e desintegram-se.

é sempre a imagem dos teus seios,
cheio da violência de plantas marinhas
que vibram quando tocadas; peixes
acasalam por debaixo de ti; o teu corpo azul, a tua
sombra seguindo-o,
ambos como espectros vistos de esplanadas distantes
por um público assustado.

a mesma imagem,
mas agora um lago cercado por fetos,
e, meio visíveis por entre a neblina,
mil amantes seguindo-te nus
sem deixar rasto nas esquinas da madrugada.






brian patten
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d'água
1993



25 fevereiro 2011

lawrence ferlinghetti / o mundo é um lugar maravilhoso







O mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se preocuparem demasiadamente
com o facto de a felicidade nem
sempre ser
muito divertida

se as pessoas não se ralarem muito com um
bocado do inferno
uma vez por outra

no preciso momento em que tudo está bem
porque mesmo no céu
não se canta
constantemente

O mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se ralarem com a morte de
outras pessoas
constantemente
ou talvez apenas a morrerem à fome
de vez em quando
o que não será mau de todo
se não for a nós que isso acontece

Oh o mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se ralarem muito
com alguns espíritos mortos
nos postos mais elevados
ou uma bomba ou duas
uma vez por outra
nos vossos rostos virados para
cima

ou outras inconveniências
como aquelas a que a nossa Sociedade
de Marca Registada
está sujeita
com os seus homens de grande
distinção
e os seus homens de grande extinção
e os seus sacerdotes
e outros serviços de patrulha

e as suas várias segregações
e comissões de investigação do congresso
e outras prisões de ventre
das quais a nossa carne tonta
é herdeira

Sim o mundo é o melhor lugar de todos
para fazermos uma porção de coisas como
consagrar-nos à alegria
consagrar-nos ao amor
e consagrar-nos à tristeza
e cantarmos canções graves
e termos inspirações
e nos passearmos
olhando para tudo
e cheirando as flores
e troçando das estátuas
e até pensando
e até beijando pessoas e
fazendo crianças e usando calças
e acenando com os chapéus e
dançando
e indo nadar para os rios
em piqueniques
no meio do verão
e de um modo geralmente geral
«gozando à bruta»


Sim
mas depois no meio de tudo isso
aparece o sorridente
cangalheiro








lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972





22 fevereiro 2011

paulo da costa domingos / travesti






Tivemos um quarto belo como nas casas de passe
Comigo a mirar-te nua no espelho do guarda-vestidos
À socapa
Tivemos um recinto belo como o pavilhão dos furiosos
de uma clínica psiquiátrica
Os teus olhos encovados dialogavam com a morte
24 sobre 24 horas
& afinal os teus cabelos oxigenados iam deixando ver
agora a cor real
& a tua bolsa estava vazia e eu tive de voltar a pé para
casa
Mas nunca deixaste de me sorrir, mesmo do lado de lá
Dos barbitúricos

(25.9.1977)







paulo da costa domingos
travesti
& etc
1979


17 fevereiro 2011

mark strand / elegia 1969


segundo carlos drummond de andrade




Arrastas a escravidão até à velhice
e nada que faças te vale de muito.
Dia após dia passas pelos mesmos gestos,
tremes na cama, tens fome, desejas uma mulher.

Heróis representando vidas de sacrifício e obediência
enchem os parques por onde caminhas.
À noite, no nevoeiro, abrem as umbrelas de bronze
ou então refugiam-se nos vestíbulos vazios dos cinemas.

Amas a noite pelo seu poder de destruição,
mas enquanto dormes, os teus problemas irão morrer.
Acordar só prova a existência da Grande Máquina
e a luz árdua cai nos teus ombros.

Caminhas entre os mortos e falas
de tempos por vir a assuntos do espírito.
A literatura fez-te desperdiçar as melhores horas de amor.
Fins-de-semana perdidos, a limpar a casa.

De pronto confessas o teu fracasso e adias
a alegria colectiva para o próximo século. Aceitas
a chuva, a guerra, o desemprego e a distribuição injusta da riqueza
porque não podes, sozinho, rebentar a ilha de Manhattan.







mark strand
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. josé alberto oliveira
porto 2001 / assírio & alvim
2001







15 fevereiro 2011

antónio ladeira / as pessoas instantâneas






Quando a morte cai sobre as pessoas
é porque tem as asas cansadas
de dar voltas ao mundo.

Escolhe, hesitante, um dos seus cantores.
Escolhe quem, matinalmente, se cumprimenta.

A morte um dia esquece e desce
sobre os mesmos reverentes.

