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20 junho 2024

jean cocteau / situação de mallarmé

 



 
Uma juventude presa do maravilhoso e do cinismo prefere não importa que médium de feira, não importa que escroque, a este modelo de homem honesto, de burguês íntegro, de aristocrata consumado, de operário fervoroso, de joalheiro: Mallarmé. Humano, demasiado humano. Confesso, pela minha parte, desaparecida a sombra que o nimbava, não ver nele senão o modern-style da joalharia.
 
Se Mallarnmé lapida pedras preciosas, são, em vez de diamante, uma ametista, uma opala, uma gema da tiara de Herodíades no Museu Gustave Moreau.
 
Rimbaud roubou os seus adiamantes: mas onde? É esse o enigma.
 
Mallarmé, o sábio, fatiga-nos. Merece a dedicatória suspeita das Fleurs du Mal, que Gautier não merece. Rimbaud conserva o prestígio da receptação, do sangue; nele, o diamante é talhado em vista de uma efracção, com o único fim de cortar um vidro, uma montra.
 
Os verdadeiros mestres da juventude entre 1912 e 1930 foram Rimbaud, Ducasse, Nerval, Sade.
 
Mallarmé influencia mais o estilo do jornalismo.
 
Baudelaire vai ganhando rugas, mas conserva uma juventude surpreendente.
 
Cada um dos versos de Mallarmé foi, desde o nascimento, uma bela ruga fina, estudiosa, nobre, profunda. Esse ar mais de velhice que de eternidade impede a sua obra de envelhecer aqui ou ali e confere-lhe uma aparência de conjunto enrugada, análoga à das linhas das mãos, linhas que fossem, porém, decorativas, em vez de proféticas.
 
 
 
jean cocteau
ópio
trad. miguel serras pereira
difel
1984





02 setembro 2023

jean cocteau / os heurtebise de jean cocteau


 



 No seu ensaio Opium e, sobretudo, em Journal d´un Inconnu, Cocteau conta como lhe nasceu o anjo Heurtebise:

 
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A semelhança entre as palavras ange (anjo) e angle (ângulo), a palavra ange faz-se angle se lhe acrescarmos um l (ou asa), é um acaso da língua francesa se existir acaso em matérias como esta. Mas eu sabia que este acaso deixava de sê-lo em hebreu, onde a palavra anjo e a palavra ângulo são sinónimos.
Na Bíblia, a queda dos anjos simboliza a queda dos ângulos, quer dizer, a criação toda humana de uma esfera convencional. Esvaziada da sua alma geométrica, feita de um enredamento de hipotenusas e ângulos rectos, a esfera deixa de assentar sobre os pontos que lhe garantiriam a emissão dos raios.
Eu também sabia que a queda desta alma geométrica é que importa em nós evitar, e que perder todos os nossos ângulos, ou os nossos anjos, é um perigo que ameaça os indivíduos excessivamente agarrados à vida.
 
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Acontecia-me, muito intoxicado, dormir intermináveis sonos de meio segundo. Um dia que fui visitar Picasso à rua La Boétie, no elevador julguei-me a aumentar de tamanho, ao lado de qualquer coisa de terrível e que seria eterna. Uma voz gritava-me: «O meu nome está na placa.» Um abalo despertou-me e li na placa de cobre das alavancas: ELEVADOR HEURTEBISE. Lembro-me de que falámos de milagres, na casa de Picasso. Picasso diz que tudo é milagre, e que milagre era ele não se derreter no banho como um torrão de açúcar.
 
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Verifico, à distância, como esta frase me influenciou. Resume o estilo de uma peça [Orphée] onde os milagres não devem sê-lo, devem estar ligados ao cómico e ao trágico, intrigar tanto como o mundo das pessoas crescidas intriga as crianças.
Eu já tinha deixado de pensar no episódio do elevador. De repente, tudo se alterou. O meu projecto de peça perdeu os contornos. À noite eu adormecia e acordava em sobressalto, incapaz de recuperar o sono. Durante o dia afundava-me e tropeçava numa massa de sonhos. Perturbações que se tronaram atrozes. O anjo habitava-me, sem eu ter qualquer espécie de dúvida, e foi preciso que a pouco e pouco o nome Heurtebise me obcecasse para tomar consciência dele.
À custa de o ouvir, de o ouvir sem o ouvir, se assim puder dizer-se de lhe ouvir a forma numa qualquer zona onde o homem não pode tapar os ouvidos, à custa de ouvir um silêncio que gritava esse nome em altos berros, à custa de ser perseguido por esse nome, voltei a lembrar-me do grito do elevador: «O meu nome está na placa», e nomeei o anjo que se revoltava contra a minha tolice, já que ele e não eu tinha a si próprio dado o nome. Ao ter nome esperei que me deixasse tranquilo. Estava muito enganado. A fabulosa criatura fez-se insuportável. Atravancava-me, abria-se, passeava, batia como as crianças no ventre da mãe. E eu não conseguia abrir-me, fosse com quem fosse. Tinha de aguentar o suplício. Porque o anjo me atormentava sem parar, ao ponto de eu esperar, recorrendo ao ópio, acalmá-lo com astúcia. Mas a astúcia desagradou-lhe e fez-me pagá-lo caro.
 
