Um olhar arisco talvez não seja metáfora
um olhar melindrado
os cascos de unhas tratadas
tamborilando nos amendoins
diante de uma bebida branca
atrair sem chamar as atenções
agir com singularidade — o cigarro
que já aprendeu a enrolar —
afectar desinteresse sem descurar possível contágio,
a isso chamam os homens mistério.
Pensar na casa vazia como se de sobriedade se tratasse
não pensar sequer na casa vazia
nem nos corpos que lá subiram
troféus que não cumpriram elementar função
de brilhar no espaço
quando para o ocupar bastam gatos
extensos de tédio.
Oscilar levemente os ombros à música saturada
descontracção
os ombros bem torneados
moldura do impecável colo
ombros ebúrneos pescoço esguio
queixo bicudo nariz inflexível boca madura
ossos do esterno rigorosos
olhos levemente abstraídos por matizes de álcool
relaxar inclinar flutuar com cabelos não perder a cabeça
acenar ao sorriso dos lábios da mesa fronteira
o significado do sorriso — convite curiosidade
escárnio compaixão bebedeira
alerta! vulnerabilidade máxima, não sorrir
olhar fixamente para o cartaz da loira
que tem as saias arregaçadas pelo vento:
Uma mulher numa casa vazia contaminada de barbitúricos
o telefone sempre sem descanso a imagem de estar só
o corpo de desejo o desleixo no sofá seminu.
Esvaziada mente
mandar vir outra de espfrito mais forte
convir à discrição ouvir a música fluir ser grácil
o detentor do sorriso adianta-se a chamar o empregado
— avidezes bailando sedutoras —
alguma coisa humedece ao som dos lábios untuosos
pois sim outro gim — mãos imperceptivelmente crispadas
não ceder.
Resguardar-se.
Defender-se da luz para não chocar com as traças
não — para não se mostrar que se envelhece
titubeante
amparar disparo com desdém.
margarida vale de gato
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010