Esqueceu tudo o que dissera.
Ou fingiu que esqueceu tudo.

Alguém parou misteriosamente de falar.

E o silêncio quer dizer: “Acabou tudo.”
Quer dizer: “venham comigo até aquelas grutas!”

Agora finjam que estão velhos.
E que ninguém está nada triste.

Olhem para as vossas pernas,
não há pernas!

Nem mãos,
excepto para tocar em coisas indescritíveis.

As crianças que morriam.

Vou viver para a neve com os meus filhos
mergulhar nos rios soturnos e profundos
em segundos.

Por entre as algas e os peixes que prendiam
os braços das crianças que agarravam
os polvos misteriosos que ensinavam
a nadar os que mereciam.
Se a mim viesse algum dos mortos que ensinasse
a morrer a quem vivesse
a nadar a quem andasse
a dormir a quem falasse

Sem parar.

Imitaria a vida que vivesse
esse monstro que ensinasse

Que morresse.

Que matasse.

Sem matar.









antónio ladeira
a minha cor favorita é a neve
escritor
2000






12 fevereiro 2011

gil t. sousa / os que se perderam





31


que rebentem estradas
sob os pés
dos que se perderam

que nos seus olhos gelados
cresçam fogueiras

*

que o silêncio se curve
como um animal sem voz






gil t. sousa
falso lugar
2004




10 fevereiro 2011

edmundo de bettencourt / poema de amor





A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue…
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas…
Lágrimas… nuvens… e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!

O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera…






edmundo de bettencourt
poemas
arcádia
1963








08 fevereiro 2011

nizzar qabbani / o poema




o poema
uma lição de desenho



O meu filho coloca a sua caixa de pintura à minha frente
E pede-me que lhe desenhe um pássaro.
Mergulho o pincel na cor cinzenta
E traço um quadrado com fechaduras e grades.
Os seus olhos enchem-se de surpresa:

"... Mas isto é uma prisão, pai,
Não sabes desenhar um pássaro?

E eu digo-lhe: "Filho, perdoa-me.
Esqueci-me da forma dos pássaros.

O meu filho coloca o livro de desenhos à minha frente
E pede-me que desenhe uma espiga de trigo.

Pego num lápis
E desenho uma arma.

O meu filho desdenha da minha ignorância,
perguntando,
"Pai, não sabes a diferença entre uma espiga de trigo e uma arma?"
Eu digo-lhe: "Filho,
uma vez usei a forma da espiga de trigo
a forma do pão
a forma da rosa
Mas nestes tempos duros
as árvores da floresta juntaram-se
aos homens da milícia
e a rosa veste uniformes escuros

Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos."

O meu filho senta-se à beira da minha cama
e pede-me que recite um poema
Uma lágrima cai dos meus olhos para a almofada.
O meu filho apanha-a, surpreendido, dizendo:

"Mas esta é uma lágrima, pai, não é um poema!"

E eu digo-lhe:

"Quando cresceres, meu filho,
e aprenderes o 'diwan' da poesia árabe
descobrirás que palavra e lágrima são gémeas
e que o poema árabe
não é mais do que uma lágrima chorada por dedos que escrevem."

O meu filho pega nos seus pincéis,
a caixa de pinturas à minha frente
e pede-me que lhe desenhe uma pátria.

O pincel treme nas minhas mãos
e eu afundo-me, chorando.







Nizzar Qabbani

Escritor sírio, considerado um dos maiores poetas árabes. Do amor e da política.
Morreu em Londres onde vivia, aos 75 anos, em Maio de 1998.
Notabilizou-se com obras eróticas que quebraram tradições literárias no Médio Oriente,
pela defesa da emancipação das mulheres.
As suas palavras ficaram imortalizadas nas canções da egípcia Umm Kulthoum
e da libanesa Fairouz. Nacionalista convicto,
foi extremamente crítico dos líderes árabes, sobretudo após as guerras
contra Israel de 1948 e 1967, que contribuíram para o êxodo palestiniano.

(in Público, 8 de Abril de 2002)


05 fevereiro 2011

kiki dimoulá / a juventude do esquecimento








Espero um pouco
que escureçam as diferenças e as indiferenças
e abro as janelas. Não há pressa
mas faço-o para que não se me empenem os movimentos.
Peço emprestada a cabeça da minha anterior curiosidade
e rodo-a. Rodar, não é bem.
Dou as boas-tardes servilmente a todas as bajuladoras
dos medos, as estrelas. Boas-tardes, não é bem.
Reforço com o fio do olhar os fios
dos prateados botõezinhos da distância
alguns que se desfiaram estão tem-te não caias.
Não há pressa. Faço-o apenas para mostrar à distância
quanto lhe agradeço a oferta.