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O anjo não se preocupava muito com a minha revolta. Eu só era o seu veículo, e ele tratava-me como veículo. Preparava a sua saída. As minhas crises aceleraram-lhe a cadência e todas se fizeram uma só crise comparável à aproximação do parto. Mas parto monstruoso, que não beneficiava do instinto maternal e da confiança que daí resulta. Imagine-se uma partogénese, um casal formado por um só corpo e que dá à luz. Depois de uma noite em que pensei no suicídio, a expulsão teve enfim lugar na rua d’Anjou. Durou sete dias em que o vale-tudo da personagem ultrapassava todos os limites por me forçar a escrever contra vontade.
 
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No sétimo dia (eram sete horas da noite) o anjo Heurtebise fez-se poema e libertou-me. Fiquei apático. Olhava para a figura que ele tinha tomado. Mantinha-se afastado, altivo, por completo indiferente a tudo o que não era ele. Um monstro de egoísmo. Um bloco de invisibilidade.
Esta invisibilidade construída com ângulos que lançam fogo, este navio aprisionado nos gelos, este icebergue rodeado de água, permaneceu sempre invisível. Assim foi decidido pelo anjo Heurtebise. A sua configuração terrestre não tem, para ele, o mesmo sentido que nós lhe damos. Sobre ela acontece fazer-se uma dissertação ou um texto. Esconde-se, então, às nossas exegeses. Como costuma dizer-se, é desembaraçado. Quis penetrar o nosso reino. Que ele por lá se mantenha.
Quando o olho faço-o sem rancor, mas depressa desvio a vista. Os seus grandes olhos incomodam-me porque me fixam sem olhar.
Parece-me notável que este poemas estranho a mim me conte (estranho, a não ser na substância) e o anjo me faça galar dele como se o conhecesse de longa data e na primeira pessoa. Provando assim que a personagem seria inapta a ganhar rosto sem o meu veículo, e ao cabo e ao resto não poderia, como os génios dos contos orientais, habitar o vaso do meu corpo. A única maneira de uma figura abstracta se fazer concreta, continuando invisível, é contrair connosco matrimónio, reservar para si a parte maior, conceder-nos apenas uma dose infinitesimal de invisibilidade. E a reprovação por inteiro, bem entendido.
Na minha visita seguinte olhei para a placa. Tinha lá o nome OTIS-PIFRE; o elevador mudara de marca.
 
 
 
jean cocteau
o livro branco
trad. aníbal fernandes
assírio & alvim
2010




04 março 2013

jean cocteau / o mentiroso




Gostaria de dizer a verdade.
Gosto da verdade. Mas ela não gosta de mim.
A verdade é esta: a verdade não gosta de mim.
Mal acabo de dizê-la, ela muda de rosto e volta-se contra mim.
Tenho o ar de mentir e todos me olham de revés.
E, no entanto, sou uma pessoa simples e não gosto da mentira. Juro.
A mentira traz sempre complicações assustadoras.
Prendem-se-nos os pés, tropeçamos, caímos e toda a gente se ri.
Quando me perguntam alguma coisa, quero responder o que penso.
Quero responder a verdade. Ardo no desejo de dizer a verdade.
Mas não sei o que se passa.
Sou tomado de angústia, de receio, de medo do ridículo, e minto. Minto.
Não há nada a fazer. Demasiado tarde para voltar atrás.
Depois de se começar a mentir, tem de se continuar.
E não é cómodo, juro. É tão fácil dizer a verdade. É um luxo de preguiçoso.
Tem-se a certeza de que não há, depois, enganos e aborrecimentos.
Os aborrecimentos são só no momento, depois tudo se arranja.
Enquanto que eu! O diabo intromete-se. A mentira não é uma vertente a pique.
São montanhas russas que nos transportam, nos deixam sem fôlego,
nos fazem parar o coração, nos põem um nó na garganta.