Se não houvesse a distância
murchariam as longas viagens
viriam de motorizada trazer-nos a casa
como pizzas o mundo que a nossa partida desejava.
A velhice seria uma sanguessuga
colada à juventude
e chamar-me-iam vovó desde os meus verdes anos
netos e amores indiferentemente.
E que seriam os astros
sem o apoio que lhes dá a distância?
Pratarias terrestres, alguns candelabros, cinzeiros
para que neles deite a cinza o rico belicoso
para que a admiração invista a sua sobrevalorização.

Se não houvesse a distância
a saudade tratar-nos-ia por tu.
E os pudores dos agora tão raros encontros
com a plural necessidade nossa
fatalmente se afeiçoariam
à linguagem grosseira do hábito.

É claro, se não houvesse a distância
o nosso próximo não seria essa estrela longínqua
viria à primeira aproximação
só dois passos separariam os sonhos
da sua silhueta.
Assim como junto a nós ficaria
a derradeira partida da alma.
Para onde tanto deambular? Há
um espaço vazio. Nós desceríamos
para vivermos no nosso corpo subterrâneo
e ela com a sua fábula e os seus pertences
reencarnaria em corpo.

Se não existisses ó distância
o esquecimento passaria mais facilmente
mais depressa numa só noite
a difícil prolongada juventude sua
aquilo que por melhor soar chamamos recordação.

Recordação não é bem. Reforço
Com o fio do olhar semelhanças
Que se desfiaram e estão tem-te não caias.
Reforço, não é bem. Servilmente volto-me
desviando-me desses bajuladores do tempo que
por brevidade chamei recordação.
Recordação, não é bem. Reabasteço estrelas cadentes
com prolongada aniquilação. Há pressa.









kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003





03 fevereiro 2011

carlos de oliveira / infância






Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.






carlos de oliveira
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985




01 fevereiro 2011

eugénio de andrade / três ou quatro sílabas





Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.

É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.

Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.





eugénio de andrade
véspera de água
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






30 janeiro 2011

luís filipe parrado / abominação






Por um momento parece-te possível
um sentido para a vida. Acordas um filho,
desces as escadas, percorres as ruas encerradas
ao trânsito da memória, as máquinas
em movimento trabalham com escasso esplendor.
E reparas que corpo e pele coincidem,
que as vértebras dos cavalos sustentam
o ar, que no copo ficou uma borra do vinho
que te trouxeram amigos que já não estão contigo.
Mas nesse rasgo de luz logo regressa a abominação
do costume, e tu sentes o gelo dos sonhos,
a ferrugem dos livros cheios de saliva, o asco
e a suspeita pregados com chumbo ao peitoril
dos teus olhos negros que não compreenderão
jamais como, alguma vez, pudeste escrever
a palavra vida a seguir à palavra sentido.





luís filipe parrado
criatura
nr. 5 outubro
2010





27 janeiro 2011

josé de almada negreiros / mãe!






Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!






josé de almada negreiros
a invenção do dia claro





26 janeiro 2011

antonio sáez delgado / aviso


Que a vida nos oferece pessoas para no-las arrebatar pouco a pouco é coisa que aprendemos sempre demasiado tarde. Que a vida pode roubar-nos tudo, de repente, é coisa que nunca aprendemos. Mas precisamos de ter cuidado, convém manter a vida satisfeita e aceitar de bom grado os sorrisos dos seus fantasmas. Porque já a encontraram várias vezes com mau aspecto, nas tabernas mais imundas do porto. Porque alguém disse que ouviu da sua boca, em voz baixinha, a palavra suicídio.






antonio sáez delgado
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes







25 janeiro 2011

violeta c. rangel / porque é tão alto o preço da vida?





O fumo, os cafés, o gajo que te traz de madrugada,
aquele parceiro que escapou, este que vem acordar-te,
as carícias, a coragem, uma manhã com Rimbaud…

Se o que ajuda a viver, o verdadeiro, custa quase nada
porque é tão alto o preço da vida?






violeta c. rangel
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes





22 janeiro 2011

gil t. sousa / um labirinto de vidro






30


um labirinto de vidro
palavras transparentes
dias quase limpos

no chão
sombras brancas sem raiz




gil t. sousa
falso lugar
2004





20 janeiro 2011

isabel meyreles / jardin du luxembourg







As crianças eram apenas
máquinas de gritar
quando escrevi o teu nome no chão
e me vim embora





isabel meyreles
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
instituto camões
2001




19 janeiro 2011

antero de quental / primeiros conselhos do outono







Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
- «Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da ilusão!

Mais valera a tua alma visionária,
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba varia,

(Sem ver uma só flor das mil, que amaste,)
Com ódio e raiva e dor - que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!» -






antero de quental
sonetos





18 janeiro 2011

natália correia / o sol nas noites e o luar nos dias







De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem







natália correia
poesia completa
publicações dom quixote
1999




12 janeiro 2011

albert camus / os desinteressados






Durante milénios o mundo foi semelhante a essas pinturas italianas da Renascença onde, sobre as lajes frias, são torturados homens enquanto outros olham para outro lado na distracção mais perfeita. O número dos «desinteressados» era vertiginoso em comparação com o dos interessados. O que caracterizava a história era a quantidade de pessoas que não se interessavam pela desgraça dos outros. Algumas vezes os desinteressados também se tornavam vítimas. Mas passava-se tudo no meio da distracção geral e uma coisa compensava a outra. Hoje toda a gente faz menção de se interessar. Nas salas do palácio as testemunhas voltam-se de súbito para o flagelado.








albert camus
cadernos III
(caderno nr. 6 1948/1951)
trad. antónio ramos rosa
livros do brasil
1966







10 janeiro 2011

miguel serras pereira / desoras





I

Levei-te a minha casa mas nenhum
de nós dois foi capaz de me encontrar
tu por ser já talvez um pouco tarde
eu pelos anacronismos do costume

Por isso amada se apesar de tudo
nem sempre fomos só iguais a nada
teremos de arranjar novo teatro
onde a verdade logre melhor lume

mais capaz de a si próprio se tornar
esse instante de cada instante único
em que o instante ou só passa ou a passagem
mais que só consumir-se nos consuma

pois nem o tempo pode outro lugar
que não nos falte ou exceda onde nos une




II

Que sabes tu do inferno de onde estou
a telefonar-te agora? Mas também
como haverias tu de o saber se nem
eu sei já onde estou nem bem quem sou?

Porquê tentar de resto que o soubesses
em vez de te falar dessa promessa
nisso mostrando já melhor cabeça
que seria qualquer sítio onde estivesses

por acaso e eu chegasse por acaso
e depois sucedesse que em me vendo
quisesses cavalgar o tanto atraso
de quanto até então eu fora sendo?

E o rio cuja agonia ao fundo estancas
singraria as tuas mãos nas minhas ancas





miguel serras pereira
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes






07 janeiro 2011

sophia de mello breyner andresen / através do teu coração






Através do teu coração
............................[ passou um barco
Que não pára de seguir sem
............................[ ti o seu caminho








sophia de mello breyner andresen
navegações
caminho
1996.




05 janeiro 2011

vitorino nemésio / poema






Uma tarde é tão pouco em nossa mão!
Os seus anéis deixados os pesamos
Com puros olhos; damos
Rigor ao que é recordação.


Depois a noite esculpe
Nossa extensão no sono.
A que erma catedral iremos nós de estátuas?
Sem um deus que nos culpe,
Tais os anéis de outono
Somos imagens fátuas.





vitorino nemésio
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985






03 janeiro 2011

juan luís panero / como se fosse um poema de amor






Esta cidade tem hoje o teu rosto
e as gaivotas voam na orla dos teus olhos,
sob as nuvens cinzentas da tua fronte.
Ramos verdes de Abril agitam-se em teus lábios
e entre os teus dedos, brancas, surgem, surgem cúpulas
e torres.
Um castelo de sombras ergue-se em teu peito
e um avião passa lento, percorrendo o teu cabelo.
História do teu corpo, com ruas e com rostos
recantos de cansaço, paredes coloridas,
luz que vem e pára, atónita, a teus pés,
como um cão adormecido cujo nome ignoramos.
Esta cidade terá o teu rosto para sempre
e em sua cálida extensão conhecida,
pele a pele, até aos ossos, pedra a pedra nos anos,
o amor será distância e viverá sua morte.
Subitamente não há passado em sua língua
e em tua língua desmorona-se o presente
e tua língua arde e sua saliva queima
enquanto o rio enorme desagua
levando sob suas águas nossas vozes.
Esta cidade terá o teu nome para sempre,
escrevo-o como se fosse verdade,
como se minhas palavras fossem de pedra ou aço,
como se nada tivesse jamais de desmenti-las.
Numa noite qualquer, numa morna manhã
de uma primavera chuvosa e de tormentas,
com cinismo e cansaço, mas também um momento
com aquela ilusão que tiveram outrora
e um calor vencido que alimenta ainda sua pele,
frente ao esquecimento dois seres abraçaram a vida.
Com tristeza mais suave, oh que melancolia,
junto ao húmido parque suas duas sombras tremeram
«esta cidade terá o teu nome para sempre»
e ouviram-se distantes anunciar seu adeus.