Se eu amo, digo que não amo e se não amo digo que amo.
Adivinha-se a continuação. Mais vale disparar um tiro de revólver
sobre si próprio e acabar com tudo. Não! É inútil eu tentar convencer-me,
pôr-me diante do espelho e repetir: não mentirás; não mentirás; não mentirás.
Eu minto. Minto. Minto. Minto por pequenas coisas e por coisas grandes.
E se me acontece dizer a verdade, uma vez por acaso...
Surpreendida, ela volta-se do avesso, enruga-se, encarquilha-se, faz troça,
torna-se mentira.
Os mais pequenos pormenores viram-se contra mim e provam que eu menti.
E... não é que eu seja cobarde... Sei sempre o que deveria responder
e imagino o que seria preciso fazer.
No momento, porém, fico paralisado e não consigo falar.
Chamam-me mentiroso e não respondo. Poderia responder: vocês mentem.
Mas não encontro a força necessária para isso.
Deixo-me insultar e rebento de raiva. E é esta raiva que se acumula,
que se amontoa em mim, que me enche de ódio.

Eu não sou mau. Sou até mesmo bom.
Mas basta que me chamem mentiroso para que o ódio me sufoque.
Embora admita que têm razão. Eu sei que têm razão,
que mereço o insulto. Mas é assim: eu não queria mentir
e não suporto que não compreendam que minto contra a minha vontade,
que é o diabo que me instiga. Hei-de mudar, é claro.
Penso que já mudei. Não voltarei a mentir.
Encontrarei um sistema para não mentir,
para não continuar a viver na assustadora desordem da mentira.
Dir-se-ia um quarto desarrumado, uma rede de arame farpado à noite,
corredores e corredores do sonho. Hei-de curar-me.
Hei-de libertar-me. E, de resto, posso dar já uma prova.
Aqui mesmo, em público, acuso-me dos meus crimes e exponho o meu vício.
Não, não. Tenho vergonha. Detesto as minhas mentiras
e iria até ao fim do mundo para não ser obrigado a fazer esta confissão.
E vocês, vocês dizem a verdade? Serão dignos de me ouvir?
Realmente, acuso-me e nem sequer verifiquei
se o tribunal estava em posição de me julgar, de me condenar, de me absolver.

Vocês mentem com certeza! Vocês mentem todos.
Mentem constantemente e gostam de mentir
e de acreditar que não mentem. Vocês mentem a si próprios.
Isso é que é grave. Porque eu não minto a mim próprio.
Eu tenho a franqueza de confessar que minto, que sou um mentiroso.
Mas vocês, vocês são uns cobardes. Escutam-me e pensam: coitado!
E aproveitam-se da minha franqueza para dissimular as vossas mentiras.
Apanhei-os! Sabem, minhas senhoras e meus senhores,
por que é que lhes disse que mentia, que gostava da mentira?
Não era verdade. Era somente para os atrair a uma armadilha
e para chegar a uma conclusão, para compreender.
Eu não minto. Eu nunca minto. Detesto a mentira e a mentira detesta-me.
Menti apenas quando lhes disse que mentia.

Vejo agora os vossos rostos que se desfiguram.
Cada um gostaria de fugir do seu lugar e receia ser interpelado por mim.

A senhora disse ao seu marido que tinha ido ontem à modista.
O senhor disse à sua mulher que jantava com uns amigos.
É falso. Falso. Falso. Ousem desmentir-me.
Ousem chamar-me mentiroso. Ninguém diz nada?
Perfeito. Eu sabia com o que contava. E fácil acusar os outros.
Fácil deixá-los mal colocados. Vocês dizem-me que minto e, afinal,
são vocês que mentem. É admirável. Eu nunca minto. Ouvem? Nunca.
E se me acontece mentir, é para prestar um serviço...
para evitar fazer sofrer... para evitar um drama. Mentiras piedosas.
E claro que é forçoso mentir. Mentir um pouco... de tempos a tempos.
O quê? Que diz? Ah! julgava... não... porque...
acharia estranho que me censurassem este género de mentira.
Seria engraçado, vindo de vocês.
De vocês, que mentem, a mim, que nunca minto.