(Lisboa 1969)






juan luís panero
antologia da poesia espanhola contemporânea
tradução de josé bento
assírio & alvim
1985







30 dezembro 2010

gil t. sousa / o tempo


29

O tempo é uma fortaleza de papel. Todos os passos se resolvem em caminhos esquecidos. Todos os horizontes se erguem como livros guardados. Leio tudo o que me cerca, como se tivesse que esconjurar impressionantes silêncios. Tenho aqui o mundo e aqueles que lhe traçaram a órbita. Tenho aqui as minhas noites e os meus dias, os anos e as estações, as latitudes e as longitudes... Tenho aqui os fundamentais pontos que me marcaram o norte e o sul.

Dou-me esta ilusão de uma manhã lúcida e depois parto pelos dias adentro, interiormente, dissimuladamente como a maré de um sentimento. Tenho na pele a nostalgia de um lugar perdido. Navios, grandes navios adormecidos no seu azul ferido. Dançam-me a sua morte num pensativo silêncio. Exaltam o seu morrer numa coreografia de lágrimas em ferrugem, escondem na imobilidade dramática dos guindastes o diário intacto das viagens cumpridas. Os arranhões no ferro são linhas de mapas impossíveis e no fim dos seus nomes já não brilha a recompensa de um destino.

Ah! os nomes e as intenções que contêm! Um nome é um cruzeiro no nada, uma corrente que nos arrasta ao incerto do paraíso ou do inferno.





gil t. sousa
falso lugar
2004




29 dezembro 2010

herberto helder / as palavras







Deslocações de ar, de palavras, partes do corpo
deslocações de sentido nas partes do corpo.


As ribeiras tremem na base das montanhas —
geladas, de costas,
as montanhas tremem sobre as águas deslocadas de repente.

Os animais apoiam-se no seu próprio sangue.
As flores apoiam-se na sua própria cor.
As idades apoiam-se na sua própria memória.
E o sono desloca-se da terra para o coração.

Vive-se com o coração a tremer
como uma montanha sobre ribeiras de luz —
e depois a treva desloca-se da idade para o coração
como um lugar inteiro.

E um dia os animais passam junto aos lençóis estendidos,
e a sua passagem queima a brancura
exposta a todas as deslocações.

Então candeias e papoulas deslocam-se sobre imagens cheias de patas —
e fechamos os olhos para a terrível dor da carne,
respiramos mal,
trememos apoiados no nosso próprio terror.

Deslocações de dedos em volta de umas ancas ferozes,
mão atentamente aberta sobre uma vagina viva
como uma boca nas virilhas, a flor do ânus, a flor do ânus —
e depois a luz desloca-se de toda a parte para toda a parte.

O dia apoia-se no seu próprio movimento.
O peixe apoia-se na sua própria submersão.

O amor apoia-se no seu próprio êxtase.

E as vozes apoiam-se no seu próprio som.
Apenas as flores se apoiam no perfume veloz.
Apenas os corpos se apoiam nas flores que eles próprios são —
atados como ramos de um cego e amargo e monstruoso e veloz perfume,
como um perfume de corpos.

As ribeira de luz respiram a prumo.
As ribeiras de treva respiram a prumo.
Vive-se a tremer com o pavor e a glória.
Vive-se de uma ponta à outra o extremo amor, o amor,
e a solidão como um lugar inteiro.

Alguém respira onde é vivo —
uma boca, um ânus, uma vagina viva.

Alguém ferve pela luz adiante até entrar nas trevas
e ficar respirando nas trevas.

Um perfume de esperma.
Um perfume de salsa.
Um perfume de enxofre que estonteia.

Alguém se transforma numa coisa inominável.

(…)








herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968






28 dezembro 2010

jorge luís borges / outro poema dos dons







Graças quero dar ao divino
labirinto dos efeitos e das causas
pela diversidade das criaturas
que formam este singular universo,
pela razão, que não cessará de sonhar
com um plano do labirinto,
pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulsses,
pelo amor que nos deixa ver os outros
como os vê a divindade,
pelo firme diamante e a água solta,
pela álgebra, palácio de precisos cristais,
pelas místicas moedas de Angel Silésio,
por Schopenhauer
que decifrou talvez o universo,
pelo fulgor do fogo
que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,
pelo acaju, o cedro e o sândalo,
pelo pão e o sal,
pelo mistério da rosa
que prodiga cor e não a vê,
por certas vésperas e dias de 1955,
pelos duros tropeiros que, na planície,
arreiam os animais e a alba,
pela manhã em Montevideu,
pela arte da amizade,
pelo último dia de Sócrates,
pelas palavras que foram ditas num crepúsculo
de uma cruz a outra cruz,
por aquele sonho do Islão que abarcou
mil noites e uma noite,
por aquele outro sonho do inferno,
da torre do fogo que purifica
e das esferas gloriosas,
por Swendenborg,
que conversava com os anjos nas ruas de Londres,
pelos rios secretos e imemoriais
que convergem em mim,
pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,
pela espada e a harpa dos saxões,
pelo mar que um deserto resplandecente
e uma cifra de coisas que não sabemos
e um epitáfio dos vikings,
pela música verbal da Inglaterra,
pela música verbal da Alemanha,
pelo ouro que reluz nos versos,
pelo épico Inverno,
pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,
por Verlaine, inocente como os pássaros,
pelo prisma de cristal e o peso de bronze,
pelas riscas do tigre,
pe1as altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,
pela manhã no Texas,
por aquele sevilhano que redigiu a «Epístola Moral»
e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,
por Séneca e Lucano, de Córdova,
que antes do espanhol escreveram
toda a literatura espanhola,
pelo geométrico e bizarro xadrez,
pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
pelo odor medicinal dos eucaliptos,
pela linguagem, que pode simular a sabedoria,
pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
pelo costume,
que nos repete e nos confirma como um espelho,
pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio,
pela noite, sua treva e sua astronomia,
pelo valor e a felicidade dos outros,
pela pátria, sentida nos jasmins
ou numa velha espada,
por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,
pelo facto de que o poema é inesgotável
e se confunde com a soma das criaturas
e jamais chegará ao último verso
e varia segundo os homens,
por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos
por morrer tão devagar,
pelos minutos que precedem o sonho,
pelo sonho e a morte,
esses dois tesouros ocultos,
pelos íntimos dons que não enumero,
pela música, misteriosa forma do tempo.








jorge luís borgesnova antologia pessoaltrad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983



27 dezembro 2010

paul auster / eixos





Ver é estoutra aflição, expiada
Na dor de ser visto: o dito,
O visto, contidos na recusa
De falar, e de uma só voz a semente,
Sepultada no acaso de uma pedra.
Nunca as minhas mentiras me pertenceram.






paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002







26 dezembro 2010

álvaro de campos / estou cansado, é claro







Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...

E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto me dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.








fernando pessoapoesias de álvaro de camposedições ática
1980




19 dezembro 2010

leonardo gandolfi / sem passado, assalto fotografias






Sem passado, assalto fotografias
alheias e integro-as à memorabilia
mais próxima, que por acaso é a minha.
Me conta a fascinante história da sua vida,
leio num outdoor imaginário, que faria
facilmente do recém-falecido Salinger
o autor dos Minutos de Sabedoria.
A única e burra sabedoria de que somos
capazes é a de ver sumirem os nossos
um a um. Depois do avô, um cachorro,
assim sucessivamente, sem naturalidade alguma.
Cada coisa, tanta gente, para onde caminha
tão frouxo coração? À esquerda de quem entra,
diz meu personal salinger. Vou pra sala
e a sala é um poço. Bem localizado no sofá,
começo a assistir pela undécima vez
a Blade Runner. E cheio de esperança
penso no futuro de milhares de pessoas,
entre as quais, os replicantes.







leonardo gandolfi
kansas
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010





13 dezembro 2010

josé miguel silva / piazza della signoria






Ora, pobres sempre houve, senhor.
E todos sabemos, foi assim ordenado,
que não há mal que não venha por bem.
Muito mesquinhos seríamos nós,
muito egoístas, se não nos alegrasse
que do nosso suor tenha nascido a arte
de gastar dinheiro, para que dentro
de cem ou mil anos também os nossos
descendentes possam ter o direito de
cagar sentados, ouvir música de câmara
ou sair do dentista com um sorriso
nos dentes. Se valeu a pena o sacrifício?
Isso nem se pergunta. Pessoalmente,
só lamento não ter podido dar mais
do que uma vida, mas era a única que tinha,
e morro, por isso, de consciência tranquila.




















josé miguel silva
erros individuais
relógio d´água
2010






09 dezembro 2010

eduardo moga / onde dormem os trovões?