Vejam, por exemplo, no outro dia — não, vocês não acreditariam.
De resto, a mentira... a mentira... é uma coisa magnífica.
Digam lá, imaginar um mundo irreal e fazer acreditar nele — mentir!
É certo que a verdade tem o seu peso e consegue espantar-me. A verdade.
As duas equivalem-se. Talvez a mentira lhe ganhe...
embora eu nunca minta. O quê? Se já menti? Claro que sim.
Menti quando lhes disse que mentia.
Menti quando lhes disse que mentia ou quando lhes disse que não minto?
Mentiroso, eu? No fundo, já não sei. Sinto-me confuso.
Que tempo o nosso! Serei um mentiroso?
Pergunto--lhes. Sou antes uma mentira.
Uma mentira que diz sempre a verdade.




jean cocteau
o filho do ar
trad. gastão cruz
relógio d´água
1998



08 junho 2012

jean cocteau / dorso de anjo





Em sonhos rua que encanta
e uma trombeta irreal
mentiras são que levanta
um anjo celestial.

Que seja sonho ou não seja,
logo a mentira se afunda,
se a gente de cima o veja,
que todo o anjo é corcunda.

Pelo menos é-o a sombra
na parede do meu quarto.





jean cocteau
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978


05 setembro 2011

jean cocteau / o pacote vermelho


 .
.
.

O meu sangue transformou-se em tinta. Era preciso impedir a todo o custo essa nojeira. Estou envenenado até aos ossos. Cantava no escuro, e agora é o canto o que me mete medo. Mais ainda: estou leproso. Sabem daquelas manchas de humidade que parecem um perfil? Não sei que encanto da lepra engana o mundo e o autoriza a beijar-me. Pior para ele! As consequências não me dizem respeito. Nunca exibi senão chagas. Fala-se de graciosa fantasia: a culpa é minha. É loucura alguém exibir-se inutilmente.

A minha desordem empilha-se até ao céu. Os que eu amei existiam pendurados do céu por um elástico. Voltasse eu a cabeça... e já lá não estavam.

De manhã, debruço-me, debruço-me, e deixo-me cair. Caio de fadiga, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não sei um número, uma data, um nome de rio, uma língua, viva ou morta. Tenho zero em geografia e em história. Se não fossem uns passes de mágica, corriam comigo. Além do mais, roubei os documentos a um tal J.C., nascido em M.L., no dia......, e que morreu com dezoito anos, depois de uma brilhante carreira poética.

Esta cabeleira, este sistema nervoso, mal implantados, esta França, esta terra, não me pertencem. Dão-me agonias. Sempre os dispo à noite, em sonhos.
   
Pois aqui largo o pacote. Que me fechem num hospício, que me linchem. Quem puder que entenda. Eu sou uma mentira que diz sempre a verdade.








jean cocteau
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978
.
.
.


03 março 2011

jean cocteau / par lui-même






Aproveitei-me, confesso, de certos acidentes
Do mistério e de erros de cálculos celestes.
Aí está toda a minha poesia: eu decalco
O invisível (o que para vós é invisível).
Ao crime disfarçado em trajo desumano,
«Mãos ao ar!», gritei eu, «É inútil reagir»;
A encantos informes tratei de dar contorno;
Das astúcias da morte a traição informou-me;
Com tinta azul fiz aparecer, de súbito,
Fantasmas transformados em árvores azuis.


Será louco dizer que é simples ou sem perigo
Empresa semelhante. Incomodar os anjos!
Descobrir o acaso em flagrante delito
De batota, e as estátuas a tentarem andar!
Por cima de cidades que pareciam desertas,
Nos mirantes aonde somente chega a voz
Dos galos, das escolas, buzinas de automóveis
(Os únicos ruídos que das cidades sobem),
Surpreendi, provindos dos subúrbios do céu,
Assombrosos rumores, gritos de outra Marselha.

«Par lui-même», vv 1-20, Opera (1927)









jean cocteau
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003



28 julho 2008

jean cocteau / o anjo heurtebise






VIII


Com pés de animal azul celeste,
Chegou o anjo Heurtebise. Estou só
Todo nu sem Eva, sem bigode
Sem mapa.
As abelhas de Salomão
Debandam, porque me é difícil comer o mel
De tomilho amargo, o meu mel dos Andes.
Em baixo, esta manhã o mar copia
Cem vezes o verbo amar. Anjos de algodão
Sujos, indecentes
Mungem na erva os úberes das grandes
Vacas geográficas.









jean cocteau
o anjo heurtebise
ouolof
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997