[…]

Onde dormem os trovões? Onde estão
as chamas que bebemos? Onde foram
as crianças despojadas das suas têmporas,
as ânforas sem vísceras, as serpentes
de olhos como fuzis, as dulcíssimas
úlceras? Por que não encontra nunca a água
o seu limite? Por que é descontínua
a rocha, por que existe só a rajadas,
a dentadas, quando antes percorria
o vasto labirinto da pulsação?
Nada escapa à fuga: nem os dedos,
que tão longe estão das esferas;
nem a mãe, que esquece o seu baptismo;
nem os lábios, fincados no inerte;
nem o vento, demolido. Quando morri?
Por que se oxidou o mar? Para onde foram
as leis, as sementes, as retinas
construídas com mãos e sondas?
A razão não perdura. Os irmãos
não nascem. Dissolve-se a unidade
do amor, reúnem-se os seus vazios,
desmoronam-se, intactos, os seus jardins.

[…]






eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






06 dezembro 2010

mário cesariny / julião os amadores






Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos
fechados a passagem do vento
dizia eu dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os
palácios rasos de água
no escuro no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos,
deitados, sem dizer palavra, morremos de ter-nos
conhecido tanto
e depois? e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a
pedra de um sonho
mas os salões? e a casa?
e o cão que nos seguia?


o teu rosto meu rosto
este homem alto
o Sol






mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981







02 dezembro 2010

margarida vale de gato / a auto-estima de uma corça sozinha num bar







Um olhar arisco talvez não seja metáfora
um olhar melindrado
os cascos de unhas tratadas
tamborilando nos amendoins
diante de uma bebida branca
atrair sem chamar as atenções
agir com singularidade — o cigarro
que já aprendeu a enrolar —
afectar desinteresse sem descurar possível contágio,
a isso chamam os homens mistério.

Pensar na casa vazia como se de sobriedade se tratasse
não pensar sequer na casa vazia
nem nos corpos que lá subiram
troféus que não cumpriram elementar função
de brilhar no espaço
quando para o ocupar bastam gatos
extensos de tédio.

Oscilar levemente os ombros à música saturada
descontracção
os ombros bem torneados
moldura do impecável colo
ombros ebúrneos pescoço esguio
queixo bicudo nariz inflexível boca madura
ossos do esterno rigorosos
olhos levemente abstraídos por matizes de álcool
relaxar inclinar flutuar com cabelos não perder a cabeça
acenar ao sorriso dos lábios da mesa fronteira
o significado do sorriso — convite curiosidade
escárnio compaixão bebedeira
alerta! vulnerabilidade máxima, não sorrir
olhar fixamente para o cartaz da loira
que tem as saias arregaçadas pelo vento:
Uma mulher numa casa vazia contaminada de barbitúricos
o telefone sempre sem descanso a imagem de estar só
o corpo de desejo o desleixo no sofá seminu.

Esvaziada mente
mandar vir outra de espfrito mais forte
convir à discrição ouvir a música fluir ser grácil
o detentor do sorriso adianta-se a chamar o empregado
— avidezes bailando sedutoras —
alguma coisa humedece ao som dos lábios untuosos
pois sim outro gim — mãos imperceptivelmente crispadas
não ceder.
Resguardar-se.
Defender-se da luz para não chocar com as traças
não — para não se mostrar que se envelhece
titubeante
amparar disparo com desdém.





margarida vale de gato
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010







30 novembro 2010

rui cóias / despede-se de outra vida






2.



Despede-se de outra vida, de uma terra já vergada,
quem regressa com a chave do inverno marcada nos seus passos e,
nesta
hora, renuncia ao próprio alento.
Porque esta é mesmo a sua morte. Quando
a paisagem traz a vida para mais alto, a vida em que se move o
devir do tempo
que assim serve os seus próprios fins
quando os jacintos empalidecem nas longas escadarias
como coisas que se tocam, atingidas.
Porque o inverno não se ouve, nem define,
mas sujeita o sangue a todas as histórias que terminam. Porque
o inverno não se lembra,
mas vê fulcros que expandem nas encostas, vê o fio de mel que viaja
na penumbra
de uma ponta da terra a toda a terra.
Porque o inverno não é o que parece. Mas é a bruma dos frutos
novos
e o orvalho em que o passado se efabula no presente
em plenos frios, com raízes entranhadas.
Porque esta é mesmo a sua morte; em tudo o que viu antes, que não
conhece fim,
em tudo o que se afasta a um passo do caminho
abandonado para sempre
no silêncio que quer aproximar-se, que não ouve mais do que silêncio.
Porque a morte regressa doutra vida – porque
sabe-o no sulco em que os passos, vendo atrás as clareiras,
pressentem o flagelo
em que o rosto, no intervalo delas,
é essa vida a chamar das áleas decrescentes,
a recuar em vistas mortais, em quilómetros, nessas vastidões.






rui cóias
cinco poemas
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010





29 novembro 2010

gil t. sousa / das viagens




28


regresso ao livro
que me declara sábio

que não me abandonem
os ventos
quando de novo navegar
o marítimo corpo
da ausência


é que me abro
à oração dos desertos
e sigo a minúcia dos milagres
até ao deslumbre
do que morre


(que torre é esta
que se atravessa na madrugada
e me serve o oculto canto
da paisagem que te esconde?)






gil t. sousa
falso lugar
2004




26 novembro 2010

ingeborg bachmann / o tempo aprazado






Vêm aí dias difíceis
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefecem ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoceiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.


Do outro lado enterra-se-te a amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.


Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães.
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros!


Vêm aí dias difíceis.






ingeborg bachmann
o tempo aprazado
(últimos poemas 1957-1967)
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992






24 novembro 2010

mário cesariny / a 10.000 metros de profundidade




II


A 10.000 metros de profundidade
o rosto deambulador
do soldado
que não quis morrer
grita o seu radioso segredo:

Abre as portas do teu coração
é tão fácil perder
o homem das águias
que nunca mudam

Ele
em verdade
está só
e nunca
foi ouvido








mário cesariny
pena capital
(estado segundo)
assírio & alvim
1982





23 novembro 2010

arsenii tarkovskii / cresce a névoa da vista – esse poder






Cresce a névoa da vista – esse poder,
Duas luras em diamante invisíveis;
Surdo pela tempestade de outrora
E o bafo da casa de meu pai;
Nós cegos numa trança de músculos
Como bois velhos no campo arado;
E na noite não brilham mais
As asas do meu dorso.





arsenii tarkovskii8 íconesversão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



22 novembro 2010

luis alberto de cuenca / abre todas as portas







Abre todas as portas: a que conduz ao ouro,
a que leva ao poder, a que esconde o mistério
do amor, a que oculta o segredo insondável
da felicidade; a que te dá a vida
para sempre no gozo de uma visão sublime.
Abre todas as portas sem te mostrares curioso
nem ligar nada às manchas de sangue
que salpicam as paredes das habitações
proibidas, nem às jóias que revestem os tectos
e aos lábios que na sombra procuram os teus,
nem à palavra santa que espreita nas ombreiras.
Desesperadamente, civilizadamente,
contendo o riso, secando tuas lágrimas,
no extremo do mundo, no final do caminho,
a ouvir como assobiam as balas inimigas
em volta e como estão cantando os rouxinóis,
não duvides, irmão: abre todas as portas.
Embora não haja nada dentro.






luís alberto de cuenca
tradução de josé bento
canal revista de literatura nr.5
janeiro de 1999
palha de Abrantes







19 novembro 2010

louise glück / paisagem





2.


O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.

Era um tempo
de espera, de acção suspensa.

Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes

não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.

Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.





louise glück
paisagem
tradução de rui pires cabral
telhados de vidro
nr. 12 maio 2009
averno
2009







15 novembro 2010

carlos eurico da costa / de vermelho a morte






«o rosto anseia pelo canto»

juan barea, cantaor




I

Se vejo o meu ser compelido — gemo. E oro aum deus de coragem e destino. A terra oferece-me o que quero — o seu corpo, os seus rios, e tenho de encerrar o meu destino, aquele destino, empurrar o braço no gesto que o alcance, dizê-lo.
Rainha do céu, minha terra em ti me contenho, tu limitas-me, és um mundo, esfera que brilha no rosário, semente de consolação. Não me alonges, leva-me (chega-me) ao teu seio, deixa, deixa contaminar-te do meu suor, queria renegar mas volto de novo a habitar-te.

II
Que morte apetecida, que boca soluçante pela manhã. Flores a corolar a caveira de cristal e azul. Flores de laranja e metal. Garganta golpeada no canto. Leque de madeira rara e marfim flamejando na cabeça negra, branco, cinza.
O acto de dizer, de não querer a minha vergonha. Trago o meu destino — um sal que me consome — em invenções de mal, sentado no meu trono, despedaçando o reino.
Anavalhe-se o que sobra, em fenda alastrada pelos tecidos, cante-se com coragem e sangue contraindo a vocalidade, os destinos mais estranhos da nossa condição: o que nasce no corpo, o que amamenta a imaginação, célula cerebral, leite da terra — logo, um minério hoje descoberto, a aberração da memória. A morte.








carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973